- Infohabitar 53
fotografias de António Baptista Coelho
Inspirada no título do magnífico filme de Polansky dos anos 70 com Jane Fonda - "they kill horses - don't they” ?, também pergunto "ao vento" porque se abatem cidades, como Lisboa está a ser abatida um pouco por todo o lado, mas especialmente na zona ribeirinha, e sobretudo neste ano de 2005, como nunca, com tal escala e velocidade que quase faz esquecer o que lá estava “ontem".
Todas as cidades envelhecem, mas nem todas "desmoronam" a menos que, como em Hiroshima e Nagasaki, seja lançada uma bomba atómica, de que se comemoram 60 anos, ou que sobre elas se abata, como em Lisboa em 1 de Novembro de 1755 (e está a fazer 250 anos) um terramoto.
Quanto à natureza bruta já se sabe como actua e o que pode fazer, e desde o tsunami de 26 dezembro 2004 em Acheh, na Indonésia, ao que se seguiu este ano o tornado em N. Orleans e Houston, fazendo tudo desaparecer do mapa em poucos instantes, como se a natureza quisesse "fazer-se ouvir" mais profundamente.
Será a natureza tão mais brutal quanto menos atenção o homem tem quanto à sua força, e decide construir onde e como não deve, ou sem os saberes e os cuidados que deve, só contando com a sua inteligência arrogante?
Pergunto, não sei a quem, mas pergunto, o que está a acontecer à Lisboa que adoptei como a minha cidade desde o fim dos anos 50, a que chamava a Cidade do meu encantamento, mesmo depois de conhecer calcorreada a pé Roma, Veneza e Florença, Istambul e Ephesus, ou Paris, e outras do outro lado dos mares. Mas que bem cedo me faziam apressar o regresso, como se aqui eu tivesse outro respirar. Como se aqui fosse o lugar do bater mais ritmado do meu coração, porque pertenço aqui, a este lugar – ponho os pés no meu chão.
Lisboa, hoje a cidade do meu des-encantamento que começa a cair pedra a pedra com o camartelo – mesmo que, ao vir de sul e atravessar a velha Ponte, ela apareça ainda como um poderoso dorso de dinossauro emergindo do seu mergulho em águas profundas, carregando os bairros e monumentos desde o Castelo até desaparecer para os lados do Mar, que lhe deram a mais longínqua identidade e glória. Seja de noite, seja iluminada pelo pôr-do-sol que a torna doirada e eterna “ninfo-maníaca” do Tejo.
Com a cidade cresci e com ela envelheci, que foi tempo de me construir em identidade cultural, emocional e cívica, a ela reportada como ponto de partida como se fora a "minha casa", onde habita "a minha família colectiva" !
Vi na cidade buliçosa, mas verde e limpa, saltarem os golfinhos no Cais das colunas. Vi a Praça do Comércio mudar de "escala" quando as suas fachadas pintadas do verde de Raúl Lino mudaram para rosa fresca ajudando a ler a sua horizontalidade, ou para cores que lhe adulteram demasiado a escala. Vi desaparecer os eléctricos e o contínuo de passeios de peões por onde se corria sem cuidado. Vi a arte das fachadas e o pormenor dos ornamentos. Vi a história dos tempos nas paredes e no chão escrita, até submergir com o automóvel e, pior, com o betuminoso que se sobrepôs ao belo e eterno pavimento de granito que deixava a chuva entrar devagarinho e refrescar o chão e o ar. E agora não vejo nada disso, não por saudosismo, mas por quebra vertical na qualidade do habitar esta minha cidade, sem grandeza nem verdadeiro progresso.
Esse meu tempo de vida na cidade, correspondeu, exactamente, ao avanço da cidade por Benfica e Loures, no início, que se tornou imparável em ambas as margens do Tejo, coalescendo-se a Sintra e Vila Franca de Xira, e país fora, como mancha de óleo irreparável.
Pergunta-se, assim, porque não se decide desmoronar controladamente essa espécie de cidade "arrabaldes" roubados ao campo-horta e ao campo-palácios-quintas da envolvente, que se perdeu na construção maciça e sem lei, e porque não se reorganizam e restauram esses espaços na sua dimensão edificada com verdadeiros espaços públicos e culturais, incluindo o fundamental verde urbano.
Porquê também este desmoronado visual da beira-rio onde as auto-estradas urbanas, no seu pior, acabam em nós viários sobre o ex-libris do Aqueduto das Águas Livres, e a irreconhecível Algés e desembocam "sobre" a Torre de Belém, que já não se sabe onde fica, e que é outro berço da cidade e da nossa história, como se a cidade destas últimas 5 décadas, que trocou ser campo, Palácios e Conventos, por habitação desqualificada e amontoados de automóveis, se tivesse igualmente saturado e empurrasse agora a velha cidade ribeirinha para dentro do rio.
Da grande cidade que foi toda de beleza frágil e simples, mas segura e luminosa nos seus conjuntos, só restam cada vez menos "ilhas” da velha urbe saudável e equilibrada.
Assim, desta forma, a cidade não envelhece, positivamente; desmorona-se. E podia e devia envelhecer bem, através de tantos edifícios em que as funções originais, desactivadas, por naturais razões evolutivas, se prolongassem por outras funções hoje necessárias e positivas. Os edifícios continuam a ser história/memória da arquitectura, e da cidade e das artes envolvidas e deviam mudar de funções, positivamente, como no caso da Cordoaria e não como no caso do Éden. E nessa mudança positiva e dinâmica de funções deve ter-se bem presente que nesta cidade e em tantas outras continua a haver uma crítica carência de espaços culturais, tanto museológicos e bem abertos à sociedade, como de encontro de grandes grupos para música ou teatro, e situados em plena cidade velha, pois desta mistura de memória de cidade e de cultura de hoje resulta uma riquíssima mais-valia.
A Cultura é um quadro ético, que "mora" num lugar especial que é a Cidade. Diminuir a qualidade do ambiente de uma cidade é diminuir a qualidade de vida de cada cidadão, e se chegarmos ao acto último do abater de uma cidade, serão abatidos os seus cidadãos.
Mas porquê esta tendência, tão sentida, de fazer desmoronar a "cidade original", semente da memória colectiva, ancestral?
Não sei nem responder nem compreender.
PS:
Mas sei que os problemas de Lisboa se resolvem no "interior provincial", hoje vazio de habitantes e de cultura, que nos anos 90 foram obrigados a deixar por ausência de estratégia de desenvolvimento de cada local habitado há milénios. E sei que bastava ter percebido que Lisboa começou a morrer quando, em vez de capital, passou a ter que ser uma "nação" que não poderá nunca responder ao que o país inteiro respondia, em cada local "abandonado" desse interior que também se “abateu”, como se abate qualquer cidade abandonada que a natureza selvagem invade.
E em toda esta problemática tenhamos bem presente que as cidades médias, com dimensões de cerca de 40 mil habitantes, são o sustentáculo do conceito de cidade evolutiva e dinâmica, auto-sustentável, fazedora de Civilização.
Lisboa - Santo Amaro – domingo - 23 Outubro 2005
Maria Celeste d'Oliveira Ramos, Arquitecta Paisagista
Fotografias de António Baptista Coelho
As cidades também se abatem, “They kill horses - don't they ?”
um artigo de Celeste Ramosfotografias de António Baptista Coelho
Inspirada no título do magnífico filme de Polansky dos anos 70 com Jane Fonda - "they kill horses - don't they” ?, também pergunto "ao vento" porque se abatem cidades, como Lisboa está a ser abatida um pouco por todo o lado, mas especialmente na zona ribeirinha, e sobretudo neste ano de 2005, como nunca, com tal escala e velocidade que quase faz esquecer o que lá estava “ontem".
Todas as cidades envelhecem, mas nem todas "desmoronam" a menos que, como em Hiroshima e Nagasaki, seja lançada uma bomba atómica, de que se comemoram 60 anos, ou que sobre elas se abata, como em Lisboa em 1 de Novembro de 1755 (e está a fazer 250 anos) um terramoto.
Quanto à natureza bruta já se sabe como actua e o que pode fazer, e desde o tsunami de 26 dezembro 2004 em Acheh, na Indonésia, ao que se seguiu este ano o tornado em N. Orleans e Houston, fazendo tudo desaparecer do mapa em poucos instantes, como se a natureza quisesse "fazer-se ouvir" mais profundamente.
Será a natureza tão mais brutal quanto menos atenção o homem tem quanto à sua força, e decide construir onde e como não deve, ou sem os saberes e os cuidados que deve, só contando com a sua inteligência arrogante?
Pergunto, não sei a quem, mas pergunto, o que está a acontecer à Lisboa que adoptei como a minha cidade desde o fim dos anos 50, a que chamava a Cidade do meu encantamento, mesmo depois de conhecer calcorreada a pé Roma, Veneza e Florença, Istambul e Ephesus, ou Paris, e outras do outro lado dos mares. Mas que bem cedo me faziam apressar o regresso, como se aqui eu tivesse outro respirar. Como se aqui fosse o lugar do bater mais ritmado do meu coração, porque pertenço aqui, a este lugar – ponho os pés no meu chão.
Lisboa, hoje a cidade do meu des-encantamento que começa a cair pedra a pedra com o camartelo – mesmo que, ao vir de sul e atravessar a velha Ponte, ela apareça ainda como um poderoso dorso de dinossauro emergindo do seu mergulho em águas profundas, carregando os bairros e monumentos desde o Castelo até desaparecer para os lados do Mar, que lhe deram a mais longínqua identidade e glória. Seja de noite, seja iluminada pelo pôr-do-sol que a torna doirada e eterna “ninfo-maníaca” do Tejo.
Com a cidade cresci e com ela envelheci, que foi tempo de me construir em identidade cultural, emocional e cívica, a ela reportada como ponto de partida como se fora a "minha casa", onde habita "a minha família colectiva" !
Vi na cidade buliçosa, mas verde e limpa, saltarem os golfinhos no Cais das colunas. Vi a Praça do Comércio mudar de "escala" quando as suas fachadas pintadas do verde de Raúl Lino mudaram para rosa fresca ajudando a ler a sua horizontalidade, ou para cores que lhe adulteram demasiado a escala. Vi desaparecer os eléctricos e o contínuo de passeios de peões por onde se corria sem cuidado. Vi a arte das fachadas e o pormenor dos ornamentos. Vi a história dos tempos nas paredes e no chão escrita, até submergir com o automóvel e, pior, com o betuminoso que se sobrepôs ao belo e eterno pavimento de granito que deixava a chuva entrar devagarinho e refrescar o chão e o ar. E agora não vejo nada disso, não por saudosismo, mas por quebra vertical na qualidade do habitar esta minha cidade, sem grandeza nem verdadeiro progresso.
Esse meu tempo de vida na cidade, correspondeu, exactamente, ao avanço da cidade por Benfica e Loures, no início, que se tornou imparável em ambas as margens do Tejo, coalescendo-se a Sintra e Vila Franca de Xira, e país fora, como mancha de óleo irreparável.
Pergunta-se, assim, porque não se decide desmoronar controladamente essa espécie de cidade "arrabaldes" roubados ao campo-horta e ao campo-palácios-quintas da envolvente, que se perdeu na construção maciça e sem lei, e porque não se reorganizam e restauram esses espaços na sua dimensão edificada com verdadeiros espaços públicos e culturais, incluindo o fundamental verde urbano.
Porquê também este desmoronado visual da beira-rio onde as auto-estradas urbanas, no seu pior, acabam em nós viários sobre o ex-libris do Aqueduto das Águas Livres, e a irreconhecível Algés e desembocam "sobre" a Torre de Belém, que já não se sabe onde fica, e que é outro berço da cidade e da nossa história, como se a cidade destas últimas 5 décadas, que trocou ser campo, Palácios e Conventos, por habitação desqualificada e amontoados de automóveis, se tivesse igualmente saturado e empurrasse agora a velha cidade ribeirinha para dentro do rio.
Da grande cidade que foi toda de beleza frágil e simples, mas segura e luminosa nos seus conjuntos, só restam cada vez menos "ilhas” da velha urbe saudável e equilibrada.
Assim, desta forma, a cidade não envelhece, positivamente; desmorona-se. E podia e devia envelhecer bem, através de tantos edifícios em que as funções originais, desactivadas, por naturais razões evolutivas, se prolongassem por outras funções hoje necessárias e positivas. Os edifícios continuam a ser história/memória da arquitectura, e da cidade e das artes envolvidas e deviam mudar de funções, positivamente, como no caso da Cordoaria e não como no caso do Éden. E nessa mudança positiva e dinâmica de funções deve ter-se bem presente que nesta cidade e em tantas outras continua a haver uma crítica carência de espaços culturais, tanto museológicos e bem abertos à sociedade, como de encontro de grandes grupos para música ou teatro, e situados em plena cidade velha, pois desta mistura de memória de cidade e de cultura de hoje resulta uma riquíssima mais-valia.
A Cultura é um quadro ético, que "mora" num lugar especial que é a Cidade. Diminuir a qualidade do ambiente de uma cidade é diminuir a qualidade de vida de cada cidadão, e se chegarmos ao acto último do abater de uma cidade, serão abatidos os seus cidadãos.
Mas porquê esta tendência, tão sentida, de fazer desmoronar a "cidade original", semente da memória colectiva, ancestral?
Não sei nem responder nem compreender.
PS:
Mas sei que os problemas de Lisboa se resolvem no "interior provincial", hoje vazio de habitantes e de cultura, que nos anos 90 foram obrigados a deixar por ausência de estratégia de desenvolvimento de cada local habitado há milénios. E sei que bastava ter percebido que Lisboa começou a morrer quando, em vez de capital, passou a ter que ser uma "nação" que não poderá nunca responder ao que o país inteiro respondia, em cada local "abandonado" desse interior que também se “abateu”, como se abate qualquer cidade abandonada que a natureza selvagem invade.
E em toda esta problemática tenhamos bem presente que as cidades médias, com dimensões de cerca de 40 mil habitantes, são o sustentáculo do conceito de cidade evolutiva e dinâmica, auto-sustentável, fazedora de Civilização.
Lisboa - Santo Amaro – domingo - 23 Outubro 2005
Maria Celeste d'Oliveira Ramos, Arquitecta Paisagista
Fotografias de António Baptista Coelho
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