quinta-feira, janeiro 11, 2007

121 - Sobre a humanização do habitar e o cooperativismo – uma primeira “conversa escrita” entre António Novais e António Baptista Coelho - Infohabitar 121

 - Infohabitar 121


Fig. 1: Beja, Cooperativa de Habitação Económica Lar Para Todos, 1986, projecto coordenado pelo Arq. Raúl Hestnes Ferreira.

Nota explicativa:

Nesta edição apresenta-se mais uma iniciativa do Grupo Habitar e do Infohabitar, que passa pela edição periódica, mas sem intervalos predefinidos, de “pares” e outros conjuntos de sequências de cartas com o título que melhor reflicta o conteúdo da respectiva troca e discussão de ideias; e até pode ser que por exemplo este importante primeiro tema da relação existente e potencial entre um habitar de forma mais humana e a cooperação habitacional nos leve longe: quem sabe!

Edita-se, assim, em seguida uma “conversa escrita”, que se inicia com uma carta, que decorreu naturalmente de uma conversa anterior, da qual a carta tenta fazer o possível relato, e uma carta que informalmente aborda, neste caso, variados temas na área da humanização do habitar e do cooperativismo, e uma carta que levanta ideias e propõe caminhos de discussão; e naturalmente a esta primeira carta segue-se a carta de resposta, que igualmente avança ideias e coloca questões para uma outra terceira carta que está para chegar.

O tema escolhido para esta primeira troca de “palavras escritas” foi o do novelo de aspectos que integram as matérias da humanização do habitar e da sua já existente e potencial relação com o cooperativismo habitacional, um tema que foi tema real de uma última conversa entre nós e que assim agora se abre a todos os leitores do Infohabitar, registando-se que se trata de uma “conversa escrita” entre duas pessoas que têm vivido de forma intensa as questões do habitar e designadamente o que o habitar pode dar para além do tecto e de um fundamental, mas não suficiente, conjunto de funções domésticas.

Apenas mais duas notas importantes:

A primeira é acentuar a natureza inteiramente informal e ao “correr da pena” ou do “bater do teclado” que têm e querem sempre vir a ter estas “conversas escritas”; considera-se ser esta uma opção fundamental nesta pequena aventura, que tem, naturalmente, reflexos numa discorrer de opiniões e de ideias apresentadas de forma um pouco fragmentada, pois essa é a essência de uma conversa, mas uma essência que pode eventualmente traduzir-se numa motivadora e natural agregação de ideias e, deseja-se, numa motivadora dinamização de outras pessoas para esta e para outras “conversas escritas”.

E a segunda nota, que já acabou de ser apontada, é, portanto, a vontade real de poder chamar outras pessoas para esta e para outras “conversas”, com os efeitos enriquecedores que essas pessoas trarão, sem qualquer dúvida, à discussão dos assuntos em consideração; e bastará o respectivo envio à edição do Infohabitar (para
abc@lnec.pt ou abc.infohabitar@gmail.com ).

Uma iniciativa deste tipo implica, naturalmente, uma sintética identificação dos perfis dos autores, e assim regista-se que António Baptista Coelho é investigador do LNEC e Vice-presidente da Nova Habitação Cooperativa (NHC) e António Novais é fundador e Vice-presidente da cooperativa As Sete Bicas. Há, no entanto, que sublinhar que os temas em desenvolvimento o serão, mais em resultado das nossas observações e vivências das realidades do habitar de hoje e menos em consequência das nossas actividades específicas e funções enquanto cooperativistas habitacionais.

Os autores, em 8 de Janeiro de 2007

(as imagens são apenas globalmente ilustrativas e seguem uma ordem cronológica)


Fig. 2: conjunto da Nova Habitação Cooperativa (NHC), na Estrada da Circunvalação, Lisboa, 1995, projecto coordenado pelos arquitectos Rui Pedro Cabrita e Miguel Ângelo Silva.

Caro Baptista Coelho,

Como que continuando a nossa conversa de há dias, agora sob a forma escrita (o que é um tanto mais complicado e demorado), os nossos temas andaram à volta dos meios que tornassem, por um lado, a relação entre os cooperadores com as cooperativas (sejam elas de que ramo forem) mais confiáveis, e das cooperativas em relação aos cooperadores com a oferta, tanto quanto possível, de condições favoráveis e atractivas e dentro das expectativas concretizáveis no que toca aos produtos que colocam ao dispor dos seus associados.

Falando do nosso universo (as cooperativas de habitação) a pergunta que se imporia seria a seguinte: Correspondem as cooperativas, com os produtos que colocam à disposição dos seus cooperadores, ao modelo de utilização e de vivência (proximidade e interacção com a sua vizinhança), que permitam aos cooperadores a desejada integração em ambientes, que sendo novos, não façam àqueles sentirem-se deslocados ou “encasulados”, mas que, antes, facilitem o contacto e o são relacionamento inter-vizinhos?

É sabido que as habitações que hoje se produzem, seja no mercado livre, seja no do mundo cooperativo, obedecem, mais ou menos, a um mesmo padrão construtivo: cozinha mais ou menos minúscula, quartos, sala comum e arrumos. É sabido também que, particularmente nos casais com vida profissional activa, as refeições normais são, tendencialmente, tomadas na cozinha, por questões de mobilidade, de economia de tempo, de tradição, etc.. E será que as habitações (neste caso as cozinhas) dão resposta, pela sua configuração e área, a estas necessidades?

As classes mais débeis economicamente encontravam, até um passado recente, solução para os seus problemas de habitação naquilo a que no Porto se designa por “ilhas”; aglomerados de minúsculas casas construídas em superfície. Nesses aglomerados, havia, muitas vezes, espaço para os canteiros, ou vasos, onde proliferavam mil tipos de plantas e flores, ou para a miudagem conviver em ambiente de brincadeira e de jogos colectivos, hábitos que hoje se vão perdendo, com grande pesar por parte de todos quantos neles então participaram e deles muitos ensinamentos tiraram. Sobrava também o tempo para que os vizinhos, ao se cruzarem nos espaços comuns, parassem para dois dedos de conversa;

Mas a que se devem então os protestos de muitos dos moradores dessas “ilhas”, ou mais recentemente dos moradores de alguns bairros em demolição quando são confrontados com a imposição de se realojarem em novas habitações com índices de conforto e de habitabilidade bem melhores que as de onde provêm? Não será, também porque se confrontam com a consciência de que vão perder, para sempre, aquele ambiente intimista e de solidariedade que viviam nos antigos espaços das suas habitações, ou recantos onde crianças e adultos pudessem ter contacto com a terra, como o faziam naqueles anteriores espaços? Lembremo-nos, de novo, dos jogos que a criançada fazia desenhando-os ou construindo-os com terra, ou do efeito retemperador e de prazer com que muitos adultos se sentiriam se tivessem, por perto, um canteiro onde pudessem amanhar a terra e contemplar o crescimento das suas plantas. Lembremo-nos ainda dos pátios alfacinhas e do efeito intimista e solidário que os mesmos provocavam nos “vizinhos” (haveria que recuperar também este termo, no sentido que o mesmo significava então).

Felizmente que o tipo de habitação que a esmagadora maioria das Cooperativas produz para o alojamento dos seus cooperadores, vai no sentido de responder positivamente a algumas das realidades e constrangimentos acima apontados, através da inclusão, nos seus edificados, de equipamentos sociais e espaços lúdicos e de convívio para todos os grupos etários. Felizmente que muitas das Cooperativas alimentam ainda actividades lúdicas ou desportivas, para benefício dos seus membros.

Com estas acções desenvolvidas pelas Cooperativas de Habitação (construção de habitações dentro de critérios cada vez mais rigorosos e onde se incluem os equipamentos sociais) a interrogação que se põe é se estará tudo feito no que seja o âmbito desta área do cooperativismo e no que sejam as aspirações e determinações dos seus dirigentes. Avanço a resposta: Não!
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Suspendo aqui a minha parte da “conversa”, que nos comprometemos passar a ter com regularidade sobre estes temas, ligados à nossa “costela” do cooperativismo.

Com os assuntos acima abordados, mais não pretendi que não fosse tentar encontrar um fio para o arranque desta “missão”.

Saúdo-o com cordialidade.

António Novais
06.12.30


Fig. 3: MCH Algarve, Faro, CUPH – Urbanização Janelas de Faro I, projecto coordenado pelos arquitectos Jennifer Silva Pereira e Rogério Paulo Inácio, 2005.

Caro António Novais,

Continuando a nossa conversa, e com algum método seguindo o correr das suas palavras e das ideias que discutimos há pouco mais de um mês – um método que espero poder e podermos baralhar, positivamente, em próximas destas conversas, apetece sublinhar que a habitação não é ou não deveria ser apenas uma “caixa” onde se exercem diversas “funções” habitacionais, funções estas actualmente já muito escalpelizadas.

E a habitação não é uma “caixa” – ou a “gaveta” onde se arrumam pessoas, numa bem adequada ideia da Doutora Isabel Guerra – não só porque a habitação é muito mais do que uma “caixa” definidora de um dado mundo doméstico, sempre o foi, pois nela sempre muito mais se passou do que apenas funções – basta lembrarmo-nos das emoções –, mas também porque a habitação, que esteve na base da aglomeração de casas e da cidade, não pode de forma alguma esquecer-se das razões de coesão e de vivência comum, que estiveram na base da construção citadina. E, se o esquecer, provavelmente inicia aí o princípio do fim da sua razão de existir em termos de unidade específica; e aqui há também funções, mas também emoções.

Explorando um pouco mais esta matéria dá vontade de comentar que, provavelmente, há cerca de 10.000 anos se começou a passar da casa isolada para a “cidade” por razões de protecção mútua, de desenvolvimento económico e cultural e muito provavelmente também por razões de desenvolvimento gregário e associativo, e também de convívio em grupo, enquanto hoje em dia parece ser a reclusão doméstica e talvez mesmo o aprofundar do individualismo, por um lado, e a estratégica reclusão consumista, por outro, que ameaça a vitalidade do espaço público, que constitui afinal a própria matéria-base da cidade.

E voltando, outra vez, um pouco atrás, também uma caixa apenas “habitável” não corresponde ao sentido de protecção, de envolvência e de identidade e de relação com o corpo e o espírito que pode estar presente até no mais pobre abrigo.

Sobre o problema das habitações-tipo feitas para famílias-tipo, dá vontade de dizer que, em boa parte elas só serão as mais adequadas absolutamente por acaso, pois como se sabe não há pessoas-tipo, nunca houve e cada vez menos há, seja considerando a grande diversidade de culturas que cada vez em maior número integram a nossa grande casa europeia, seja porque o viver de forma específica é, cada vez mais e ainda bem, a vontade de muitos.

Naturalmente que um edifício multifamiliar ou um agregado de edifícios unifamiliares só poderá responder com fidelidade a cada conjunto de necessidades e de desejos familiares a muito custo, mas há diversos aspectos em que se pode actuar numa contínua aproximação à satisfação de quem habita: um dos aspectos é o diálogo construtivo e funcional com quem vai habitar e com quem vai projectar, sempre que tal diálogo seja possível; outro aspecto é conhecer o melhor possível o maior número possível de soluções residenciais e urbanas, pois não vale a pena repetir erros e há inúmeras soluções que podem responder a inúmeras solicitações; outro aspecto liga-se à aplicação de cuidados de projecto especificamente dirigidos para se aumentar a adaptabilidade de uma dada solução doméstica genérica, e esta é uma matéria que nem é especialmente complexa e permite uma riquíssima reinterpretação da casa por um razoável leque de formas e desejos de habitar, trata-se sim de uma matéria em que tudo isto é apenas possível com um bom projecto de arquitectura.

Portanto a resposta que dá vontade de dar à questão levantada sobre se as habitações actuais tendem a dar resposta às necessidades actuais, a resposta que se julga mais acertada é que, por regra, não! E pensa-se apenas nas necessidades funcionais, sobre as outras então só excepcionalmente as novas habitações lhes dão resposta; e aqui fica uma pergunta: será que é desejável e possível seguir, como regra, por este caminho de tentar dar resposta também a outras necessidades domésticas que não as apenas funcionais?

Ao entrar-se nesta matéria de outras necessidades habitacionais para além das funcionais, tendo presente, naturalmente, que há ainda necessidades funcionais por cumprir, mas não é por isso que se deve parar a reflexão sobre estas matérias, portanto neste aprofundamento dos rumos e das dimensões da satisfação residencial, há que fazer duas coisas fundamentais: olhar a rua e a cidade e sair de casa, e poder ter vontade de sair de casa; e poder depois olhar e lembrar a nossa casa de fora e ter vontade de a ela voltar e de nela receber os amigos que devem poder vir pela rua com agrado.

E aqui parece centrar-se a matéria que se levanta quando se pensa na insatisfação de certas pessoas quando confrontadas com ter de sair de um sítio de habitar com pouco conforto, mas com elevado potencial de apropriação, convivialidade e relações directas que são aquelas que em boa parte dinamizam a ajuda mútua, para irem habitar novas habitações, por vezes, com elevados níveis de conforto e de habitabilidade, portanto com elevados parâmetros qualitativos funcionais, mas, frequentemente, com reduzidos parâmetros qualitativos ligados a aspectos de identidade, apropriação, convivialidade e mesmo sentido de afinidade e de amigabilidade.

Fazer casas “amigas” de quem nelas mora, para além de serem “amigas” do ambiente, e fazer cidades “amigas” dos seus habitantes. Nestas matérias há muito que fazer pois sabe-se que muito aqui terá a ver com a escala e, tal como refere no seu texto, com a relação com o solo e com a possibilidade de usar a rua e os espaços de transição entre casa e rua com alguma liberdade e mesmo com alguma alegria – e nada disto trata de aspectos subjectivos ou inexistentes, são aspectos difíceis de medir, pois claro, mas que eles existem não haja dúvida. E talvez sobre esta matéria valha a pena prolongarmos um pouco o nosso diálogo em futuros textos, se assim considerar oportuno.

Mas seria importante ter também a sua opinião como habitante e como dirigente de uma grande cooperativa de habitação sobre uma outra faceta desta última temática, é que parece que, por vezes, o principal problema nem é uma pouco eficaz interpretação ou reinterpretação de tais “valores” pouco mensuráveis, mas que enriquecem o sentido do habitar a casa e a cidade, o pior parecem ser aqueles inúmeros casos em que fica evidente no projecto a quase total ausência de preocupações com tal natureza.

Com certeza que é difícil projectar ambientes residenciais intimistas e potenciadores de solidariedade, ou pelo menos de convívio, mas as cooperativas têm conseguido fazer alguns, não é verdade? E não será que vale a pena um tal cuidado e um tal trabalho aprofundado? E não será que muita desta matéria tem suporte directo numa cuidadosa aplicação de determinadas soluções tipológicas, feitas de edifícios e de espaços entre edifícios, ambos criteriosa e fundamentadamente desenhados? Mais um tema que fica em aberto.

E não será que nos últimos anos tem havido algum abrandamento neste tipo de preocupações práticas, designadamente, também nas próprias cooperativas? E não será que é cada vez mais urgente retomar uma tal linha de habitar humanizado e solidário, ainda que naturalmente apoiando os habitantes de hoje, e portanto sensível aos novos hábitos domésticos e urbanos? E que linhas deverão ser privilegiadas para se ir cumprindo um tal sentido de evolução da promoção habitacional e designadamente da promoção habitacional cooperativa?

A resposta que dá no seu texto a esta matéria é que acha que não, que acha que nem tudo está feito na área do cooperativismo habitacional no que se liga a estas matérias de uma ponderada, mas afirmada humanização e dinamização social e convivial da nossa promoção habitacional. Mas como avançar? E como avançar de forma eficaz numa sociedade que cada vez mais está, como diz, encasulada?

E não será também vital para as cidades deste nosso novo século das cidades que na pequena escala das suas vizinhanças algo se comece a passar de forma diferente, isto é, de forma mais humana e convivial?

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Termino então por aqui, para já, esta minha parte da “conversa” que nos comprometemos passar a ter com regularidade sobre estes temas, ligados à nossa “costela” do cooperativismo, por sua vez bem ligada à nossa outra costela de habitantes deste século das cidades que estamos a viver pela primeira vez.

Reconheço que fui um pouco longo, o que tentarei corrigir na próxima “conversa escrita”, na sequência da recepção das suas e, eventualmente, de outras ideias que aguardo com expectativa.

Saúdo-o com cordialidade.

António Baptista Coelho
2007.01.05


Fig. 4: Conjunto Habitacional da Bouça, Porto, Cooperativa Águas Férreas – cooperativas Ceta e As Sete Bicas e Associação de Moradores da Bouça –, 2006, projecto coordenado pelo Arq. Siza Vieira, uma acção de reabilitação e de completação (72 novos fogos) da obra que tinha sido parcialmente concluída em 1979; fotografia disponibilizada pelos promotores.

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