domingo, março 30, 2014

478 - Requalificação da cidade: imagem urbana e habitação - Infohabitar 478


INFOHABITAR Ano X, nº 478

Requalificação da cidade: imagem urbana e habitação

António Baptista Coelho

Nota introdutória: este artigo corresponde a uma das intervenções do autor no âmbito da recente Semana da Reabilitação Urbana Lisboa 2014, e designadamente nos Workshops Reabilitação e Conservação do Espaço Construído, que tiveram lugar no Cntro de Congressos do Laboratório Nacional de Engenharia Civil - LNEC - em 26 de março de 2014. 


Rehabitar e reimaginar a cidade (cidade re-habitada e requalificada)

As intervenções na cidade central e na cidade periférica têm de ser, cada vez mais, de pequena escala, bem pormenorizadas e qualificadas no seu desenho de arquitectura e muito sensíveis aos respectivos habitantes e aos próprios sítios que são habitados, preenchendo-se e reconstruindo-se continuidades urbanas, densificando-se estrategicamente para melhor vitalizar, mas também abrindo-se espaço público quando tal é aconselhável, e resgatando-se e recuperando-se uma atraente e motivadora imagem urbana, que passa por uma bem fundamentada escolha tipológica de conjuntos de edifícios e espaços públicos.
De certo modo é urgente refazer cidade, re-habitando-a e reimaginando as suas imagens urbanas.

Fig. 01: os variados, estimulantes e sempre excelentes ambientes urbanos e residenciais de Alvalade – urbanismo por Faria da Costa

Passear numa cidade de proximidades e vizinhanças

Fazer cidade ou refazer cidade tem tudo a ver com a “tentação de andar só mais cem metros, e depois mais outros cem”, devido ao encanto inesperado de edifícios históricos, mas também de simples lojas em esquinas e pracetas acolhedoras; escreveu-o Edmund White sobre Paris (1), mas podia tê-lo feito sobre qualquer cidade viva e à escala do homem, pois uma cidade deve proporcionar um complemento funcional mas também um verdadeiro suplemento de alma ao habitante.
A cidade deve estimular o passeio, a pé, pausado e agradável por sequências urbanas amigáveis, vivas, estimulantes e culturalmente enriquecedoras, e para tal há que saber fazer ou, frequentemente, refazer tais qualidades urbanas; e evidentemente tais aspectos dependem de uma verdadeira qualidade arquitectónica e urbanística, uma qualidade que vá além do desenho e que toque as pessoas, o que não é fácil, mas é hoje em dia essencial, neste século das cidades.
E é importante sublinhar que esta ampla e fundamental perspectiva de qualidade arquitectónica urbana e residencial é frequentemente encontrada em muitos dos nossos bairros históricos e patrimoniais.
Na prática necessitamos de uma cidade, de bairros, de vizinhanças e de ruas mais passeáveis, mais amigáveis, mais habitáveis; e tudo isto tem a ver com a possibilidade que o habitante a pé tenha de viver intensa e prolongadamente esses espaços urbanos, usando e gozando a cidade em paz e com tempo, a pé, num quadro de base que promove, entre outros aspetos, uma fundamental calma no viver, a relação com a natureza e ocasiões e cenários mais conviviais e mais positivos em termos de segurança pública.
E esta libertadora opção pela cidade do vagar, evidentemente, não é inimiga, mas sim aliada de uma adequada estrutura de transportes públicos e pólos de estacionamento, encontra bons modelos na cidade histórica e planeada e liga-se a uma fundamental cidade diferenciada e de usos mistos, pontuada por bairros e pequenas vizinhanças que apetece habitar e que, para além dessse prazer de habitar são verdadeiras fontes de vitalidade urbana.
(fig. 02) Um exterior de uso público para todos e bem vivo, que estimule a permanência e o vagar no seu uso e bem adequado aos habitantes mais sensíveis às condições de conforto – adequada e sóbria reabilitação urbana numa rua do Porto.

Cidade do pormenor e da boa imagem urbana

Por variadas razões, a cidade tem de se reconciliar com a escala humana e com os usos pedonais, seja porque precisamos de reduzir as emissões de CO2, seja porque é urgente reconquistarmos o uso individual e convivial de ruas e pracetas. Não por qualquer razão nostálgica e eventualmente turística de se recuperar e eventualmente reinterpretar um espaço urbano marcado pelo arranjo espacial das portas de entrada e dos outros vãos e dos estimulantes espaços de transição entre interior e exterior, é por ser desejável que a cidade volte “a ter como medidas de planeamento o peão e o utente do transporte público. Tal corresponderia, segundo penso, a uma ligação mais epidérmica com o espaço, à possibilidade de se instalar durabilidade” (e talvez verdadeira sustentabilidade) “no tempo de gozo da cidade” – escreveu-o António Pinto Ribeiro. (2)
Isto é possível em cidades e em espaços urbanos que associem nos mesmos espaços de proximidade diversas atividades compatíveis, que se ativem mutuamente – habitação, comércio, serviços e lazer – e cujos espaços urbanos se caraterizem por imagens estimulantes e que sirvam uma cidade do vagar e do pormenor, para além de cumprirem, naturalmente, os respetivos aspetos de funcionalidade e ecessibilidade.
Esta é uma das ideias que se quer fazer passar neste texto: há critérios básicos de funcionalidade, acessibilidade e segurança que têm de ser cumpridos nas intervenções de construção e reabilitação de espaços públicos urbanos, mas a qualidade de uso global destes espaços depende não só destes aspetos mas de todo um outro conjunto de matérias de projeto, ligadas à humanização e qualificação dos respetivos usos e imagens urbanas, que são verdadeiramente vitais para o êxito destas intervenções.
E chegamos assim ao que julgo ser o atual interesse estratégico no desenvolvimento de uma boa imagem urbana, matéria que passa pela boa prática do desenho urbano.
(Fig. 03) Uma boa intervenção numa vizinhança residencial bem viva no Centro Histórico de Tavira.

Imagem urbana, paisagem urbana

No entanto, e tal como escreveu Dina De Paoli, “o desenho urbano é pouco valorizado no cotidiano das pessoas, que apenas o valorizam quando percebem a sua ausência, uma vez que já tenham vivenciado espaços de qualidade. [e] Até mesmo os profissionais responsáveis por projetar e construir espaços, por vezes, o ignoram, sem reconhecer que o desenho urbano, além de agregar valor financeiro, agrega sustentabilidade e valores sociais, culturais e ambientais.” (3)
As matérias associadas ao desenho urbanos são múltiplas - espaciais, temporais, sociais, funcionais, estéticas e perceptivas – e, temos de o reconhecer, são de difícil aplicação, porque não é possível reduzi-las a regras e a regulamentos, e isso é difícil pois obriga a que as intervenções sejam fortemente baseadas em termos culturais e sociais, para além de dependerem de uma sensibilidade projetual que não está ao alcance de todos e que se melhora claramente com uma prática continuada de intervenções.
E voltamos a a citar Dina De Paoli, quando esta arquiteta salienta que Gordon Cullen (1961) não tinha a intenção de ditar regras para as cidades, mas sim manipulá-la dentro de certo grau de tolerância e, para isso, buscou novos valores e novos padrões. Propôs três maneiras de trazer vida ao ambiente construído. A primeira é o movimento através dos espaços (visão serial); a segunda, a percepção do lugar; e por fim, a terceira diz respeito à morfologia e ao conteúdo da cidade”, desenvolvendo-se “a constante atenção do ser humano sobre sua posição no espaço, seu sentimento de pertencimento ao lugar e a sua identidade, junto com a percepção de outros lugares.” (4)
E a mesma autora salienta que assim se evidencia “o objetivo de manipular, jogar com os elementos da cidade para que exerçam sobre as pessoas um impacto de ordem emocional, uma vez que o cérebro humano reage ao contraste, à diferença entre coisas, e, ao ser estimulado por duas imagens, ele percebe a existência desse contraste. Assim, a cidade torna-se visível num sentido mais profundo, animada de vida pelo vigor e drama dos seus contrastes, quando isso não acontece, ela passa despercebida, é uma cidade amorfa. Ao se desenhar a cidade segundo a ótica da pessoa que se desloca (pedestre ou de carro), a cidade passará a ser uma experiência eminentemente plástica.” (5)
Afinal, como escreveu Kevin Lynch, “a paisagem urbana é, para além de outras coisas, algo para ser apreciado, lembrando e contemplado” (LYNCH, 1960, p.09); e, podemos juntar: algo para nos emocionar, que dinamize a identidade e a apropriação em relação aos espaços urbanos que mais usamos ou que visitamos.
Naturalmente que todo este leque de potencialidades da imagem urbana, em termos da sua capacidade de moldar a paisagem da cidade tem aplicações diretas e muito efetivas nas intervenções de reabilitação de velhos espaços públicos mal-usados e arruinados e de outros espaços urbanos recentes mas que foram concebidos, praticamente, na ignorância desta disciplina urbanística.
(fig. 04): A excelente intervenção de reabilitação urbana e de espaços públicos, integrada no Programa POLIS, no centro de Castelo Branco.

Melhorar a urbanidade de espaços ditos “urbanos”

Atuar de tal forma correponde ao desenvolvimento de uma reabilitação urbana com influência direta na qualificação da cidade, designadamente, se uma tal intervenção em termos de imagem urbana estiver aliada a ações sustentadas de re-habitação e revitalização das zonas intervencionadas.
Visando-se uma cidade mais estimulante e habitada, uma cidade integrada por vizinhanças cuja imagem urbana seja requalificada ao serviço de uma melhor habitabilidade local e relacional, em espaços públicos que sejam, naturalmente, mais: defensáveis; conviviais e privatizados; eficazmente geridos; apropriáveis e amistosos.
Fig. 05: Um bom exemplo de introdução de um moderno pequeno edifício de habitação de interesse social de promoção municipal num velho bairro de Lisboa, junto ao Largo do Conde Barão, edifício com projeto de Eugénio Castro caldas e Nuno Távora (2005).

Cidade e Habitação Apoiadas

Um aspeto que importa sublinhar é que recuperar a cidade para o cidadão a pé é assegurar boa parte do re-habitar da cidade; a outra parte refere-se à re-introdução estratégica, ao longo dessas desejáveis continuidades de espaços urbanos, de unidades residenciais diversificadas e de pequenos equipamentos conviviais.
De certa forma é uma opção por viver em habitação apoiada pela cidade e em habitação que apoia a cidade, e esta é, também e complementarmente, uma forma de desmistificar a “habitação social que é (a mais) apoiada”, abrindo lugar para a sua total integração com a restante habitação e com a cidade.
Nesta perspectiva e para além dos grupos sociais economicamente desfavorecidos há que pensar nos idosos, favorecendo-lhes a continuidade da boa vivência da sua cidade, mas também em novos habitantes especialmente disponíveis para participar na vitalização urbana local, como é o caso de jovens adultos e pequenos agregados familiares; e há que pensar seja nos apoios funcionais destas pessoas em termos de acessibilidades e equipamentos, seja no estímulo da sua vivência direta do exterior contíguo às suas habitações.
E as escolhas tipológicas dos novos e renovados edifícios pode privilegiar a mistura cuidadosa de vários tipos de soluções de acessibilidade, de fogos, de conjuntos de fogos e mesmo de pequenos quarteirões, e sempre numa adequada e dupla perspectiva de espaços edificados e exteriores.
Pois, afinal, será, em boa parte, nos espaços de transição entre habitação e cidade que se irão encontrar soluções estimulantes marcadas pela escala humana e que atuam, duplamente, seja no edificado que fica mais próximo e caraterizado pela vida da cidade, seja nos espaços públicos de proximidade, que se tornam mais sensíveis a um conteúdo que para além de urbano é residencial.
E aqui encontramos outro nível de intervenção da reabilitação urbana, que integra a intervenção nos espaços exteriores públicos com a melhoria, mais ou menos radical, dos respetivos edifícios envolventes, em ações integradas que maximizem as vantagens do mundo doméstico e urbano, do interior e exterior, estendendo o sentido de habitar para além da porta de entrada de cada habitação, mas garantindo, no exterior, segurança, conforto, legibilidade e identidade; afinal caraterísticas muito associadas ao interior e que assim se prolongam pelo exterior.
(Fig. 06) A recente e excelente intervenção de pedonalização e reabilitação dos espaços públicos urbanos promovida pela Câmara Municipal de Lisboa no eixo da Av.ª Duque de Ávila, em Lisboa.

Breves conclusões

Conclui-se então esta reflexão com duas ideias básicas:
As ações de reabilitação dos espaços citadinos devem privilegiar boas soluções de imagem urbana, marcadas por continuidades afirmadas, atraentemente diferenciadas, funcionalmente mistas, que levem a cidade até à porta de muitas casas; e nestas continuidades urbanas há que integrar uma estimulante diversidade de oferta habitacional e de equipamentos conviviais.

Notas:
(1) Edmund White – “O Flâneur – Um passeio pelos Paradoxos de Paris. São Paulo, Companhia das Letras, Colecção “O Escritor e a Cidade”, 2001. O excerto foi retirado do artigo de Andréia Azevedo Soares, intitulado “O Flâneur – Um passeio pelos Paradoxos de Paris – Passear por uma Paris menos óbvia”, saído no suplemento “Fugas” do jornal “ Público” de 2002/09/28. Este mesmo livro foi, entretanto, editado entre nós pela editora ASA na Colecção “O Escritor e a Cidade.”
(2) António Pinto Ribeiro, “Abrigos: condições das cidades e energia das culturas”, 2004, p. 18.
(3) Dina De Paoli, “O Valor do desenho urbano na construção de bairros habitacionais e comunidades”, Tese de Doutoramento em Arquitetura, apresentada e discutida/aprovada na Universidade Estadual de Campinas- Unicamp, Campinas, SP, Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, 2014, pp. 22 e 23.
(4) Ibid. p. 27.
 (5) Ibid. p. 28.

Notas editoriais:

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Editor: António Baptista Coelho - abc@lnec.pt
INFOHABITAR Ano X, nº 478

Requalificação da cidade: imagem urbana e habitação

Um artigo de António Baptista Coelho


Grupo Habitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional e Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do LNEC

Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.

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