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Infohabitar,
Ano XVI, n.º 721
A questão da audição jurídica de
crianças fora dos Tribunais e outros aspetos interventivos ao nível do
território e defesa de humanos, e não-humanos, mais vulneráveis:
pelo sonho é que vamos! – o projeto da Quinta do Zurro (QZ)
Maria
Paula Elvas (QZ), João Lutas Craveiro (LNEC), Teresa Nogueira (QZ)
Ilustrações de António Baptista Coelho
(LNEC)
A Quinta do Zurro (QZ) é
um projeto de intervenção fundado em 2013, por Maria Paula Elvas (advogada) e
tendo como paixão as crianças e os animais, os seres mais vulneráveis.
Objetivo? Contribuir para a felicidade… A felicidade diferente dos que nasceram
diferentes ou que se tornaram diferentes! A felicidade dos que têm a felicidade
suspensa… A felicidade da liberdade adiada… E a felicidade de proteger o olhar
terno de um burro… Ou de outros olhares em extinção… Este é o sonho da QZ! Mas
como os sonhos têm a capacidade de nos alertar para as necessidades dos outros
e de se multiplicarem, este sonho metamorfoseou-se numa espécie de polvo: mas o
polvo tem força suficiente para lutar com um tubarão! O meu sonho também tem
força para lutar contra os tubarões.
Os polvos usam também os seus vários membros, e a QZ tem muitos membros para a
emancipação da esperança, da proteção dos mais débeis e vulneráveis à exposição
a todas as formas de violência. Não há sonho que não privilegie a alma e o
coração. Os animais têm coração. Os animais têm alma, como os espaços têm
memória. E as crianças todos os sonhos do mundo, e o futuro todo pela frente!
A QZ não é uma receita milagrosa para todos os males,
mas é uma possibilidade de intervir. De sonhar e de continuar a pensar que as
soluções (muitas vezes) são simples, não são necessariamente holísticas nem
podem servir para tudo, mas requerem (sempre) vontade e confiança. Mesmo
problemas que parecem demasiado complexos, e que nunca encontrarão uma reposta
definitiva (como as alterações climáticas ou a violência, que se integram
dentro do que tem sido designado como wicked
problems, problemas que dificilmente se poderão dar como inteiramente
controlados ou mitigados), apelam a soluções progressivas, pequenos passos e decisões que multiplicam exemplos positivos. É
assim a receita da QZ! Na defesa de soluções que passam por pequenos-grandes
compromissos e por utilizar certos ingredientes
ao nosso alcance.
Passa por misturar, por exemplo, animais e os animais
de grande porte (de raças autóctones em vias de extinção) com pessoas
vulneráveis. Afinal, misturam-se as vulnerabilidades dos ecossistemas e as
comunidades locais – sob uma evolução dos territórios que levou à migração para
as grandes cidades e o definhamento das lides tradicionais, em contacto direto
com a terra e os animais de quinta, isolando ainda mais as vulnerabilidades dos
seres mais frágeis, especialmente crianças vítimas de abusos sexuais e de todas
as formas de violência doméstica.
As vulnerabilidades dos ecossistemas e comunidades
locais refletem, pois, o abandono de práticas agrícolas tradicionais e a
falência de culturas rurais de pequenos e médios agricultores, num tempo já
recuado em que as crianças tinham, desde cedo, contacto com os animais que
também integravam a economia doméstica. A casa, como unidade doméstica de habitação, muitas vezes com uma divisão para
os animais (que também aqueciam a casa e lhe dava mais conforto no inverno),
confundia-se com a unidade de produção:
a casa, e a sua envolvente, constituiam, pois, um mundo inteiro na relação com os animais, os vizinhos, e as gentes
da vila que se encontravam no mercado ou na igreja. Era uma sociedade de interconhecimento, como
dizem os antropólogos, onde toda a gente se conhece!
Não se trata, no entanto, de voltar a tempos
passados, nem de defender uma sociedade ruralizada, muitas vezes (também)
fechada sobre si própria, e escondendo igualmente muitas formas de violência e
de discriminação (desde logo, da mulher, nos trabalhos agrícolas e no salário,
mas também das crianças – tantas vezes privadas de ir à escola – e mesmo dos
animais que, contudo, podiam ser bem acarinhados enquanto disponham de boa
saúde... e eram úteis para a economia familiar e as tarefas dos campos!).
Não, trata-se de um regresso
ao futuro, por uma sociedade mais justa,
ecologicamente equilibrada, uma ecologia
social realizada nesse comunalismo
libertário (de que falava Murray Bookchin)... Um municipalismo emancipado
no envolvimento das populações e das instâncias judiciais e políticas, no
desenvolvimento de compromissos que tenham em conta a interdependência entre os
sistemas sociais e os sistemas ambientais.
No limite, trata-se de um novo tipo de Contrato Social que integre novos valores de sustentabilidade e de relação
entre seres humanos e não-humanos, a sociedade e a natureza. O Contrato Social descrito por
Jean-Jacques Rousseau apela, assim, tonificando a sua matriz de
co-responsabilidade, a um Contrato
Natural (Michel Serres) com a Terra e
os outros animais: pois não importa se os
outros animais pensam (e certamente que pensam), mas se são capazes de
sentir dor e prazer. Este carácter senciente, já reivindicado há séculos pelo
Utilitarismo enquanto corrente filosófica, precisa ser plenamente reconhecido:
em cada ser vivo.
Porquê defender as raças autóctones portuguesas?
Como a QZ defende, as raças autóctones representam um
património genético muito valioso. As diferentes raças autóctones de bovinos,
ovinos, caprinos, suínos e equinos são o resultado da evolução dos animais, de
determinadas espécies, no sentido de se adaptarem aos ambientes que suportaram
a sua existência – especialmente na relação com os humanos.
Quando uma população vive, durante muitas gerações,
sob as mesmas condições ambientais consegue um elevado grau de adaptação e
uniformidade, desenvolvendo-se melhor nestas condições que outras raças que
provenham de outras regiões. Estes animais podem ser originários das regiões
onde se inserem ou terem mudado para esses mesmos locais por migração,
consequência de alterações fisiográficas ou por necessidade dos humanos e das
suas atividades.
Dada a evolução social e territorial (embora apenas
em finais do século XX a população residente em Portugal passasse a ser
maioritariamente urbana), muitos destes animais, que durante várias gerações
foram úteis à sociedade, perderam o seu estatuto rural de bestas de trabalho ou de animais de guarda e companhia. A QZ
procura promover ações de intervenção local que proteja este património
genético, sendo urgente encontrar novas valências nas relações de
convivialidade e de proximidade entre as populações e os animais.
Estas valências passam pelo conhecimento das
características das raças autóctones, da sua história e dos seus
constrangimentos vários, mas também pela sua utilização em terapias assistidas para pessoas diminuídas nas suas capacidades
motoras ou cognitivas. A mais-valia dos animais prende-se com essa troca de
energia e emoções, no sentido de que todos fazemos parte da mesma vida e do
mesmo planeta. Mas, ainda, a utilização de animais (sobretudo de cães, ou mesmo
de qualquer outro animal doméstico de estimação) adquire um significado muito
especial quando se trata de fazer companhia a crianças vítimas de abusos
sexuais ou outras vítimas de maus tratos e de violência doméstica.
Recomendações recentes da União Europeia apelam,
precisamente, à audição judicial de crianças fora do meio constrangedor dos
tribunais, onde também, não raras vezes, se cruzam com os potenciais
agressores.
Porquê ouvir, fora dos tribunais, as crianças vítimas de abusos sexuais
e de maus tratos?
Como referido, novos enquadramentos legais e
institucionais, sobre a violência doméstica e formas de abuso sexual envolvendo
menores, espelham uma nova possibilidade jurídica e sensibilidade social. A
doutrina e jurisprudência apontam para melhores condições de audição, na
proteção da infância, invocando-se a Convenção dos Direitos da Criança.
Portugal tem, aliás, acolhido algumas destas
recomendações europeias, salientando-se a inovação concretizada na Audição e
Participação Obrigatória dos menores (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em
Perigo e, ainda, Regime Geral do Processo Tutelar Cível). Refira-se, a
propósito, que o número de crianças vítimas tem sido significativo (941
em 2018, com idade média de 11 anos), sendo superior ao número de idosos
vítimas.
A União Europeia tem ultimamente, com efeito,
requerido a criação de condições de audição de menores, salientando a
necessidade de a audição ser efetuada fora dos Tribunais, em condições
logísticas e dignas para a recolha testemunhal. Nomeadamente, o Parecer 9 da Agência dos Direitos
Fundamentais da União Europeia (2019)
defende que os Estados-Membros devem
assegurar que as audições sejam conduzidas em instalações adaptadas às
crianças, de preferência fora do ambiente do tribunal.
O nosso país não tem ensaiado soluções arquitetónicas nem condições logísticas para a audição de
menores, fora do espaço constrangedor de uma sala de Tribunal. É urgente pensar
no contexto dessas audições, no setting
onde se realizam e nos aspetos facilitadores e adequados à presença de menores,
associando o espaço a uma função que dignifique também a dimensão jurídica e a
recolha de um testemunho (Figura 1).
Fig. 1.
O SETTING DA AUDIÇÃO DE MENORES
A
caraterização de um contexto físico que seja verdadeiramente amigável para a
audição de menores deverá ser cuidadosamente estudada e mesmo, se possível,
ensaiada ou visualizada nos seus aspetos de pormenorização, apontando-se, desde
já e apenas a título de exemplos, os seguintes aspetos: desenvolvimento de uma
entrada convidativa; existência de janelas baixas e largas, transparecendo
vegetação exterior; criação de um “canto de brincar” com escala rebaixada e bem
equipado; janelas com peitoris baixos, possibilitando o sentar informal e a
integração de vasos com plantas; existência de pequenas coleções de brinquedos
bem à vista e à mão das crianças.
A QZ pensa associar esta possibilidade à criação de
espaços especialmente vocacionados quer para a audição de crianças quer, também
(e pensando na envolvente e nas amenidades ambientais), para o desenvolvimento
de contactos com outros animais e a proteção das raças autóctones nacionais.
Juntando-se vulnerabilidades não se obtém uma vulnerabilidade maior, mas uma
resposta integrada que atenda a vários constrangimentos.
Contudo, o problema da audição de menores necessita
de compromissos e de respostas por parte de agentes políticos, judiciários e
agentes de desenvolvimento local. Pode-se desenhar soluções com recurso
eventual a construções amovíveis e emprego de materiais não convencionais em
Engenharia ou pensar na adaptação de espaços pré-existentes em edifícios
municipais e Comarcas. A solução ideal tem que ser pensada, contudo, de raiz
como um novo Equipamento Social, embora outras soluções adaptativas possam
concorrer para responder às exigências jurídicas e ao acolhimento de menores
como testemunhas ou vitimas de atos de crime (como se ilustra na Figura 2).
Fig. 2:
A SEGURANÇA E A CONFIANÇA DE UMA AUDIÇÃO EM ESPAÇO ADAPTADO
Defende-se,
portanto, uma recriação de ambientes em que se harmonizem condições adequadas
para a audição de menores, seja em termos funcionais e de sobriedade ou
dignidade do ambiente envolvente, seja através de uma expressiva humanização do
mesmo contexto (setting), por exemplo, através da cuidadosa introdução de:
“padrões domésticos”; escalas físicas rebaixadas; diversos focos de luz ambiente;
condições visualmente informais de reunião (ex., em sofás pequenos e em mesas
redondas); um amplo e apurado leque de elementos de apropriação (por ex.,
marcado por alguns grandes brinquedos, por livros e plantas); ...
O Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) dispõe, aliás, de um
acervo de intervenção valiossísimo sobre soluções construtivas e ensaios à
escala piloto ou desenho de novos Equipamentos Sociais e recomendações
técnicas, na relação entre o edificado e os seus usos, nas dimensões materiais,
funcionais e sociais. É o caso dos estudos anteriormente desenvolvidos pelo
LNEC para a elaboração de recomendações técnicas para Equipamentos Sociais
(RTES, 2009) de Lares e Creches, ou dos estudos sobre recomendações técnicas
para instalações das Forças de Segurança (RTIFS, 2007), em que os aspetos
comportamentais e funcionais estão em relação com as instalações materiais e os
seus usos e formas de ocupação humanas.
A QZ procura parcerias para esse levantamento de
soluções e repostas integradas inovadoras, com o LNEC, com Câmaras Municipais
interessadas, com o Ministério da Justiça ou os agentes judiciários. Trata-se,
assim, se uma solução pensada de raiz de um novo tipo de Equipamento Social que
responda às exigências requeridas para a
audição de crianças fora dos Tribunais. Mais tarde ou mais cedo, a sociedade
portuguesa terá que pensar em soluções para este problema da audição judicial
fora dos Tribunais, respeitando os superiores interesses da criança e
proporcionando condições para a sua audição em termos de dignidade, confiança e
segurança.
O LNEC, certamente, é uma das mais prestigiadas
instituições nacionais na ordem da engenharia e encontro de soluções que
resultam em novos Equipamentos Sociais, bem como tem sido uma instituição de recurso,
muitas vezes, para a verificação da segurança e eficiência de infraestruturas
ou a reabilitação de edifícios, mas é também um agente de mudança e de inovação
em engenharia como em ciências sociais e humanas, dispondo de quadros técnicos
e de cientistas formados em vários domínios disciplinares. Contudo, é também
necessário, no caso da audição de menores, pensar numa dimensão jurídica e nas
suas naturais resistências à inovação.
Numa dimensão prática, e pensando na inércia para o
desenvolvimento e acolhimento de ideias inovadoras, inércia que muitas vezes
inibe o combate a situações de emergência pelo conformismo de deixa(r) tudo como está até que haja
obrigação de fazer diferente, não seria de descurar a hipótese de
experimentar soluções novas, desde que devidamente integradas por agentes
políticos locais e agentes judiciários. Estas soluções podem envolver a
promoção de soluções integradas junto de áreas ou parques naturais ou na gestão
de Quintas pedagógicas. A Assembleia Municipal de Cascais, por iniciativa
política do PAN (Pessoas Animais Natureza), e com o consenso maioritário de
outras forças partidárias do Município, está atualmente a estudar o encontro de
soluções integradas, devendo requerer a auscultação de diversas entidades,
entre as quais o LNEC e a QZ.
Assim, os Municípios portugueses e, igualmente, as
entidades intermunicipais ao nível metropolitano devem responder a esta nova
exigência de audição de menores (adaptando espaços já pré-existentes ou
procurando soluções de raíz inteiramente novas) assim como devem defender a sua
identidade e especificidades regionais face à transformação dos territórios e
impactes na defesa também das suas espécies da flora e fauna autóctones. Se não
protegemos os seres mais vulneráveis, o que vamos proteger? Vivemos num modo de
vida urbano que tudo sacrifica em função do lucro, do estatuto de alguns, do
lugar de chefias ou de cargos de prestígio, e tudo isso contribui também para o
assanhamento paranóico da competição ente colegas e subalternos. Mas este modo
de vida competitivo esconde um elevado potencial de violência disruptiva, que
se abate especialmente sobre os seres mais frágeis. Expostos na sua
vulnerabilidade e remetidos aos silêncio.
Maria
Paula Elvas (QZ), João Lutas Craveiro (LNEC), Teresa Nogueira (QZ)
Ilustrações de António Baptista Coelho (LNEC)
Dez. 2019
Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos?
– Partimos. Vamos. Somos.
(poema de SABASTIÃO DA GAMA)
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar
seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar
assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e
científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o
pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e
comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos
autores dos artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos
mesmos artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é,
igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que
deverão referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível
técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma
quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou
que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na
Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição
dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se
circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é
pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser
de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado
tal e qual foi recebido na edição.
Infohabitar, Ano XVI, n.º 721
A questão da audição jurídica de crianças fora dos Tribunais e outros aspetos interventivos ao nível do território e defesa de humanos, e não-humanos, mais vulneráveis:
pelo sonho é que vamos! – o projeto da Quinta do Zurro (QZ)
Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Arquitecto/ESBAL, doutor
em Arquitectura/FAUP – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Investigador
Principal com Habilitação em Arquitectura e Urbanismo no
Laboratório Nacional de
Engenharia Civil (LNEC)
–, em Lisboa
Revista do GHabitar (GH) Associação
Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação
com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).
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