domingo, abril 25, 2010

295 - Habitação e Arquitectura III: a Comunicabilidade - Infohabitar 295

Infohabitar, Ano VI, n.º 295

Novos comentários sobre a qualidade arquitectónica residencial
Melhor Habitação com Melhor Arquitectura III: a Comunicabildade Arquitectónica Residencial


artigo de António Baptista Coelho



Introdução geral

Nas páginas seguintes apontam-se alguns aspectos que têm sido constante e sistematicamente ponderados, na sequência da aplicação dos conceitos ligados aos diversos rumos de qualidade arquitectónica residencial. Não se trata, assim, da sua respectiva e clarificada estruturação, mas apenas da sua ponderação cuidada, considerando os anos de prática de análise, que já decorreram desde a sua formulação inicial.

Sublinha-se que se trata de matérias tão ligadas à concepção residencial e urbana que muitas vezes os bons projectos e os bons projectistas as integram de forma natural, sendo que naturalmente há na realidade uma sua aplicação muito mais comum do que o que pode ser sugerido por uma apresentação sistemática e individualizada como aquela que se faz em seguida, mas este é o único processo que temos de ir conhecendo e aprofundando estas temáticas, que, frequentemente, têm lugar cativo nas boas memórias descritivas dos bons projectos de Arquitectura.

Regista-se, em seguida, o plano editorial previsto no Infohabitar, que, repete-se, será, descontínuo, alternado por outras edições e realizado à medida da elaboração dos respectivos artigos (a bold os temas já editados):

Infohabitar n.º 290 - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura I: Introdução
A matéria da relação e do contacto entre espaços e ambientes é tratada em termos de aspectos de:
Infohabitar n.º 291 - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura II: Acessibilidade - facilidade na aproximação ou no trato e desenvolvimento de continuidades naturais por prolongamentos e múltiplas ligações.
Infohabitar n.º 295 - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura III: Comunicabilidade - a qualidade daquilo que está ligado ou que tem correspondência ou contacto físico ou visual.

A matéria da caracterização adequação de espaços e ambientes é tratada em termos de aspectos de:
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura IV: Espaciosidade – referida, tanto aos espaços que são extensos e amplos como aos que apresentam desafogo nas suas envolventes.
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura V: Capacidade – que designa e qualifica o âmbito interior (dentro dos limites) ou a aptidão geral, espacial e ambiental, de qualquer elemento residencial.
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura VI: Funcionalidade – refrida ao adequado desempenho das várias funções e actividades residenciais.

A matéria do conforto espacial e ambiental é tratada em termos de aspectos de:
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura VII: Agradabilidade – referida ao desenvolvimento de condições de conforto, bem-estar e comodidade, nos espaços e ambientes residenciais.
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura VIII: Durabilidade – qualidade do que dura muito ou, melhor, do que pode durar muito e em excelentes condições de manutenção.
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura IX: Segurança – o acto ou efeito de tornar seguro, prevenir perigos, (tranquilizar).

A matéria da interacção social e da expressão individual é tratada em termos de aspectos de:
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura X: Convivialidade – referida ao viver em comum, ao ter familiaridade e camaradagem, à entreajuda natural ou sociabilidade entre vizinhos.
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura XI: Privacidade – referida à intimidade e capacidade de privança oferecida por um dado espaço num dado ambiente.

A matéria da participação, identificação e regulação é tratada em termos de aspectos de:
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura XII: Adaptabilidade – referida à versatilidade e ao que se pode acomodar e consequentemente apropriar.
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura XIII: Apropriação – referida à capacidade de identificação, à acção de "tomar de propriedade", tornando próprio e a si adaptado.

A matéria do “aspecto” e da coerência espacial e ambiental é tratada em termos de aspectos de:
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura XIV: Atractividade - a capacidade de dinamizar e polarizar a atenção.
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura XV: Domesticidade – referida à expressão mais pública ou doméstica do carácter residencial.
Infohabitar n.º xxx - Melhor Habitação com Melhor Arquitectura XVI: Integração – que é a integração ou integridade de um contexto, e de uma totalidade onde não falta nem um elemento de conteúdo e de relação.



Fig. 00: capa da edição do LNEC " Qualidade Arquitectónica Residencial - Rumos e factores de análise" - ITA 8, da Livraria do LNEC, referindo-se, em seguida, o respectivo link para a Livraria do LNEC
http://livraria.lnec.pt/php/livro_ficha.php?cod_edicao=52319.php

Salienta-se ser possível aprofundar estas matérias num estudo editado pelo LNEC que contém um desenvolvimento sistemático dos rumos e factores gerais de análise da qualidade arquitectónica residencial, que se devem constituir em objectivos de programa e que correspondem à definição de características funcionais, ambientais, sociais e de aspecto geral a satisfazer para que se atinja um elevado nível de qualidade nos espaços exteriores e interiores do habitat humano.

Sublinha-se, no entanto, que a abordagem que se faz, em seguida, às matérias da comunicabilidade, enquanto qualidade arquitectónica residencial, corresponde ao revisitar do tema, passados cerca de 15 anos do seu primeiro desenvolvimento, e numa perspectiva autónoma e diversificada relativamente a essa primeira abordagem.



Fig. 01

Introdução à comunicabilidade arquitectónica residencial

A comunicabilidade é a qualidade daquilo que está ligado ou que tem correspondência ou contacto físico ou visual, concretizando-se, tanto em propostas directas de deslocação, como em ofertas de vistas e de contactos ambientais essencialmente baseados na dimensão visual.

A comunicabilidade corresponde, assim, à ligação, à correspondência ou ao contacto físico ou visual entre espaços, incorporando as interferências - directas ou memorizadas - de aspectos representativos de outros espaços e ambientes contíguos ou próximos.

E desta forma, tal como se tentará apontar nas páginas seguintes, a comunicabilidade é uma qualidade arquitectónica residencial com elevado valor em termos de concepção do projecto e com vital importância na fusão entre edifícios e espaço público citadino.

A comunicabilidade é, com alguma naturalidade, e no que se refere aos espaços urbanos e residenciais, a parceira da acessibilidade, pois boas relações de comunicabilidade ajudam a estruturar as relações de acessibilidade e são elementos-base de caracterização da arquitectura urbana nos seus diversos níveis físicos e relações ambientais.

E podemos dizer que a capacidade de fazer inter-comunicar diversos espaços do habitar, ultrapassa claramente a dimensão, talvez mais física, das respectivas relações de acessibilidade, sendo importante elemento de caracterização das soluções desenvolvidas.

Aspectos estruturadores da comunicabilidade
. Estratégia de relações e contactos físicos, visuais e sonoros; tem a ver com o modo como observamos, e com a caracterização da observação e das posições relativas entre observadores e elementos observados.

. Apoio ao desenvolvimento de base(s) de configurações e de sequências urbanas: através de um vocabulário urbano diversificado; e da estruturação de vistas - desde a vista "livre" à "passagem secreta".

. Desenvolvimento de uma comunicabilidade flexibilizadora de relações espaciais, designadamente, interiores e alternativas, ou de relação interior/exterior.

. Desenvolvimento de relações diversificadas entre espaços designadamente nas relações entre diversos níveis físicos.

. Aprofundamento de uma comunicabilidade enriquecedora e diversificadora dos variados cenários do habitat, designadamente, pelo enriquecimento e qualificação de vistas por "enquadramentos".



Fig. 02

A comunicabilidade, da habitação, à vizinhança e ao bairro
Ao nível da habitação e do edifício habitacional os respectivos vãos (janelas, portas, pisos vazados e outros "intervalos" na massa edificada) asseguram a fruição do exterior nos seus espaços interiores, assim como asseguram, por vezes, a "transparência" condicionada, focalizada e filtrada, em sentido inverso.

A fruição do exterior nos espaços interiores domésticos, para além de aspectos essencialmente ligados ao conforto ambiental (que serão abordados sob um ponto de vista intensamente arquitectónico, quando reflectirmos aqui sobre a agradabilidade e o bem-estar), assume também uma natureza densamente arquitectónica, que se traduz na transparência e "projecção" do exterior residencial - de paisagens amplas, médias ou de grande proximidade (definindo-se distintos e sempre ricos quadros de relação com o exterior) - sobre partes bem escolhidas do interior que habitamos.

A "transparência" condicionada, focalizada e filtrada do interior residencial comum ou doméstico sobre espaços de uso comum ou mesmo sobre as margens dos espaços privados, serve num revelar estratégico e mitigado dos conteúdos residenciais, que pode ser de grande importância na caracterização de uma dada vizinhança e mesmo de um dado bairro; de certa forma enriquece a identidade e o carácter do sítio que habitamos e transporta para o exterior urbano algum do sentido de "casa" e os associados sentidos de abrigo, segurança e apropriação.

A comunicabilidade urbanística desenvolve-se a um outro nível bem distinto, por um lado, fisicamente mais amplo, e, por outro lado, menos palpável da comunicabilidade, mas que se refere e estrutura muitos dos aspectos da imagem urbana pormenorizada, garantindo continuidades estrategicamente "perfuradas" por passagens, enfiamentos de ruas e ruelas que concentram e focam a atenção nos respectivos pontos de remate urbano, sítios de fruição paisagística ampla, como acontece nos miradouros, mas também sítios de forte fruição paisagística por mudança radical da caracterização ambiental, como acontece, numa rua que é rematada ou bordejada por um jardim ou por um parque, ou numa pequena rua sossegada e íntima que, de repente, se abre numa praceta relativamente animada e muito pública.

Nestas matérias importa ainda considerar o papel da comunicabilidade como elemento de coesão visual e/ou física de cada vizinhança residencial, podendo aqui substituir-se, estrategicamente, a comunicabilidade física apenas pela visual, dando-se noções de pertença mais aparentes do que reais, solução esta frequentemente muito útil quando se querem definir espaços visualmente coesos mas fisicamente marcados por algumas reservas ou condicionalismos de usos; e aqui haverá grande interesse nas transparências domésticas que foram referidas acima.

E, depois, há ainda a comunicabilidade considerada como permeabilidade estratégica entre bairros ou conjuntos urbanos significativos, uma condição que tem a ver com o poder-se "passar entre" esses conjuntos e atravessá-los funcional e agradavelmente, sendo impressionados pelas suas características de abertura e coesão específicas, características estas que devem ser potenciadas em determinados sítios de abertura urbana, onde para além de se ter uma interessante leitura dos percursos que aí chegam e que daí partem, se tem uma perspectiva estimulantemente explicativa e eventualmente parcial e atraentemente velada desses mesmos percursos e dos seus canais urbanos; e em tudo isto é essencial um adequado tratamento da comunicabilidade urbana em termos de "imagem urbana" - e nesta matérias é evidente que há sempre que aprender com o tratado de Gordon Cullen.




Fig. 03

Estratégias de comunicabilidade
A comunicabilidade arquitectónica residencial tem a ver não só com a possibilidade real de deslocação entre dois espaços, e portanto, e tal como se sublinhou, com a acessibilidade, mas também: ~

. com os modos como essa deslocação se pode fazer, mais ou menos directamente e com as maiores ou menores interferências e influências humanas e espaciais ou ambientais registadas nessa comunicação - proporcionando-se, por exemplo, a clarificação antecipada de alternativas de acessibilidade entre dois espaços;

. e ainda com a percepção essencialmente visual - directa ou memorizada - de aspectos representativos de outros espaços e ambientes contíguos ou próximos, nas sempre essenciais cadeias e sequências de espaços e de pontos de vista úteis e significantes - por exemplo, as vistas próximas ou paisagísticas entre diversos espaços e ambientes.

A comunicabilidade arquitectónica residencial ao nível urbano: um mundo de relações que é, afinal, matéria de base da concepção

Como já se sugeriu e se tentará desenvolver, em seguida, a comunicabilidade é um aspecto fundamental da concepção arquitectónica, que nas áreas urbanas e residenciais, tem de veicular e servir seja objectivos urbanos, de coesão e convivialidade, seja objectivos residenciais, mais estritos ou delimitados, de sossego, pertença, protecção, privacidade doméstica bem disseminada e agradabilidade em termos de conforto ambiental e visual, designadamente, na relação entre interior e exterior.


E assim e tal como se aponta no próprio título deste texto a comunicalidade baseia-se na construção de um verdadeiro mundo de relações, um mundo que com necessária naturalidade se deve repartir e articular em sub-mundos, mutuamente e reguladamente comunicantes, seja em termos visuais como em termos físicos, chegando-se aqui às matérias e aos elementos responsáveis pela acessibilidade, pois esta é directamente servida pelas relações visuais e, por sua vez, qualifica a comunicabilidade, em conjuntos de sequências urbanas que apenas devem ser entendíveis, numa escala de proximidade e de leitura pedonal, através de verdadeiros "fios de Ariadna", pois só assim existirão espaços urbanos ricos e atraentemente orgânicos, que proporcionem um longamente renovado prazer, quando percorridos e usados em permanência e ao longo de anos - pois só assim saberemos fazer e refazer uma verdadeira cidade, aquela que não se esgota nos seus "mistérios".

Em tudo isto importa ter bem presente que as ligações entre espaços realizam-se, tanto entre interior e exterior (e vice-versa), como entre espaços exteriores com diversas características, ou entre interiores variados; afinal, como afirmou Le Corbusier, "o exterior é sempre um outro interior" e podemos acrescentar, com o devido respeito, que o interior vai sempre variando, estrutural e ambientalmente, na sua ligação com o exterior.

Uma boa comunicabilidade arquitectónica residencial existe embebida nas respectiva relações de acessibilidade, mas tem de "viver" para além de tais percursos objectivos, caracterizando um interior que seja também, parcialmente, um exterior (por exemplo numa zona doméstica junto a um lugar-janela), e um exterior que seja, quase predominantemente, uma espécie de grande interior comum ou semi-público muito amplo e versátil, mas muito amigável, e é importante ter em conta a desejada continuidade deste exterior como elemento vital nessa amigabilidade - um tema bem interessante e que merecerá desenvolvimento noutras oportunidades.

Aprofundando e clarificando tais aspectos podemos sublinhar que a natureza básica da comunicabilidade se fundamenta, exactamente, na resolução do que Rudolf Arnheim refere como uma "contradição paradoxal entre: (i) a mútua exclusividade dos espaços interiores autónomos e contidos entre si e de um mundo exterior igualmente complexo e (ii) a necessária coerência de ambos como parte do meio ambiente humano indivisível"; constatação, esta, que o autor considera justificativa da afirmação de Wolfgang Zucker "de que a construção de um limite que separe o interior do exterior é o acto arquitectónico primevo" (1).

A comunicabilidade nos espaços públicos versus a comunicabilidade nos espaços edificados

A comunicabilidade é uma qualidade fundamental na garantia de coesão entre exteriores - desde as relações com a envolvente às conjugações e sequências de vistas urbanas – e entre exteriores e interiores, construindo, complementar ou paralelamente com a acessibilidade, continuidades e relações físicas e visuais. E é interessante registar que entre exterior e interior, mudam apenas as escalas e as pormenorizações das intervenções.

A comunicabilidade nos espaços públicos

A comunicabilidade suporta a acessibilidade, marca-a visualmente, clarifica e pontua sequências de vistas e aberturas paisagísticas, aproxima-se da respectiva paisagem envolvente mantendo conexões estimulantes com determinadas famílias de espaços públicos, e aproxima-se e eventualmente trespassa o edificado assegurando, também, tais conexões, embora, naturalmente com escalas e pormenorizações coerentes.

A comunicabilidade na vizinhança de proximidade e na relação desta com os edifícios
Na vizinhança do edifício as relações visuais devem favorecer as sequências de acesso e, eventualmente, enquadramentos e transparências espaciais, que sirvam, quer extensões estratégicas e/ou virtuais dos espaços exteriores sobre os interiores, seja relações inversas, marcadas por enquadramentos estimulantes do exterior de vizinhança a partir do interior do edifício.

Mas para além destes aspectos básicos será aqui, nestes espaços de transição e de limiar que muita da qualificação arquitectónica pormenorizada terá lugar, pois é aqui, por vezes em espaços ricamente ambíguos, que se cativam muitos dos aspectos que irão tornar uma dada vizinhança urbana e residencial "única" e estimulante para quem a habita; mas destas matérias falaremos um pouco mais na parte final deste texto, dedicada aos aspectos da comunicabilidade sobre os quais importa reflectir.

A comunicabilidade nos espaços edificados e nas habitações

Quanto ao edifício bastaria a importância da sua pele (fachadas, empenas, gavetos, etc.) para afirmar o protagonismo arquitectónico da comunicabilidade a este nível.


Há, no entanto, ainda todos os jogos de relações entre interior e exterior, e vice versa, quer mais envolventes, quer mais pontuais e até interiorizados (ex. pátio ajardinado, luz zenital estratégica) que, tanto de forma essencialmente ambiental (num sentido lato e na vertente do conforto), como em articulação com os aspectos das relações interpessoais e interambientais, configuram situações arquitectónicas com enorme interesse para a satisfação habitacional (ex. vistas alternativas e funcionais) e para a riqueza ambiental do habitat humano.

Ligado a estes aspectos evidencia-se, assim, o papel da comunicabilidade na conjugação entre o relacionamento visual interior e de conjugação com o exterior, e diversos aspectos da agradabilidade ou conforto ambiental.

As ligações entre espaços fundamentam-se na "territorialidade" ou apropriação, seja individual seja colectiva, dos diversos espaços residenciais, mas com relevo para aqueles mais intimamente ligados às habitações. Não será, por exemplo, por acaso que no "Quality Housing Program", aprovado em 1987 pela "New York City Planning Commission" e citado por Elisabeth Mackintosh (2), se definem limites ao número de fogos por galeria servidos pelo mesmo elevador ou escada (um máximo de 15 fogos), com base na facilidade do "reconhecimento ou identificação vicinal", dos vizinhos e dos estranhos, em cada piso; e teremos, assim, um importante campo de estudos e concepção associado ao desenvolvimento de agrupamentos de habitações em contiguidade, que aliem uma presença unitária muito sóbria e bastante independente, na fruição de cada habitação, com uma imagem global clara, que valha como totalidade, que comunique essa totalidade, em termos de imagem, mas não perdendo uma expressão de grupo de habitações com identidade própria; e as expressões de comunicabilidade do conjunto, de cada grupo de habitações mais próximas, e de cada habitação têm a ver com esse desejável equilíbrio e, infelizmente, são raramente consideradas, aliás, como muitos dos outros aspectos aqui abordados.

E continuando a citar a mesma Elisabeth Mackintosh nas suas referências às exigências desse Programa, muito ligadas à comunicabilidade, teremos que: "os espaços abertos devem ser vedados e visíveis a partir dos espaços comuns integrados no edifício. Escadas e elevadores devem ser visíveis a partir da rua, e as portas dos fogos devem ser colocadas de tal modo que sejam visíveis a partir dos elevadores". Aspectos estes associados ao desenvolvimento de boas condições de segurança, mas que proporcionam, igualmente, as referidas imagens de unidade e individualidade.

Para finalizar a concretização da "ideia" habitacional de comunicabilidade importa ainda salientar a sua aplicação como possibilidade ou capacidade de fazer estender, esporádica ou periodicamente, certos espaços sobre outros, tanto em termos concretos, como por dilatações visuais e aparentes de determinados compartimentos através de outros com os quais comunicam ambientalmente.

Ao nível do interior doméstico todos conhecemos a antiga solução que fazia os compartimentos ligarem-se entre si, sem corredores, ou, quando havia capacidade económica para tal, numa alternativa extremamente versátil aos corredores, e sendo que estes, em última instância, podem crescer em dimensões de modo a constituírem verdadeiros compartimentos alongados e multifuncionais. Esta é uma matéria muito associada a aspectos concretos de acessibilidade mas que assume importância específica em termos de capacidade de espaços contíguos e intercomunicantes, através de vãos mais ou menos amplos e efectivos - desde a pequena porta entre compartimentos à grande gola sempre aberta, passando por opções sempre interessantes de portas e paredes de correr -, poderem assumir, de facto, papéis domésticos distintos, complementares e muito versáteis, numa perspectiva que muito se liga às novas formas de habitar e às matérias da adaptabilidade e que, portanto, será retomada quando se tratar aqui desta qualidade.



Fig.04

Carácter e importância específica da comunicabilidade
O carácter eminentemente visual da comunicabilidade, logo dinâmico e muito personalizado, não pode inibir um seu cuidado tratamento, pois está em jogo desde a imagem da cidade, através da visão serial e por conexões mútuas entre espaço público e espaço edificado – através da pele do edificado -, e ainda a imagem integrada do próprio espaço edificado por relações mútuas entre espaços interiores e entre estes e os vãos de ligação à imagem da cidade e da vizinhança.

A importância da percepção visual na comunicabilidade é explicável por duas ordens de razões:
tanto pelo seu papel no desenvolvimento de posicionamentos relativos entre vários espaços e ambientes e nos consequentes indícios e pólos de orientação assim conseguidos - referidos frequentemente marcação de sedes de actividades e de início e finalização de percursos;
como pelo seu não menos importante papel no desenvolvimento da fruição real e prolongada (através dos diversos espaços do habitat) da integração paisagística e urbana dos vários elementos habitacionais.

Este último aspecto que sublinha o papel da comunicabilidade visual e física na fruição paisagística e urbana dos vários elementos habitacionais é em boa parte responsável pelo estímulo à deslocação e ao (con)viver real na totalidade do habitat, descobrindo-se e redescobrindo-se continuamente os seus territórios e neles, naturalmente, convivendo.

Não será difícil imaginar um espaço urbano, praticamente sem relações de comunicabilidade, "vivendo" em canais bordejados por paredes "cegas", sem janelas e portas, e sem aberturas de ruas, e logo temos um cenário de pesadelo ; uma imagem paradigmática, mas que tem imagens aproximadas em muitas periferias sem qualidade e espaços urbanos residuais.

E talvez seja um pouco mais difícil de imaginar, mas é também muito negativa, a situação oposta de um espaço urbano sem delimitações, em que tudo, ou quase tudo, é abertura e relação; uma imagem que encontra situações parecidas em conjuntos urbanos ditos modernistas, com edifícios altos "dispostos na paisagem", e onde esse espaço sem limites que, teoricamente, teria de ser um grande jardim bem mantido, o que raras vezes acontece, pois fazer um tal jardim não é fácil e custa dinheiro na instalação e na manutenção, acabando por "sobrarem", quase por regra, enormes espaços pouco ou nada pormenorizados e tratados, abandonados, onde, frequentemente, impera a lei da velocidade e do automóvel.



Fig. 05

Notas de reflexão e para desenvolvimento sobre a comunicabilidade arquitectónica residencial

Em termos de reflexão geral apuram-se, para já, os seguintes aspectos.
Considerando as ideias que foram aqui desenvolvidas parece sermos remetidos para uma comunicabilidade muito delimitada à "casca" dos edifícios, às suas fachadas, basicamente planas e percebidas, essencialmente, como frontalidades.

E, no entanto, esta não é uma limitação real, porque "há maneiras do arquitecto mostrar a tridimensionalidade de uma forma ao mesmo tempo que preserva a frontalidade" (3). E os espaços e elementos de comunicabilidade que atravessam ou, por vezes, se apõem a essas fachadas, tais como vãos profundos de portas e janelas, varandas e balcões, arcadas, pisos total ou parcialmente vazados ou perfurados e panos "falsos" de fachada, são todos elementos que acentuam ou sublinham, com clareza e força de expressão, mas de forma efectiva mas subtil, e de variadas maneiras, a leitura do volume edificado, da massa edificada ou dos seus planos constituintes - sempre vários elementos de base que são panos de fundo ou elementos de enquadramento dos vãos que asseguram a comunicabilidade e as relações entre espaços e ambientes, por via da sua respectiva leitura e uso pelos habitantes.

Um "outro" elemento de comunicabilidade, neste caso entre edifício e céu, por vezes esquecido, é o remate superior das edificações, que também contribui para a leitura volumétrica destas e para o seu relacionamento ambiental com a envolvente.

Sobre este assunto Arnheim escreveu que "uma cobertura em bico ou com arestas, para além das suas funções de ordem prática, continua a configuração do edifício para lá do plano frontal, fá-lo penetrar na dimensão de profundidade e ajuda assim a defini-lo aos olhos como um sólido. Os andares recuados provocam mais ou menos o mesmo no caso dos edifícios muito altos" (4).

Afinal, na vertical, a relação entre edifício e céu e entre solo e céu, por intermédio do edifício, é estruturada também pela perspectiva, e nesta assume especial relevo o remate do edifício (transição entre ele e o vazio); esta é a outra dimensão real da profundidade urbana (o reino dos contrastes entre ruas estreitas e quase fechadas, obscuras e íntimas e outras largas, luminosas e arborizadas) (5), porque os remates dos edifícios constituem, naturalmente, o remate da rua em que se integram (6).

Sintetizando e tal como refere Alfonso Stochetti (7), "janelas, portas, varandas e terraços não são apenas instrumentos inventados para dar luz e área aos edifícios... servem também aquela relação com a natureza exterior... com a vida, que é a característica principal do nosso planeta."

E, mais à frente, o mesmo autor, depois de enumerar os variados tipos de espaços e elementos de relação entre interior e exterior, ainda vai mais longe, afirmando que as fachadas, onde existem estes elementos, devem ser desenhadas como "uma oferta à cidade e à vida que se desenvolve nos espaços públicos". E neste diálogo com o espaço público as fachadas dos edifícios devem favorecer a perspectiva, porque esta transmite ao edifício a dimensão da profundidade urbana.

Afinal e tal como conclui Arnheim, usando o título que corresponde à parte do seu livro que tem sido aqui citada, trata-se de "tornar visível o edifício".

E, complementarmente, e citando uma excelente obra de Jean-Charles Depaule, nesses espaços abertos na "casca" do edifício os habitantes podem ainda ganhar alguns metros quadrados úteis, "reencontrando na espessura de uma janela ou na profundidade de um balcão o substituto de um lugar a céu aberto, que faz falta, a possibilidade de melhor controlar o calor e a luz interiores, de redefinir territórios e de regular as relações com outrem”(8). E podemos acrescentar que, sendo poucos metros quadrados, são metros quadrados riquíssimos, marcados por uma qualidade vivencial e urbana ou paisagística ímpar, que praticamente tem tudo a ver com a comunicabilidade.

E é ainda Jean-Charles Depaule que nos nega que assim se caminhe para uma lógica da barreira, aproximando-se de uma muito interessante definição de comunicabilidade como um certo modo de definir diferenças, materiais e territórios, portanto "limites", e de negociar relações, portanto "transições" e "limiares" e, afinal, não será a Arquitectura "mais do que um mundo de paredes, um mundo de limiares?" (9)

Considerando o que acabou de ser apontado e tendo em conta que este mundo de limiares se estende dos edifícios e entre os edifícios, qualificando um cenário urbano, feito de muitas cenas, a comunicabilidade é uma qualidade arquitectónica, apenas aparentemente menos objectiva, que está na base dos processos de projecto unificado dos espaços urbanos e edificados.

Esses limiares, desenvolvidos numa rede fina de planos e de espaços, servem tanto de remate e formalização espacial, como de uso directo, pois sempre gostámos de perambular e permanecer nesses espaços neutros, protegidos e estratégicos, espaços de "limbo" onde, de certa forma, estamos, agradavelmente, tanto lá como cá, e, também, naturalmente, porque tais espaços são protagonistas na formalização das sequências de vistas e das vistas mais estáticas que perfuram e dão boa parte do sentido à pele dos edifícios e aos invólucros, tantas vezes transparentes, dos espaços exteriores.

E há que sublinhar que tudo isto, toda esta dinâmica de relações de comunicabilidade, se traduz na conformação de limites, limiares, enquadramentos, charneiras e transições, sempre numa dupla perspectiva de criar demarcações que sirvam de rótulas de ligação e que tenham um adequado carácter de antecipação visual da experiência física ou de surpresa relativa, com escala mais urbana ou mais íntima.

Trata-se assim de dar corpo urbano e, naturalmente, residencial a uma qualidade extremamente arquitectónica ou de concepção, responsável pela transmissão de conteúdos funcionais e ambientais e, em parte, pela relação entre espaços, conjugando-se, privilegiadamente, com os fundamentais aspectos de privacidade e de promoção do convívio, designadamente, através da configuração de limiares, charneiras e transições; afinal um atributo na base da definição dos tão arquitectónicos e vitais sub-níveis físicos da arquitectura urbana.

E não se trata, aqui, de uma qualidade apenas urbana, pois encontra posição privilegiada, tanto na pele exterior do edificado – em jogos de espessura e enquadramento -, como no seu interior em motivadoras conjugações visuais. E, afinal, há grandes projectistas que defendem que o fazer Arquitectura se centra e baseia, essencialmente, na construção de sistemas de relações espaciais ou de um mundo de relações; e assim a comunicabilidade seria ela, em boa parte, a própria arquitectura: uma reflexão que fica lançada.

Em termos dos desenvolvimentos considerados mais interessantes nestas matérias da comunicabilidade urbana e residencial, salientam-se os seguintes temas de estudo.
A relação entre comunicabilidade e segurança é já bem conhecida, mas muito pouco aplicada . É fundamental estruturar a comunicabilidade de acordo com uma adequada estratégia de acessibilidade em segurança. Estratégia esta que deve ser servida pela clara e evidenciada junção ou divisão de espaços e ambientes, adequada e claramente apropriados pelos vários níveis de convívio (grupo de condomínios, condomínio, família).

Aprofundar a aplicação de cuidadosas estratégias de comunicabilidade na concepção, simultânea, de novas ou renovadas tipologias de edifícios residenciais e dos respectivos espaços urbanos contíguos. Será tratar de uma espessa pele edificada que seja também a pele da rua contígua, e, quem sabe, talvez que as actuais estratégias de desenvolvimento de edifícios e de espaços urbanos mais sustentáveis em termos de conforto ambiental possam ganhar com este caminho de concepção, pois é mesmo muito provável que tais "peles" e espaços de limiar e transição sejam muito propícios para se melhorarem as condições térmicas, de ventilação e acústicas interiores e exteriores, com a máxima utlização da energia solar passiva, da ventilação natural e dos fenómenos naturais de aquecimento e arrefecimento das massas de ar - e há aqui muito a lembrar de dispositivos tradicionais e bem usados como os que associam pátios e elementos de ventilação e varandas encerradas por janelas com múltiplos elementos controláveis (por exemplo, os moucharabiés que parece terem sido os percursores das bay-windows e de certa forma dos pequenos "jardins de Inverno" verticais).

E se aliarmos estas estratégias a um amplo proveito espacial arquitectónico nestas franjas de comunicabilidade, teremos resolvido boa parte da questão de integração desses sistemas ao mesmo tempo que ganhamos espaço e qualidade arquitectónica e vivencial. E temos aqui um interessante campo de investigação.

Uma outra questão poderá ter também um interesse específico, trata-se da identificação do tipo de conteúdos a privilegiar quando se comunicam mensagens urbanas e residenciais, e aqui há imediatamente uma matéria que ganha importância e que se refere a haver interesse em se privilegiarem mensagens marcadas pela sobriedade e dignidade, e associadas a ideias razoavelmente partilhadas pelo grande número dos habitantes, evitando-se, assim, quer um uso corrente e frequente de imagens discutíveis, quer um excesso de visibilidade de aspectos demasiado associados à apropriação particularizada de espaços e elementos residenciais por parte de determinadas pessoas. A comunicabilidade urbana e residencial deve privilegiar a comunicação de aspectos de urbanidade consensual e podemos ter aqui, também, um excelente campo de investigação.

Naturalmente, a afirmação de que a Arquitectura é essencialmente um jogo de relações, merecerá, também, adequados e variados desenvolvimentos.


Notas:

(1) Rudolf Arnheim, "A Dinâmica da Forma Arquitectónica", p. 81.
(2) Elisabeth Mackintosh, "Territoriality", em "Housing: symbol, structure, site".
(3) Rudolf Arnheim, "A Dinâmica da Forma Arquitectónica", p. 114.
(4) Rudolf Arnheim, "A Dinâmica da Forma Arquitectónica", p. 115.
(5) Realmente, a largura da rua e as vistas mais ou menos longíquas que sejam possíveis determinam a leitura dos tipos de cobertura escolhidos e assim como um telhado pode ter, com facilidade, uma leitura plana, um terraço pode ter uma leitura de telhado ou só ter leitura clara visto de longe.
(6)De um modo geral, e citando Heidegger por via de Alfonso Stochetti, podemos considerar que “habitar significa estabelecer-se entre o céu e a terra”, assim foi nos primeiros abrigos humanos, assim é hoje em dia.
(7) Alfonso Stochetti, “Spazi per la Vita degli Uomini”, pp. 107 a 114.
(8) Jean-Charles Depaule, "À Travers le Mur", p. 8.
(9) Jean-Charles Depaule, "À Travers le Mur", pp. 11 e 12.

Infohabitar, Ano VI, n.º 295
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte, 25 de Abril de 2010

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