quarta-feira, março 01, 2023

Habitação e o Direito Urbanístico e Ambiental em Portugal e Espanha – Infohabitar # 850

Ligação direta (clicar no link seguinte ou copiar para site de busca) para aceder à listagem interativa de 840 Artigos editados na Infohabitar – edição de janeiro de 2022 com links revistos em junho de 2022 (38 temas e mais de 100 autores):

https://docs.google.com/document/d/1WzJ3LfAmy4a7FRWMw5jFYJ9tjsuR4ll8/edit?usp=sharing&ouid=105588198309185023560&rtpof=true&sd=true

 

Habitação e o Direito Urbanístico e Ambiental em Portugal e Espanha – Infohabitar # 850

Infohabitar, Ano XIX, n.º 850

Edição: quarta-feira, 1 de março de 2023

 

Caros leitores da Infohabitar,

Com o presente artigo a Infohabitar tem o grande gosto de voltar a editar um artigo de um dos nossos autores, o Prof. Arquiteto Carlos Almeida Marques, neste caso intitulado Habitação e o Direito Urbanístico e Ambiental em Portugal e Espanha; sublinha-se, desde já, que este artigo foi publicado, em 2021, no  e-book “DIÁLOGOS IBEROAMERICANOS SOSTENIBILIDAD, DERECHOAMBIENTAL Y DERECHO URBANÍSTICO”.

Importa salientar o que se julga ser o grande interesse deste artigo de investigação e reflexão sobre a temática habitacional numa altura em que este tema vital para a sociedade está, novamente, na ordem do dia em Portugal.

Queremos sublinhar que esta edição marca, de forma especial, o n.º 850 da nossa revista e também o dobrar de um cabo bem importante na nossa divulgação, pois acabámos de ultrapassar o milhão e meio de visualizações, lembrando que o nosso contador foi iniciado “a zero”, há cerca de 19 anos.

Enviamos, ainda, felicitações ao nosso autor Carlos Almeida Marques por mais um excelente artigo, lembrando que ele foi essencial também na dinamização dos últimos CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono – em São Paulo (3.º CIHEL) e entre Porto e a Covilhã (4.º CIHEL) uma iniciativa que um destes dias poderá voltar a ser dinamizada.

Recorda-se, como sempre, que serão sempre muito bem-vindas eventuais ideias comentadas sobre os artigos aqui editados e propostas de artigos (a enviar para abc.infohabitar@gmail.com).

Despeço-me, até à próxima semana, enviando saudações calorosas e desejos de força e de boa saúde para todos os caros leitores,     

Lisboa, em 1 de março de 2023

António Baptista Coelho

Editor da Infohabitar

 

Habitação e o Direito Urbanístico e Ambiental em Portugal e Espanha – Infohabitar # 850

Carlos Almeida Marques

PhD Architect and Urbanist, Invited Assistant Professor at ISCSP-Universidade de Lisboa, researcher at CAPP-ISCSP and CIAUD-FA-UL

 

Introdução

As dinâmicas civilizacionais contemporâneas obrigam a uma constante reflexão sobre as questões que afetam a vida e o bem-estar quotidiano das pessoas e das sociedades, de entre as quais se destaca a questão da habitação.

Propomos abordar a questão da habitação sobre diversos aspetos relacionados com o mercado imobiliário e as suas crises, as questões sociais associadas ao direito de acesso a uma habitação adequada e a preços acessíveis, a propriedade da habitação enquanto bem de uso e bem de troca, a gentrificação dos bairros centrais e históricos das cidades e as políticas públicas correlacionadas com todas estas temáticas.

As questões sobre o acesso à habitação vêm a ser colocadas desde o século dezoito como tema chave da urbanística e do planeamento das cidades. Contudo, com a crise do imobiliário de 2008, o tema da habitação passou a ser um assunto global com implicações diretas nas economias dos Estados e nas vidas de todos nós.

Tudo isto porque a habitação, o espaço do habitar quotidiano, passou a ser entendido, não só como necessidade básica ou valor cultural identitário mas sobretudo como produto financeiro e bem transacionável nos mercados bolsitas internacionais.

Uma explicação para este fenómeno pode ser encontrada nas dinâmicas das máquinas de crescimento em que se converteram as cidades; outra explicação é a de que os Estados competem entre si, não tanto para responder às aspirações dos seus cidadãos mas para agradar ao capital (Logan e Molotch 1987).

Quando em 2006 se fez a avaliação do Plan Especial de Vivienda da Extremadura espanhola concluiu-se que a forma do Governo regional intervir no processo de regulação do mercado da habitação vinha a ser realizada com a introdução massiva de habitação a preços acessíveis para ser adquirida. Na mesma altura o Governo português focava a sua política pública de habitação no que então se designava o "apoio à pessoa" procurando salvaguardar a situação económica das famílias ao mesmo tempo que as incentivava à aquisição de habitação própria. Embora seguindo estratégias distintas, ambos governos propunham a mesma coisa: a aquisição de propriedade em forma de habitação.

Recentemente, os governos centrais de Espanha e Portugal, desenvolveram legislação que procura privilegiar o arrendamento e a reabilitação urbana. Trata-se de diplomas muito recentes que exigem algum tempo para serem testados e avaliados os seus resultados.

Contudo, face ao previsível aumento da população urbana, a opção pela construção continuará seguramente a alimentar os mercados do imobiliário e as relações de equilíbrio entre a oferta e a procura de um bem essencial para a própria existência da humanidade.

1.     Quando a habitação importa

O impacte, previsível mas não esperado da chamada sub-prime crisis, em 2008, desencadeou uma crise global, por muitos considerada a pior recessão económica desde a grande depressão que persistiu ao longo da década de 1930, abrindo o debate sobre a sustentabilidade do sistema neoliberal e da economia de mercado como das políticas públicas atuais.

A crise do sub-prime, que se inicia com a falência de algumas das principais instituições financeiras americanas e que levou quase ao colapso do sistema financeiro global “é basicamente a crise do gastos excessivos de governos e indivíduos para além de suas capacidades financeiras. É a crise do consumo excessivo. É o desequilíbrio entre consumo e produção. É o resultado do consumismo” (UN- Habitat 2011).

O setor da habitação foi, provavelmente, o mais afetado pela sobre-oferta de financiamento, que gerou uma enorme “bolha do mercado imobiliário”. Esta bolha foi alimentada por empréstimos bancários, baseados em valores de aquisição, significativamente superiores ao dos rendimentos que auferiam as pessoas ou as famílias para os poder suportar.

Vários fatores contribuíram para esta situação: a desregulação dos mercados financeiros; a atuação dos corretores imobiliários, que desenvolveram programas agressivos de marketing com valores de venda incomportáveis para os níveis rendimento dos compradores; e um tipo de investidor que desconhece o valor das hipotecas, quem as possui, que montantes de empréstimos foram colateralmente suportados por essas hipotecas ou mesmo quando estas estavam a ser desvalorizadas.

Esse esquema de crédito à compra de habitação própria foi sendo sucessivamente facilitado pela crescente percentagem do valor do empréstimo e pelo lançamento de programas de bonificação das taxas de juro, passando a ser dedutíveis fiscalmente parte destes encargos com os empréstimos (ambos com graves encargos para o orçamento nacional) cujos prazos de pagamento (endividamento) foram sendo sucessivamente alongados. A banca encontrou no crédito à habitação própria uma forma de fidelização de clientes a um conjunto de “produtos financeiros” como várias modalidades de seguros, e serviços, todos eles envolvendo um crédito, supostamente, sem risco!

Iniciou-se, desse modo, o endividamento progressivo, a longo prazo, de um número crescente de famílias. De um modo geral, nos países europeus deixou de haver novos inquilinos para passar haver um número progressivo de novos proprietários de casa própria, uma vez que o mercado de arrendamento não oferecia solução alternativa.

Eis que, entretanto, as taxas de juro invertem a sua tendência de baixa e começam a subir. O desemprego atinge níveis acentuadamente elevados. A insolvência financeira de muitas famílias impede-as de manter os seus compromissos contratuais com as instituições bancárias, que iniciam um processo de forte restrição ao crédito para pessoas, famílias e empresas.

De imediato começou a dificuldade de escoamento de habitações e a bolha do mercado imobiliário teve efeitos devastadores no sistema financeiro, público e privado, afetando sobremaneira a economia real dos países do sul da Europa, como Portugal, Espanha, Itália e Grécia, mas também países do norte europeu como a Islândia ou a Irlanda, que entraram num processo de profunda recessão.

A crise financeira que se irá manter até 2014 deveria ter constituído um momento histórico de mudança nas dinâmicas do mercado imobiliário em geral e em particular no da habitação e com tudo o que implica a articulação com as novas configurações dos agregados familiares, as mudanças dos modos de vida urbana, as exigências de mobilidade ou de precariedade na oferta de emprego.

Apesar de todos os impactes negativos, sociais e económicos, resultantes da crise financeira de 2008, a propriedade das habitações, com recurso ao endividamento, manteve-se como opção principal e representa hoje a forma mais corrente de ocupação na União Europeia (EU-28) (1).

De acordo com os dados da Eurostat e como se pode observar no Gráfico 1, em 2017, mais de um quarto (26,5 %) da população da UE-28 vivia em habitação própria, relativamente à qual existia um empréstimo ou uma hipoteca, enquanto mais de dois quintos (42,8 %) da população vivia em habitação própria sem empréstimo nem hipoteca. Assim, sete em cada dez pessoas (69,3 %) na UE-28 vivem em casa própria, enquanto 20,0 % eram inquilinos que pagavam rendas a preço de mercado e 10,7 % viviam em alojamento de renda reduzida ou gratuito (2).

Nenhum dos Estados-Membros da UE registou, em 2017, uma percentagem de inquilinos que fosse superior à percentagem de pessoas a viver em casa própria. A percentagem de pessoas a viver em alojamento arrendado com rendas a preço de mercado, em 2017, era inferior a 10,0 % em 11 Estados-Membros da União Europeia. Em contrapartida, perto de dois quintos da população na Alemanha (40,0 %) e na Dinamarca (37,7 %) vivia em casas alugadas a preços de mercado à semelhança de cerca de um terço da população na Suécia (34,0 %), nos Países Baixos (29,8 %) e na Áustria (30,1 %), e cerca de um quinto no Luxemburgo (20,8 %), na Grécia (21,0 %) e na França (19,2 %). A percentagem da população que vive em casas alugadas com rendas reduzidas ou que ocupa alojamentos sem pagar era inferior a 20,0 % em todos os Estados-Membros da UE e nos seis países parceiros, cujos dados se encontram representados no Gráfico 1 (3).

Se procurarmos relacionar o tipo de ocupação com os rendimentos disponíveis das famílias, em 2017, uma percentagem de 10,4 % da população da UE-28 vivia em agregados que gastavam 40 % ou mais do seu rendimento disponível equivalente com a habitação, sendo que a percentagem da população, cujos custos de habitação eram superiores a 40 % do seu rendimento disponível equivalente era mais elevada no caso dos inquilinos com rendas a preço de mercado (26,3 %) (4).


Gráfico 1: Distribuição da população por regime de propriedade, 2017 (% da população total) (ilc_lvho02). Fonte de dados: Eurostat

 


1.1. Sobrecarga de despesas com a habitação

Quando as pessoas que ocupam as habitações são também os seus proprietários, o investimento corresponde usualmente a uma parte significativa dos seus rendimentos e é um fator determinante no financiamento dos seus hábitos. Por sua vez, o financiamento imobiliário representa um significativo montante das instituições financeiras em muitos países europeus (…) e os investimentos em propriedades residenciais tem um grande peso nos portefólios de investimentos das companhias de Real Estate (Suarez 2009, 8).

Muitos economistas argumentam que os custos com a habitação podem ser sustentáveis se não excederem 1/3 do rendimento familiar. Contudo, como vimos anteriormente, 10,4 % da população da UE-28, vivia em 2017, em agregados que gastavam 40% ou mais do seu rendimento disponível equivalente com a habitação, ultrapassando assim este referencial de sustentabilidade.

A sobrecarga das despesas com a habitação é claramente um assunto que afeta sobretudo as famílias com baixos rendimentos. Como podemos observar na Tabela 1, cerca de 1/3 da população da União Europeia, encontra-se em risco de pobreza após deduzir os custos da habitação. Embora esse valor tenha vindo a ter uma ligeira redução entre 2014 e 2018, tanto em Espanha como em Portugal verificou-se em 2018 um aumento percentual nas áreas rurais, que atravessam atualmente um processo de regressão demográfica e recessão económica.

Na última década, os agregados familiares com baixos rendimentos viram os seus gastos com a habitação manter-se estáveis, em média 41.1% (Eurostat). Esta situação pode vir a ser alterada se se continuar a verificar uma redução do rendimento dos agregados familiares ao mesmo tempo que os custos com a habitação tendam a aumentar.

Podemos assim colocar a questão de saber se a população que vive em agregados familiares na qual existe um empréstimo ou uma hipoteca, é verdadeiramente proprietária ou são arrendatários do mercado imobiliário?

 

Tabela 1. Taxa de risco de pobreza após deduzir os custos da habitação por grau de urbanização [ilc_li48]. Última atualização: 08.11.19. Fonte de dados: Eurostat.

TEMPO

GEO

2014

2015

2016

2017

2018

GRAU DE URBANIZAÇÃO: Total

EU 28

32.7(e)

32.6(e)

32.3(e)

31.5(e)

31.2(e)

Espanha

32.5

31.9

32.2

31.2

30.9

Portugal

30.7

30.3

29.5

28.4

28.3

GRAU DE URBANIZAÇÃO: Cidades

EU 28

32.5(e)

33.1(e)

32.9(e)

32.2(e)

31.9(e)

Espanha

28.9

29.2

29.9

28.7

27.9

Portugal

28.1

28.4

27.4

26.6

25.4

GRAU DE URBANIZAÇÃO: Cidades médias e subúrbios

EU 28

31.2(e)

30.8(e)

31.0(e)

30.6(e)

30.0(e)

Espanha

33.3

32.7

31.6

31.5

31.5

Portugal

29.6

28.4

28.2

26.4

27.2

GRAU DE URBANIZAÇÃO: Áreas rurais

EU 28

34.8(e)

33.9(e)

33.1(e)

31.5(e)

31.4(e)

Espanha

39.0

36.7

37.4

35.9

36.2

Portugal

36.0

35.4

34.6

33.5

34.5

(e) estimado

 

1.2. De bolha em bolha de mercado

Um estudo publicado pelo DIW (Deutsches Institut für Wirtschaftsforschung) (5) procurou avaliar se - decorridos dez anos sobre a declaração de falência do Lehman-Brothers, associada à sub-prime crisis e ao rebentamento da bolha imobiliária nos Estados Unidos da América – se está novamente a assistir a uma subida dos preços dos imóveis, capaz de provocar um enorme risco de bolha de habitação na maioria dos países da OCDE.

Segundo este estudo, “os factores que determinaram o valor da Real Estate (em 2008) – tal como o rendimento e o desenvolvimento da população ou os níveis de taxa de juro a longo prazo – já não explicam completamente esta evolução de preços.” Para justificar esta ideia os seus autores consideram que “o preço das habitações está associado às tendências do valor da renda a longo prazo (…) esta suposição implica que toda a informação conhecida afeta imediatamente a avaliação, e que a relação entre os preços e rendas segue um processo de random walk, o que significa que ele, sistematicamente, não se desvia do valor fundamentadamente justificado. Nesta abordagem não existindo uma perfeita relação com os retornos do investimento, a única explicação para ao desvio do preço é a especulação” (2019, 266-268).

Para além da especulação, a subida de preços da habitação, que no caso português vem a ocorrer desde 2014, deu origem a um novo boom do imobiliário e a um aumento da procura por parte de investidores (nacionais e internacionais, especialmente nas áreas centrais de Lisboa e do Porto, pode estar relacionada com diversos outros fatores:

(i) a liberalização do mercado de arrendamento habitacional em 2012 (6);

(ii) a publicação em 2014, do novo regime excepcional e temporário aplicável à reabilitação de edifícios (7) que veio dispensar do cumprimento de algumas normas previstas em regimes especiais relativos à construção;

(iii) o significativo aumento de turistas a utilizar o Alojamento Local (8);

(iv) em resultado de políticas públicas como a da conceção dos chamados “vistos gold” (9) que permitem o acesso à cidadania portuguesa para os estrangeiros que investam no país, designadamente na “aquisição de bens imóveis de valor igual ou superior a 500 mil euros” ou “aquisição de bens imóveis, cuja construção tenha sido concluída há, pelo menos, 30 anos ou localizados em área de reabilitação urbana e realização de obras de reabilitação dos bens imóveis adquiridos, no montante global igual ou superior a 350 mil euros” (10);

(v) e ainda a criação de um regime fiscal muito favorável para residentes não-habituais, o que contribuiu para aumentar a procura de imóveis para habitação.

O anteriormente exposto é revelador da complexa relação entre o mercado imobiliário e as políticas públicas de habitação. Dessa relação depende, em grande parte, o processo de recomposição do sistema urbano e as distintas etapas do modelo cíclico de mudanças que ocorrem nas cidades, designadamente a relação entre a habitação e o tecido urbano dado esta ser o seu elemento mais constante.

2.    Porque construímos

Porque construímos (Why We Build) é o título de um conhecido livro de Rowan Moore. Nele o autor explica que a necessidade de construir é para o Homem, tão premente quanto a necessidade de se alimentar e “se não o podemos fazer desmatando terra e contratando empreiteiros” construímos “através do habitar e modelar, fisicamente e na imaginação, o espaço que encontramos” (Moore 2012).

O que construímos e como construímos tem correntemente refletido as preferências do mercado imobiliário mais do que as visões de uma arquitectura e um urbanismo comprometidos com questões relacionadas com a coesão social, o direito à cidade ou o direito à habitação.

Se construir surge como uma inevitabilidade, o que mais construímos é habitação. A habitação é um dos elementos mais persistentes na história da humanidade em general e da arquitetura em particular. O seu projeto foi redesenhado em numerosas soluções e experiências de espaço que mais não são do que a forma do homem se acomodar ao seu nicho ecológico e decidir o lugar e o modo da sua relação existencial com o mundo que o rodeia. Em todas as cidades, a habitação constrói o cenário contra o qual a vida urbana ganha visibilidade (Marques 2012).

A habitação representa o fator físico mais constante da organização das cidades, dado o seu domínio sobre todas as demais formas construídas e enquanto elemento mais simples e repetido dos assentamentos humanos. A habitação tem implicações com a definição das relações sociais e a padronização dos valores culturais que são a consequência direta do crescente processo de urbanização. A habitação corresponde à maior percentagem da oferta do mercado imobiliário e é um dos principais motores das economias nacionais e regionais. Em adição ao indiscutível valor social, a habitação é também um componente vital da economia geral, sendo consequentemente uma proeminente fonte de emprego.

Se o imaginário urbano é frequentemente identificado por edifícios icónicos, patenteando a presença dos poderes políticos e económicos ou emergindo como referenciais de uma determinada identidade cultural, o trabalho de reprodução do tecido urbano é feito sobretudo com habitação e associado a esta surge um vasto conjunto de equipamentos: saúde, educação, alimentação e não menos importante, os espaços públicos de função e cidadania. Este é o domínio que realmente interessa à oferta e à procura no mercado imobiliário e é a preocupação central dos urbanistas, desde que a habitação passou a fazer parte da forma de pensar a cidade e é assunto das políticas públicas quando preocupadas com questões de justiça e coesão social.

De acordo com o World Cities Report (WCR), a habitação corresponde a mais do que 70% do uso do solo na maioria das cidades, determinando a forma urbana e as densidades populacionais, proporcionando também emprego e crescimento económico (UN-Habitat 2016). O mesmo relatório prevê que até 2025 seja necessário disponibilizar, mundialmente, cerca de 1,6 biliões de habitações acessíveis. Face a esta realidade, o futuro sustentável das nossas cidades implica que a habitação deverá estar no centro das políticas urbanas.

3.    A habitação como produto de mercado

Para, John Logan e Harvey Molotch, o alojamento humano é entendido como uma commoditie, ou seja uma bem económico ou um serviço disponível em grandes quantidades e como tal passíveis de integrar a lógica da troca de mercado.

A terra por baixo, o telhado por cima, e paredes à volta constituem uma espécie de commoditie: um lugar para ser comprado e vendido, arrendado ou alugado, mas também para levar a vida. (…) este é o estatuto do alojamento para o imaginário das pessoas comuns. Os espaços/lugares podem (e devem) ser a base não só para carregar uma vida mas também para troca no mercado. A comodificação do lugar é fundamental para a vida urbana e necessária em qualquer análise dos mercados das sociedades (Logan e Molotch 2007, 1).

Nesta perspetiva, as habitações não são apenas lugares onde vivemos, a habitação é vista como uma mercadoria que pode ser comprada e trocada, criando valor; valor que Logan e Molotch denominam como valor de uso especial e valor de troca especial. Os lugares possuem valor de uso especial, pois não são descartáveis e estão disponíveis para um uso contínuo, e ao contrário de outras commodities, o seu preço pode não diminuir com o uso. Estes autores assinalam, contudo uma diferença crucial e inicial em relação aos outros bens de consumo - é a de que o lugar/espaço é indispensável e toda a atividade humana tem de ocorrer em algum lugar; para além disso, os espaços/lugares têm uma certa preciosidade para os utilizadores que não fazem parte do conceito convencional de commodity e, diferente de outras commodities indispensáveis, como alimentos, os lugares são uma mercadoria única, uma vez que os lugares oferecem acesso a outros valores de uso.

Pierre-Joseph Proudhon havia já referido em 1846, que o valor é a pedra angular do edifício económico, distinguindo as suas duas faces: “uma, que os economistas denominam valor de uso, ou valor em si; a outra, o valor de troca, ou de opinião” sendo que, “a utilidade é a condição necessária da troca, mas se removermos a troca o utilitário torna-se nulo pois estes dois termos estão indissoluvelmente ligados”.

O funcionamento do mercado do Real Estate assenta precisamente na relação que se estabelece entre os dois valores, de tal modo que a comodificação dos lugares e a política económica passaram a ter uma enorme influência no crescimento das cidades onde “o mercado do solo e das edificações, ordena o fenómeno urbano e determina o que pode ser a vida na cidade” (Logan e Molotch 2007, 17).

Aceitando esta hipótese, será também de admitir que o espaço, enquanto elemento base do planeamento urbano, passou a ser entendido como um produto, na lógica da economia de mercado, os seus usuários são consumidores de espaço, num processo de valorização baseado nas regras do jogo económico de oferta e procura das forças produtivas - nestas condições, a cidade converteu-se em objeto de intercâmbios de espaço ae edificanti. Uma questão se coloca: a de encontrar na produção atual de habitação, um equilíbrio entre o seu valor de uso e valor de troca, já que ambos valores são essenciais para a sustentabilidade do processo de urbanização e da tessitura do que podemos chamar - Fábrica da Cidade (Marques 2012). Ao tema do valor de uso e do valor de troca, vem juntar-se o tema do direito de uso e do direito de posse, ou de propriedade, ambos fortemente associáveis entre si.

Ao examinar as teorias esquerdistas da relação entre o solo e o planeamento urbano dos Estados Unidos, desde a Era Colonial até 1920, Richard Foglesong refere que o conflito central, na formação da cidade capitalista se encontrava entre “o carácter social do solo” – ou o seu valor como “bem colectivo, um recurso social” – e a sua propriedade e controle privado (Foglesong 1986). Se os capitalistas precisam do planeamento urbano (mesmo se não podem concordar entre eles a respeito do que querem exatamente), eles são igualmente ferozes protetores dos seus direitos de propriedade. Como refere Samuel Stein, os capitalistas sabem bem que as leis da propriedade privada são a única coisa que protege o seu negócio, e tendem consequentemente a suspeitar das intervenções do Estado que, mesmo teoricamente, podem prejudicar esses direitos de propriedade. Eles sabem que as suas terras seriam inúteis sem o planeamento urbano, mas rejeitam o planeamento como tal, considerando-o uma expressão do poder excessivo do Estado. Esta é, em suma, a contradição da propriedade (Stein 2019).

Este posicionamento, fortemente proteccionista do direito à propriedade não é recente, nem um exclusivo da lógica capitalista. O direito romano define a propriedade, jus utendi el abutendi re sua, quatenus juris ratio patitur, o direito de usar e abusar da coisa, na medida da razão da lei. Tentamos justificar a palavra abuso, dizendo que ela não expressa abuso insano e imoral, mas apenas o domínio absoluto.

No pensamento de Immanuel Kant (1797) - o direito de propriedade, ou seja dizer - a legitimidade de ocupação, procede do consentimento do Estado, o que implica originalmente uma ideia de possessão comum. O direito a uma coisa, diz Kant, é o direito ao uso de uma coisa privada, em função da qual eu estou em comunidade de possessão com todos os outros homens. Em virtude desse princípio, todo homem privado de propriedade pode e deve apelar para a comunidade, guardiã dos direitos de todos. O princípio subjacente à ideia de uma “comunidade de possessão”, de que nos falava Kant, apresenta-se como uma boa possibilidade para o entendimento da questão do direito à propriedade e a sua concomitante relação com o direito à habitação. (11)

Pela propriedade, a igualdade entre todos os homens torna-se definitivamente possível (Proudhon 1840, 115). A ideia de Proudhon corresponde ao proclamado na Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789 convertida em 1948 na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que no seu artigo 17º determina: toda a pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade e que ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.

Em “Para a Questão da Habitação” (1872-73) (12), Engels manifestava a sua discordância com esta ideia de Proudhon, ao referir que “hoje existem nas grandes cidades edifícios suficientes para, com uma utilização racional dos mesmos, se remediar de imediato toda a «falta de habitação» real (1984, 38) e ainda que “para os nossos operários das grandes cidades, a primeira condição de vida é a liberdade de movimento, e a propriedade de terra só pode ser para eles uma prisão. (…) O operário isolado pode, ocasionalmente, ter oportunidade de vender a sua casinha, mas no caso de uma … crise geral da indústria, todas as casas pertencentes aos operários afectados teriam de ser postas à venda no mercado, não encontrando, …, qualquer comprador, ou tendo de ser vendidas muito abaixo do preço de custo” (1984, 54). Este posicionamento de Engels apresenta uma grande atualidade, no contexto das mudanças e dinâmicas da economia urbana e dos mais recentes modelos de organização do trabalho, para a qual o termo “operário” se estende, hoje, a todos os prestadores serviços, agregando, colarinhos azuis aos brancos numa única classe de trabalhadores.

Logan e Molotch, explicam como os mercados imobiliários respondem a esta tendência histórica e quase natural pelo direito à propriedade. Segundo estes autores “talvez a «curiosidade» fundamental é a de que os mercados imobiliários são inerentemente monopolistas, provendo aos proprietários, enquanto classe, o completo controle sobre toda a oferta da commodity. (Assim) o proprietário individual possui também o monopólio sobre uma subsecção do mercado” (2007, 23).

Face às realidades económicas e culturais que caraterizam a sociedade atual e, tendo em atenção o referido anteriormente, cremos que o direito de propriedade não é a única forma através da qual deve ser garantido o acesso à habitação, uma vez que este pode ficar salvaguardado através do acesso ao uso de uma habitação. Só assim poderão ser justificadas as políticas públicas de habitação que defendem, como prioritário, o modelo de arrendamento urbano.

4.    Cada cidade tem o seu preço: o caso de Lisboa e Porto

Lendo os jornais diários, na sua seção dedicada ao imobiliário, ficamos como uma noção geral da oferta de imóveis que está a ocorrer por todo o país, destacando, nos anúncios publicitários, os mais diversos tipos habitações em venda.

Em Portugal, a actividade económica do setor imobiliário tende a concentrar-se, preferencialmente, nas três Áreas Metropolitanas do Porto (AMP), Lisboa (AML) e Algarve, e ainda na região autónoma da Madeira. Por sua vez, em todas estas regiões, verifica-se uma grande atratividade pelas suas principais cidades, designadamente Lisboa e Porto. Vários fatores podem justificar ou explicar o crescente investimento nestas regiões metropolitanas, de entre os quais se destacam o valor de localização, a forte atividade económica associada ao comércio e aos serviços ou a ligação direta aos centros nodais de mobilidade regional e internacional.

No caso das cidades, a sua base económica urbana, por ser tão estimulante para o setor produtivo e distributivo sempre reuniu motivos de interesse e atenção dos movimentos de capitais. A estes fatores acresce a “redescoberta” de Lisboa e do Porto como singularidades territoriais dado o seu potencial histórico/patrimonial, o enquadramento paisagístico e morfotipológico de excecional riqueza e o desenvolvimento de uma qualificada e diversificada atividade sócio-cultural que, desde o início do século, veio regenerar a vida urbana, conferindo-lhe um acentuado cosmopolitismo e internacionalização como destino turístico. O conjunto destes fatores tem contribuído para aumentar tanto o “preço da cidade” como a competitividade da renda fundiária atraindo compradores de solo, com oportunidades de investimento seguro, especialmente no setor da habitação.

De acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) português, no 2º trimestre de 2019, o preço mediano de alojamentos familiares em Portugal foi 1 031 €/m2, registando um aumento de +2,0% relativamente ao trimestre anterior e +6,4% relativamente ao trimestre homólogo. O preço mediano da habitação manteve-se acima do valor nacional nas regiões do Algarve (1 606 €/m2), Área Metropolitana de Lisboa (1 383 €/m2), Região Autónoma da Madeira (1 205 €/m2) e, pela primeira vez desde o 1º trimestre de 2016, a Área Metropolitana do Porto registou um preço mediano (1 034 €/m2) acima do valor nacional. A Área Metropolitana de Lisboa foi a sub-região onde se verificou a maior amplitude de preços entre municípios (2 446 €/m2). O Algarve e a Área Metropolitana do Porto apresentaram também diferenciais de preços entre municípios, superiores a 1000 €/m2 (Figura 1) (13).

 

Figura 1. Valor mediano das vendas por m² de alojamentos familiares, Portugal, NUTS III e município, 2ºT 2019. Fonte: INE, I.P., Estatísticas de preços da habitação ao nível local.



Lisboa distinguiu-se também, tal como em trimestres anteriores, por apresentar os preços da habitação mais elevados entre as sete cidades portuguesas com mais de 100 mil habitantes, em todas as classes de tipologia do alojamento consideradas.

As freguesias de Santo António, Misericórdia e Santa Maria Maior registaram preços medianos de venda de alojamento superiores a 4 500 €/m. No 2º trimestre de 2019, três das 24 freguesias de Lisboa registaram preços medianos de venda de alojamentos superiores a 4 500 €/m2: Santo António (5 131 €/m2) – que inclui a Avenida da Liberdade e áreas adjacentes – Misericórdia (4 718 €/m2) – que inclui a área do Bairro Alto e do Cais do Sodré –, Santa Maria Maior (4 509 €/m2) – que inclui a área do Castelo e Baixa/Chiado. As freguesias de Santa Clara, Lumiar, Carnide e São Domingos de Benfica registaram, no 2º trimestre de 2019, preços e taxas de variação inferiores aos da cidade de Lisboa. As freguesias de Santa Clara (2 023 €/m2), Olivais (2 353 €/m2) e Beato (2 380 €/m2) apresentaram valores inferiores a 2 500 €/m2. Curiosamente, a freguesia do Parque das Nações, tal como em trimestres anteriores, foi a única com uma evolução negativa do preço (Figura 2 e 3) (14).

 

Figura 2. Valor mediano e taxa de variação homóloga do valor mediano das vendas por m², Lisboa e freguesias, 2ºT 2019. Fonte: INE, I.P., Estatísticas de preços da habitação ao nível local.


 

Figura 3. Valor mediano das vendas por m² e taxa de variação homóloga do valor mediano das vendas por m2, Lisboa e freguesias, 2ºT 2019. Fonte: INE, I.P., Estatísticas de preços da habitação ao nível local.



Como antes referido, a Área Metropolitana do Porto registou em 2019 um preço mediano acima do valor nacional.

No 2º trimestre de 2019, a freguesia do Bonfim destacou-se entre as sete freguesias por apresentar, simultaneamente, um preço mediano (1 785 €/m2) acima do valor da cidade do Porto (1 762 €/m2) e uma taxa de variação homóloga (+45,4%) superior à verificada na cidade (+20,7%). A freguesia de Paranhos registou, simultaneamente, um preço mediano (1 500 €/m2) e uma variação homóloga (+16,6%) inferiores aos valores

 

Figura 4. Valor mediano e taxa de variação homóloga do valor mediano das vendas por m², Porto e freguesias, 2ºT 2019. Fonte: INE, I.P., Estatísticas de preços da habitação ao nível local.



Figura 5. Valor mediano das vendas por m² e taxa de variação homóloga do valor mediano das vendas por m2, Porto e freguesias, 2ºT 2019. Fonte: INE, I.P., Estatísticas de preços da habitação ao nível local.




verificados na cidade do Porto. As freguesias de Campanhã e Ramalde registaram, no 2º trimestre de 2019, um preço mediano (1 114 €/m2 e 1 642€/m2, respetivamente) inferior ao da cidade do Porto, mas com taxas de variação, face ao período homólogo (+24,2%, e +22,9%, respetivamente), superiores à registada na cidade. No período em análise, tal como no trimestre anterior, a freguesia da Campanhã registou o menor preço mediano (1 114 €/m2) (ver Figura 4 e 5).

Os dados anteriores permitem concluir que os valores medianos de venda de habitação nos municípios de Lisboa, Porto, Loulé e Funchal são os mais elevados do país. Os valores de Lisboa destacam-se de todos os restantes, apresentando valores que mais do que duplicam os valores da cidade do Porto.

Por outro lado, vemos que nos municípios de Lisboa e do Porto, os valores de venda não se distribuem homogeneamente pelas diversas freguesias, existindo freguesias com valores/m2 significativamente distintos, com variações superiores a 100% (ex: em Lisboa entre a freguesia da Misericórdia e a freguesia de Sta. Clara e no Porto entre a UF de Aldoar, Foz do Douro, Nevogilde e a freguesia de Campanhã).

Na base desta diferença de preços tão acentuada, podem estar os processos de reabilitação urbana que, desde 2009, vêm a ser implementados pelas câmaras municipais. Nos termos da legislação publicada sobre a matéria (15):

A reabilitação urbana assume-se hoje como uma componente indispensável da política das cidades e da política de habitação, na medida em que nela convergem os objectivos de requalificação e revitalização das cidades, em particular das suas áreas mais degradadas, e de qualificação do parque habitacional, procurando -se um funcionamento globalmente mais harmonioso e sustentável das cidades e a garantia, para todos, de uma habitação condigna.

Sendo objetivo desenvolver políticas nos domínios do urbanismo, habitação, ação social, cultura, mobilidade, ambiente urbano, economia, património imobiliário, daí resultou também uma clara tendência para o aumento do valor dos imóveis, o que cativou o investimento privado e a procura de espaço qualificado, em áreas urbanas consideradas de excelência.

Em consequência, os preços das casas não cessam de aumentar, sobretudo nos centros históricos e para além das suas “fronteiras” para zonas urbanas, classificadas prime pelo Real Estate. Encerrava-se assim um longo período de decadência urbana e desertificação populacional das áreas centrais, verificando-se em pouco mais do que uma década, um retorno à cidade e um processo de intensa ocupação e uso do solo.

Porém, a pretendida regeneração urbana veio a ter alguns impactes sociais contrários aos objetivos inicialmente traçados. Por força das alterações legislativas na lei do arrendamento urbano (2012) as populações residentes, com contratos de aluguer foram despejadas das suas habitações, ao mesmo tempo que se verificou um enorme aumento dos valores das rendas.

Como se constata pelos dados estatísticos (INE), o valor de venda das habitações, nestas zonas centrais e históricas, é o hoje o mais elevado, tanto em Lisboa como no Porto, e os seus centros têm vindo a perder os habitantes tradicionais, para uma nova população de elevada renda. Um processo normalmente identificado como gentrificação.

5.    Da gentrificação do centro à especulação do solo nas periferias

São antigas as problemáticas das desigualdades urbanas resultantes dos processos de abandono e gentrificação e os aspetos com ela relacionados de segregação socio-territorial, resultantes da deterioração social e urbanística de determinadas partes das cidades, que passam a ser ocupadas por uma população de médio e alto rendimento em muitos casos através de operações de reabilitação urbana.

Em 1977. O House Subcommittee para a City de Nova Iorque defendia a gentrificação com base em três pressupostos (16):

“O abandono é doloroso, mas inevitável. As políticas públicas não podem revertê-lo, no melhor podem limitar o abandono a certos bairros. Para tanto, requer-se uma política de redução planeada: abandonar certos bairros para salvar outros.

A gentrificação melhora a qualidade da habitação, contribuindo para a base tributária e revitaliza áreas chave da cidade através do setor privado. O desalojamento que provoca é trivial. Portanto, a cidade deve seguir uma política de gentrificação fomentada através de incentivos fiscais, alterações no zonamento urbano ou qualquer outro meio disponível.

A gentrificação é a única solução realista contra o abandono, (…) especialmente em momentos de stress fiscal, (…). Assim, a gentrificação dos bairros abandonados é particularmente desejável.

Para estes gestores políticos nova iorquinos, a gentrificação representava uma oportunidade para a revitalização urbana. Embora não fosse essa a hipótese colocada em Portugal, pelas políticas públicas de reabilitação urbana, na prática elas poderão ter facilitado um processo semelhante de gentrificação das áreas centrais das cidades de Lisboa e do Porto, sem que tenham sido devidamente acautelados os seus impactes sociais e culturais.

Num artigo publicado em 1985, Peter Marcuse colocava a questão: Como pode a gentrificação e o abandono ter lugar ao mesmo tempo, virtualmente lado a lado? Mais do que ser a cura para o abandono, a gentrificação piora o processo.

Sean Zielenbach, procura responder à questão que coloca Marcuse, “reconhecendo a inerente interpelação entre investimento e a melhoria de condições de vida para os residentes destes bairros propõe-se uma definição de revitalização em duas vertentes: a melhoria das condições económicas dos residentes existentes e a re-integração do bairro no sistema de mercado” (Zielenbach 2000, 31).

Para Francisco Gutiérrez e Luz Herrera (2011), o diagnóstico dos fenómenos que caracterizam a dinâmica territorial das áreas urbanas, nas Inner-City, requer uma observação diacrónica e complexa que se desenvolve:

… a partir de su imagen como proceso histórico en el que se reconoce una dialéctica «sociopolítico-espacial» propia, es decir, un condicionamiento recíproco (o interpenetración) entre aspectos de la civitas (diferencias étnico-culturales, desigualdades sociales y económicas …), la polis (posicionamientos y medidas institucionales, carateres del tejido asociativo, organizaciones y acciones ciudadanas …) y la urbs (aspectos histórico-paisagísticos, urbanísticos, arquitectónicos, espaciales …)

Na sequência desta abordagem metodológica transversal de Zielenbach, Gutiérrez e Luz Herrera, pensamos que outro aspeto a ter em conta na estruturação das dinâmicas territoriais, é o das relações do centro(s) com o resto da cidade e a sua periferia urbana, procurando distinguir os fatores exógenos que podem influenciar os processos de abando e gentrificação.

Seria assim oportuno reavaliar os mecanismos urbanísticos que podem por em causa as funções históricas e socio-espaciais das zonas centrais, ponderando igualmente as oportunidades de (re)desenvolvimento urbano que se colocam nos territórios das regiões periféricas.

Ao visarem estimular a requalificação dos edifícios, através de incentivos fiscais e alterações do quadro legislativo, criaram-se as condições favoráveis à atração de capitais privados, os quais neste momento aparentam ser aplicados de modo concomitante no centro e nas periferias urbanas, não seguindo a dinâmica de investimento e desinvestimento, na sequência dos ciclos de urbanização e desurbanização que têm permitido explicar os estágios na construção do ambiente construído das áreas metropolitanas.

Verificamos hoje que, a par da oferta de habitação no centro da cidade, existe uma oferta alternativa em algumas áreas suburbanas. Essa situação ocorre em municípios da AML e da AMP, onde o crescimento de novas construções tem conseguido superar os padrões inestéticos e, a introdução nesses espaços de uma multiplicidade de atividades e infraestruturas vêm a proporcionar um aumento significativo da qualidade de vida. Esta nova realidade «pós-suburbana» tem vindo a cativar o investimento no imobiliário, reduzindo-se o efeito de rental gap (17) que explica a disparidade entre o rendimento corrente da propriedade e o potencial rendimento futuro dos investimentos em função dos ritmos cíclicos do processo de investimento de capital no espaço central e na periferia.

6.    Políticas públicas de habitação

Se o direito a uma habitação adequada se inclui entre os direitos fundamentais do homem, a existência deste direito não implica necessariamente o acesso à propriedade da habitação por parte dos indivíduos. Esse direito pode referir-se tão só ao uso e não à propriedade de uma habitação adequada (Marques 2012).

Por outro lado, a habitação tende a deixar de ser um direito a garantir por si só, e começa a entender-se como parte ativa e fundamental de uma política da cidade, que contempla diversos padrões sustentáveis de qualidade de vida.

Num artigo publicado em 1984, E. M. McLeay referia que durante este último meio século, depois do segundo pós-guerra, “a formulação da política habitacional tem demonstrado um certo optimismo social (...) com a ideia de que construindo o mais possível, desaparecem os problemas sociais e económicos relacionados com a habitação” (McLeay 1984).

Esta ideia de construir habitação para todos não mudou muito ao longo do tempo. Muito recentemente, em 2017, Sadiq Khan, Mayor de Londres, referia o seguinte (18):

“Londres não construiu nem de perto o número de casas novas e acessíveis que precisamos. Em consequência, muitos londrinos não têm capacidade para adquirir ou arrendar uma casa decente. Sabemos não ser capazes de reverter a crise habitacional de Londres da noite para o dia. Vai ser uma maratona, não um sprint. Mas estou determinado a começar, trabalhando com conselhos, associações de moradores, a indústria da construção, o Governo Central e os próprios londrinos. (…) Quero construir uma cidade para todos os londrinos - um lugar onde nenhuma comunidade se sente deixada para trás, e onde todos podem beneficiar das oportunidades que Londres tem para oferecer. Habitação nova e acessível é essencial para este objetivo, e juntos, podemos construir as casas que os londrinos precisam.”

Considerando o crescente aumento da população londrina (+ 70.000 novos habitantes todos os anos) o Mayor propõe aumentar a quantidade de habitação a preços acessíveis, a disponibilizar a privados em pelo menos 40 por cento e apoiar os Registered Providers a desenvolver programas de habitação com pelo menos 50 ou 60 por cento de habitação a preços acessíveis, procurando com estas medidas resolver a questão do acesso à habitação (19).

Em resultado das mudanças sociais e económicas e das significativas transformações urbanas que vêm a ocorrer nas duas últimas décadas, ambos países ibéricos, com as suas especificidades próprias, vêm também a adotar novas políticas públicas de habitação.

6.1. O caso português

No caso português, foi publicada em 2018 a Nova Geração de Políticas de Habitação, 1.º Direito — Programa de Apoio ao Acesso à Habitação (20). No preâmbulo do decreto-lei, o legislador enfatiza o papel central da habitação e da reabilitação para a melhoria da qualidade de vida das populações, para a revitalização e competitividade das cidades e para a coesão social e territorial. No Artigo 3.º nas alíneas a), c) e d) reforçam-se dois princípios vertidos diretamente da Nova Agenda Urbana (UN-Habitat 2016).

a) Princípio da acessibilidade habitacional, segundo o qual uma pessoa ou um agregado tem direito a que sejam criadas condições para que os custos com o acesso a uma habitação adequada e permanente sejam comportáveis pelo seu orçamento sem comprometer a satisfação de outras das suas necessidades básicas;

… …

c) Princípio da integração social, no sentido de o apoio ao acesso à habitação não significar o apoio a qualquer solução habitacional, devendo ser favorecidas soluções de ocupação dispersas em zonas habitacionais existentes ou que garantam a diversidade social e estejam inseridas no tecido urbano, assim se promovendo a integração da pessoa ou do agregado nas comunidades residentes e evitando-se fenómenos de segregação e de exclusão socio-territorial;

d) Princípio da estabilidade … na facilitação do acesso à habitação por parte das pessoas mais desprotegidas, … providas, não apenas de uma habitação, mas das condições habitacionais, financeiras e sociais necessárias à sua autonomização e à estabilidade das soluções apoiadas …

Em 2019, o Governo português publicou nova legislação em matéria de arrendamento urbano, com Medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade (21). Esta nova legislação veio produzir alterações significativas ao regime jurídico do arrendamento urbano que, em 2012, havia procedido à liberalização do mercado do arrendamento, a que fizemos antes referência.

No mesmo sentido estratégico e de objetivos destes dois instrumentos de atuação, foi também publicado, em 2019, o Programa de Arrendamento Acessível (22) que visa promover uma oferta alargada de habitação para arrendamento a preços reduzidos, a disponibilizar de acordo com uma taxa de esforço compatível com os rendimentos dos agregados familiares.

6.2. O caso espanhol

No caso espanhol verifica-se igualmente um realinhamento das políticas públicas de habitação à Nova Agenda Urbana, onde se destaca um termo que nos parece bastante interessante, o de «disfrute de vivenda», o qual revela um entendimento do habitar como algo que vai para além da necessidade de um abrigo e de um direito social. Sugere-se a ideia de na relação do homem com a habitação devem ser tidos em atenção aspetos como o conforto ou o bem-estar, ou seja um sentido de satisfação existencial (23):

La garantía constitucional del disfrute de una vivienda digna y adecuada,        como responsabilidad compartida de todos los poderes públicos, se ha        venido procurando durante los últimos años mediante distintas políticas,        entre las cuales, las correspondientes al ámbito fiscal y de ayudas públicas    para el disfrute de viviendas libres o protegidas, correspondientes al ámbito fiscal y de ayudas públicas para el disfrute de viviendas libres o protegidas,

Se recorremos ao Plan Estatal de Vivienda 2018-2021 (24) podemos enquadrar o contexto socioeconómico e compreender as estratégias que deram origem às novas políticas públicas de habitação em Espanha.

La crisis económico-financiera se manifestó con especial gravedad en el sector de la vivienda, y puso de manifiesto la necesidad de reorientar las políticas en esta materia. En efecto, tras un largo periodo produciendo un elevado número de viviendas, se había generado un significativo stock de vivienda acabada, nueva y sin vender (en torno a 680.000 viviendas). Ello contrastaba con las dificultades de los ciudadanos para acceder al disfrute de una vivienda, especialmente de los sectores más vulnerables, debido a la precariedad y debilidad del mercado de trabajo, a lo que se unía la restricción de la financiación por parte de las entidades de crédito.

En paralelo, el mercado del alquiler de vivienda en España era muy débil, sobre todo si se comparaba con el de los países de nuestro entorno. Como se indicaba en el propio Real Decreto 233/2013, el alquiler significaba en España un 17 % frente al 83 % del mercado de la vivienda principal en propiedad. En la actualidad, pese a observarse un gran dinamismo en la actividad de arrendamiento de vivienda y un significativo aumento del porcentaje de población que reside en alquiler, que ha alcanzado el 22,2 % en España según datos de Eurostat, aún se encuentra alejado de la media de la Unión Europea, situada en el 30,8 %.

… …

En este contexto, el Plan Estatal 2013-2016, sobreponiéndose al carácter unitario y constante de los planes anteriores, abordó esa difícil problemática, acotando las ayudas a los fines que se consideraban prioritarios y de imprescindible atención, e incentivando al sector privado para que, en términos de sostenibilidad y competitividad, pudieran reactivar el sector de la construcción a través de la rehabilitación, la regeneración y la renovación urbanas y contribuir a la creación de un mercado del alquiler más amplio y profesional que el existente.

Da leitura do texto vemos que a questão da habitação está a ser abordada numa perspetiva de intervenção social distinta da que há uma década contribuiu para gerar a crise económico-financeiras da bolha do imobiliário. “Hoy debemos insistir en el cambio de modelo iniciado con el Plan Estatal 2013-2016, y así, el Plan Estatal 2018-2021 mantiene la apuesta decidida por fomentar el alquiler y la rehabilitación con carácter prioritario, si bien introduce algunas modificaciones que ajustan y mejoran los planteamientos del anterior plan” (25).

6.3. Alinhamento das políticas públicas com as convenções internacionais

Em 1991, o Committee on Economic, Social and Cultural Rights reconheceu o direito a uma habitação, considerando o conceito de “habitação adequada” como sendo determinado em parte por um conjunto de fatores sociais, económicos, climáticos, e ecológicos entre outros fatores, sem deixar de identificar alguns aspetos que devem ser tomados em atenção, independentemente de qualquer contexto particular, como sejam: segurança jurídica da posse; disponibilidade de serviços, materiais, equipamentos e infra-estruturas; fácil acesso financeiro; habitabilidade; acessibilidade; localização e adequação cultural.

A Nova Agenda Urbana - Habitat III (2016), veio acrescentar ao enquadramento da carta do direito à habitação alguns aspetos relevantes, como o fortalecimento da relação espacial com o tecido urbano e a integração socioeconómica das comunidades marginalizadas (parágrafos 32 e 33).

    32. … promover o desenvolvimento de políticas e abordagens habitacionais     integradas que (…) incorporem a alocação de habitações adequadas, a preço     justo, acessíveis, eficientes, seguras, resilientes, bem conectadas e bem             localizadas, prestando especial atenção ao factor de proximidade e ao                 fortalecimento da relação espacial com o tecido urbano (…).

    33. … estimular a provisão de diversas opções de habitação adequada (…)         para os membros de diferentes grupos de rendimento, tendo em conta a             integração socioeconómica e cultural das comunidades marginalizadas, as         pessoas sem-abrigo e em situação de vulnerabilidade, procurando evitar a         segregação social.”

Na visão da Nova Agenda Urbana, o conceito de “habitação adequada” implica abandonar a prática da construção de bairros sociais isolados e descontextualizados do tecido urbano, evitando desse modo a formação de ghettos e territórios de marginalização social, normalmente identificados com populações de baixo rendimento e/ou estado de segregação social.

Tendo sido superadas as problemáticas socioeconómicas que afetaram ambos países ibéricos, embora com as suas especificidades próprias, os dois Governos, português e espanhol, vêm a adotar estratégias políticas muito semelhantes no que concerne a relação da função social do Estado com o Direito à Habitação.

A par da reconceptualização das políticas públicas de habitação em Portugal e Espanha, que centram o seu enfoque no arrendamento urbano mais do que apostar na construção de habitação nova. Pese o seu alinhamento com os objetivos da Nova Agenda Urbana, designadamente contribuir para uma maior segurança, estabilidade e atratividade do arrendamento habitacional, os resultados práticos, desta políticas ibéricas, poderão ser desvirtuados, quer pela resistência do mercado imobiliário ao modelo de arrendamento urbano, quer por efeito do surgimento de outros tipos de arrendamento temporário, como o Alojamento Local, que no caso português tem vindo a concorrer, com vantagem, com o mercado tradicional de arrendamento urbano.

7.    Dar com uma mão e tirar com a outra

E. M. Mcleay (1984) considera que, por parte do Estado, a percepção dos benefícios sobre os custos da política de apoio à compra de habitação, é vista como um assunto distributivo mais do que redistributivo, dado que a compra da habitação surge associada ao direito de propriedade, em que o beneficiário toma para uso permanente um bem que não terá de partilhar com a sociedade.

Seguindo esta linha de pensamento, desde os anos 80 (séc. XX) existe em Portugal uma estratégia de políticas públicas de habitação, mais focada numa «política social de habitação» do que numa «política de habitação social».

Quer isto dizer que o Estado tem procurado libertar-se de compromissos com o «investimento na pedra», ou seja, tem deixado de ser construtor de habitação de interesse social, incentivando os cidadãos à compra de habitação, recorrendo à bonificação das taxas de juro sobre os créditos contratados, à isenção dos impostos sobre bens imóveis (durante os primeiros dez anos e para habitação própria), ou à dedução em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS).

Assim se explica que apesar das sérias consequências sociais da crise do imobiliário (2008-2014) a regulação da banca e a monotorização do mercado de habitação continue insuficiente e muito liberal. Por outros lado, explica-se que só muito recentemente o Governo português, publicou legislação que visa garantir o acesso à habitação e proteger os arrendatários, uma vez que a regulamentação e controle do Estado sobre o mercado do arrendamento, mais do que qualquer outro assunto da política da habitação, divide transversalmente a sociedade, dada a sua interferência direta com os direitos da propriedade privada.

Contudo, ao mesmo tempo, que tenta intervir no mercado de arrendamento urbano e minimizar os impactos sociais da especulação imobiliária, o Estado faz publicar em 2019, o regime das Sociedades de Investimento e Gestão Imobiliária (SIGI) (26) às quais concede benefícios fiscais (27) muito atrativos, podendo qualquer um, incluindo fundos de pensões, investir em imobiliário comprando ações dessas sociedades. Ora, como sabemos, as SIGI olham para um bem essencial como a habitação, como um ativo financeiro e transformam a figura tradicional do senhorio numa distante empresa, pressionada pelos seus acionistas para ter lucro. Eis o que se refere no Programa do XXI Governo sobre as Sociedades de Investimento e Gestão Imobiliária:

O decreto-lei (n.º 19/2019) concretiza os objetivos previstos no Programa do XXI Governo Constitucional, o qual vê a criação das SIGI, como um novo veículo de promoção do investimento e de dinamização do mercado imobiliário, em particular do mercado de arrendamento. Acompanha-se (na perspectiva do programa do Governo), a tendência observada noutros mercados europeus de referência - que há já alguns anos regulam este tipo de sociedades, habitualmente conhecidas por Real Estate Investment Trusts - beneficiando da sua experiência”.

Como sabemos, as SIGI são um tipo de sociedade de investimento imobiliário que se constitui e opera, nos termos do presente decreto-lei, segundo as disposições legais aplicáveis às sociedades anónimas. Têm como atividade principal a aquisição de direitos reais sobre imóveis, para arrendamento ou outras formas de exploração económica, a aquisição de participações em sociedades com objeto e requisitos equivalentes e a aquisição de participações em fundos de investimento imobiliário cuja política de distribuição de rendimentos seja similar, e as suas ações são obrigatoriamente negociadas em mercado.

Entretanto, o alojamento local já envolve autênticas empresas e fundos, com centenas de andares cada, para alugar a turistas. Trata-se de uma atividade maioritariamente gerida por sites ou plataformas informáticas de busca e reserva como a Airbnb (28). Esta modalidade de negócio tem vindo a acentuar a gentrificação em muitos bairros históricos, cria graves problemas de relacionamento comunitário em condomínios, além de afetar sectores já estabelecido da economia, como a rede hoteleira.

Pensamos que a expressão popular “dar com uma mão e tirar com a outra” se aplica ao procedimento que temos vindo a descrever neste capítulo, sobre as políticas públicas de habitação, sendo evidente um constante dilema entre proteger o cidadão e incentivar a economia através da atividade do mercado imobiliário.

8.    Considerações finais

As mudanças na economia global urbana associadas às substanciais mudanças das estruturas demográficas e práticas sociais, a que se junta a recentemente preocupação com os impactes da alterações climáticas, obrigam a uma reavaliação das transformações em curso e a uma definição de estratégias adequadas às novas realidades sócio-territoriais das nossas cidades. Essa reavaliação deverá ter em conta a competitividade urbana que se tornou um dos assuntos centrais das atuais políticas públicas, implicando a combinação de novos desafios e oportunidades e exigindo elevados níveis de dinamismo na liderança e governância das cidades.

A atuação do Estado em matéria de habitação deve implicar que a intervenção pública se constitua como efectiva alternativa à atuação do setor privado, e não se restrinja a um papel quase exclusivamente de regulador e de gestão de conflitos através de intervenções de carácter reativo.

Os instrumentos legislativos sobre o arrendamento urbano têm adotado posições ideológicas mais do que uma estratégia de planeamento e de gestão a médio ou a longo prazo do parque habitacional. Se a liberalização do mercado pode ser contraproducente, o excesso de protecionismo tenderá à paralisia do sistema, o qual durante décadas impediu o renascimento dos centros urbanos com prejuízo para senhorios e inquilinos.

A instabilidade das políticas públicas de habitação e de cidade, revelam inconsistência de pensamento estratégico em favor de oportunidades partidárias e ciclos governativos. Esta realidade está patente na forma como o XXI Governo português, de raiz socialista, beneficiou do forte incremento do mercado imobiliário entre 2015/2019 em grande parte resultado, da legislação conservadora do anterior Governo, que em 2012 e 2014 criou as condições para retirar os inquilinos dos imóveis arrendados, veio desburocratizar o licenciamento das obras e agilizar as operações de reabilitação urbana e arquitectónica. Só em 2018/19 irá o XXI Governo irá publicar legislação a revogar aqueles diplomas, criando uma situação de incerteza tanto para proprietários como arrendatários.

Colocamos a hipótese de ser necessário manter em prespetiva uma dupla opção na abordagem à questão da habitação, ou seja, uma «política social de habitação» a par de uma «política de habitação social» a ser aplicadas em função das realidades territoriais locais e não numa única visão nacional.

Igualmente, deve ser colocada a ideia de que a garantia de acesso a uma habitação adequada pode significar o acesso ao uso de uma habitação, o que não implica ter de garantir o acesso à propriedade de uma habitação.

As políticas públicas podem ser mais eficientes se conseguirem desenvolver estratégias que permitam equilibrar a relação entre as vantagens e os constrangimentos que tendem a colocar em conflito o direito de acesso a uma habitação e o direito à propriedade.

Notas

(1) Eurostat, Housing statistics. Data: extraído em Junho de 2019.

(2) Idem.

(3) Idem.

(4) Sobrecarga das despesas de habitação por regime de propriedade, 2017 (% percentagem específica de população) Fonte: Eurostat (ilc_lvho07c) e (ilc_lvho07a).

(5) Cholodilin, Konstantin A.; Michelsen, Claus (2019) : High risk of a housing bubble in Germany and most OECD countries, DIW Weekly Report, ISSN 2568-7697, Deutsches Institut für Wirtschaftsforschung (DIW), Berlin, Vol. 9, Iss. 32, pp. 265-273, http://dx.doi.org/10.18723/diw_dwr:2019-32-1

(6) Lei n.º 31/2012 de 14 de agosto, que procede à revisão do regime jurídico do arrendamento urbano, alterando o Código Civil, o Código de Processo Civil e a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro.

(7) Decreto-Lei n.º 53/2014 de 8 de abril, entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 95/2019 de 18 de julho.

(8) Decreto -Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto, que aprova regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local.

(9) Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional. O artigo 90.º-A da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, conforme alterada pela Lei n.º 29/2012, de 9 de agosto, prevê a concessão de uma autorização de residência a nacionais de Estados terceiros, para efeitos do exercício de uma atividade de investimento, uma vez verificado o preenchimento de determinados requisitos.

(10) Lei n.º 31/2012 de 14 de agosto, sub-alíneas iii) e iv) da alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º - Definições.

(11) Immanuel Kant, A Metafísica dos Costumes (Die Metaphysik der Sitten), Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito (Metaphysische Anfansgründe Rechtslehre) 1797.

(12) Escrito por Engels de Maio de 1872 a Janeiro de 1873. Publicado pela primeira vez no jornal Volksstaat, nºs 51, 52, 52, 53, 103 e 104, de 26 e 29 de Junho, 3 de Julho, 25 e 28 de Dezembro de 1872; n.ºs 2, 3, 12, 13, 15 e 16, de 4 e 8 de Janeiro, 8, 12, 19 e 22 de Fevereito de 1873; e em três separatas, em Leipzig, em 1872 e 1873. Fonte: Editorial Avante.

(13) Informação à comunicação social, Estatísticas de Preços da Habitação ao nível local, 2º trimestre de 2019, dados de 31 de outubro de 2019. Fonte: Instituto Nacional de Estatística (NE)

(14) Idem.

(15) Decreto-Lei n.º 307/2009 de 23 de Outubro.

(16) HOUSE COMM. ON BUDGET, FINANCE, AND URBAN AFFAIRS, SUBCOMM. ON THE CITY, 95TH CONG., lst SESS., HOW CITIES CAN GROW OLD GRACEFULLY (Comm. Print 1977).

(17) Teoria desenvolvida em 1979 por Neil Smith.

(18) HOMES FOR LONDONERS, Supplementary Planning Guidance (SPG) 2017, MAYOR’S FOREWORD, p. 3..

(19) HOMES FOR LONDONERS, Supplementary Planning Guidance (SPG) 2017.

(20) Decreto-Lei n.º 37/2018 de 4 de junho.

(21) Lei n.º 13/2019 de 12 de fevereiro, que altera a Lei nº 31 2012 de 14 agosto.

(22) Decreto-Lei n.º 68/2019 de 22 de maio.

(23) In Código de la Vivienda del Estado, Selección y ordenación: César Alonso González, Beatriz Pedrejón Blanco, José Mª Iglesias Vallejo, Edición actualizada a 18 de diciembre de 2018, BOLETÍN OFICIAL DEL ESTADO, p. 633,  § 32, Real Decreto 106/2018, de 9 de marzo, por el que se regula el Plan Estatal de Vivienda 2018-2021, Ministerio de Fomento «BOE» núm. 61, de 10 de marzo de 2018, Última modificación: sin modificaciones, Referencia: BOE-A-2018-3358.

(24) Idem.

(25) Código de la Vivienda del Estado, § 32, Real Decreto 106/2018, de 9 de marzo, Plan Estatal de Vivienda 2018-2021.

(26) Decreto-Lei nº19/2019 de 28 de janeiro.

(27) É aplicável às SIGI o regime fiscal previsto nos artigos 22.º e 22.º-A do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), designadamente estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.

(28) A Airbnb foi fundada em Agosto de 2008 por Brian Chesky, Joe Gebbia e Nathan Blecharczyk em São Francisco, na Califórnia. A seu funcionamento pode ser enquadrado no âmbito da GIG economy.

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Notas editoriais gerais:

(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.

(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos autores dos artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos mesmos artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é, igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que deverão referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações. 

(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.

 

Habitação e o Direito Urbanístico e Ambiental em Portugal e Espanha – Infohabitar # 850

Infohabitar, Ano XIX, n.º 850

Edição: quarta-feira, 1 de março de 2023

Infohabitar

Editor: António Baptista Coelho, Investigador Principal do LNEC

abc.infohabitar@gmail.com, abc@lnec.pt

A Infohabitar é uma Revista do GHabitar Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação atualmente com sede na Federação Nacional de Cooperativas de Habitação Económica (FENACHE) e anteriormente com sede no Núcleo de Arquitectura e Urbanismo do LNEC.

Apoio à Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.

 

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