INFOHABITAR Ano X, nº 478
Requalificação da cidade: imagem urbana e habitação
António Baptista CoelhoNota introdutória: este artigo corresponde a uma das intervenções do autor no âmbito da recente Semana da Reabilitação Urbana Lisboa 2014, e designadamente nos Workshops Reabilitação e Conservação do Espaço Construído, que tiveram lugar no Cntro de Congressos do Laboratório Nacional de Engenharia Civil - LNEC - em 26 de março de 2014.
Rehabitar e reimaginar a cidade (cidade re-habitada e requalificada)
As intervenções na cidade central e na cidade
periférica têm de ser, cada vez mais, de pequena escala, bem pormenorizadas e
qualificadas no seu desenho de arquitectura e muito sensíveis aos respectivos
habitantes e aos próprios sítios que são habitados, preenchendo-se e
reconstruindo-se continuidades urbanas, densificando-se estrategicamente para
melhor vitalizar, mas também abrindo-se espaço público quando tal é
aconselhável, e resgatando-se e recuperando-se uma atraente e motivadora imagem
urbana, que passa por uma bem fundamentada escolha tipológica de conjuntos de
edifícios e espaços públicos.
De certo modo é urgente refazer cidade,
re-habitando-a e reimaginando as suas imagens urbanas.
Fig. 01: os variados, estimulantes
e sempre excelentes ambientes urbanos e residenciais de Alvalade – urbanismo por
Faria da Costa
Passear numa cidade de proximidades e vizinhanças
Fazer cidade ou refazer cidade tem tudo a ver
com a “tentação de andar só mais cem metros, e depois mais outros cem”, devido
ao encanto inesperado de edifícios históricos, mas também de simples lojas em
esquinas e pracetas acolhedoras; escreveu-o Edmund White sobre Paris (1),
mas podia tê-lo feito sobre qualquer cidade viva e à escala do homem, pois uma
cidade deve proporcionar um complemento funcional mas também um verdadeiro
suplemento de alma ao habitante.
A
cidade deve estimular o passeio, a pé, pausado e agradável por sequências
urbanas amigáveis, vivas, estimulantes e culturalmente enriquecedoras, e para
tal há que saber fazer ou, frequentemente, refazer tais qualidades urbanas; e
evidentemente tais aspectos dependem de uma verdadeira qualidade arquitectónica
e urbanística, uma qualidade que vá além do desenho e que toque as pessoas, o que
não é fácil, mas é hoje em dia essencial, neste século das cidades.
E é
importante sublinhar que esta ampla e fundamental perspectiva de qualidade
arquitectónica urbana e residencial é frequentemente encontrada em muitos dos
nossos bairros históricos e patrimoniais.
Na
prática necessitamos de uma cidade, de bairros, de vizinhanças e de ruas mais passeáveis, mais
amigáveis, mais habitáveis; e tudo isto tem a ver com a possibilidade que o
habitante a pé tenha de viver intensa e prolongadamente esses espaços urbanos,
usando e gozando a cidade em paz e com tempo, a pé, num quadro de base que promove,
entre outros aspetos, uma fundamental calma no viver, a relação com a natureza
e ocasiões e cenários mais conviviais e mais positivos em termos de segurança
pública.
E
esta libertadora opção pela cidade do vagar, evidentemente, não é inimiga, mas
sim aliada de uma adequada estrutura de transportes públicos e pólos de
estacionamento, encontra bons modelos na cidade histórica e planeada e liga-se
a uma fundamental cidade diferenciada e de usos mistos, pontuada por bairros e pequenas
vizinhanças que apetece habitar e que, para além dessse prazer de habitar são
verdadeiras fontes de vitalidade urbana.
(fig. 02) Um exterior de uso público para todos e bem vivo,
que estimule a permanência e o vagar no seu uso e bem adequado aos habitantes
mais sensíveis às condições de conforto – adequada e sóbria reabilitação urbana numa rua do
Porto.
Cidade do pormenor e da boa imagem urbana
Por variadas razões, a cidade tem de se
reconciliar com a escala humana e com os usos pedonais, seja porque precisamos
de reduzir as emissões de CO2, seja porque é urgente reconquistarmos o uso
individual e convivial de ruas e pracetas. Não por qualquer razão nostálgica e
eventualmente turística de se recuperar e eventualmente reinterpretar um espaço
urbano marcado pelo arranjo espacial das portas de entrada e dos outros vãos e
dos estimulantes espaços de transição entre interior e exterior, é por ser desejável
que a cidade volte “a ter como medidas de planeamento o peão e o utente do
transporte público. Tal corresponderia, segundo penso, a uma ligação mais
epidérmica com o espaço, à possibilidade de se instalar durabilidade” (e talvez
verdadeira sustentabilidade) “no tempo de gozo da cidade” – escreveu-o António
Pinto Ribeiro. (2)
Isto é possível em cidades e em espaços
urbanos que associem nos mesmos espaços de proximidade diversas atividades
compatíveis, que se ativem mutuamente – habitação, comércio, serviços e lazer –
e cujos espaços urbanos se caraterizem por imagens estimulantes e que sirvam
uma cidade do vagar e do pormenor, para além de cumprirem, naturalmente, os
respetivos aspetos de funcionalidade e ecessibilidade.
Esta é uma das ideias que se quer fazer
passar neste texto: há critérios básicos de funcionalidade, acessibilidade e
segurança que têm de ser cumpridos nas intervenções de construção e
reabilitação de espaços públicos urbanos, mas a qualidade de uso global destes
espaços depende não só destes aspetos mas de todo um outro conjunto de matérias
de projeto, ligadas à humanização e qualificação dos respetivos usos e imagens
urbanas, que são verdadeiramente vitais para o êxito destas intervenções.
E chegamos assim ao que julgo ser o atual
interesse estratégico no desenvolvimento de uma boa imagem urbana, matéria que
passa pela boa prática do desenho urbano.
Imagem urbana, paisagem urbana
No entanto, e tal como escreveu Dina De Paoli,
“o desenho urbano é pouco valorizado no cotidiano das pessoas, que apenas o
valorizam quando percebem a sua ausência, uma vez que já tenham vivenciado
espaços de qualidade. [e] Até mesmo os profissionais responsáveis por projetar
e construir espaços, por vezes, o ignoram, sem reconhecer que o desenho urbano,
além de agregar valor financeiro, agrega sustentabilidade e valores sociais,
culturais e ambientais.” (3)
As matérias associadas ao desenho urbanos são
múltiplas - espaciais, temporais, sociais, funcionais, estéticas e perceptivas
– e, temos de o reconhecer, são de difícil aplicação, porque não é possível
reduzi-las a regras e a regulamentos, e isso é difícil pois obriga a que as
intervenções sejam fortemente baseadas em termos culturais e sociais, para além
de dependerem de uma sensibilidade projetual que não está ao alcance de todos e
que se melhora claramente com uma prática continuada de intervenções.
E voltamos a a citar Dina De Paoli, quando
esta arquiteta salienta que Gordon Cullen (1961) não tinha a intenção de ditar
regras para as cidades, mas sim manipulá-la dentro de certo grau de tolerância
e, para isso, buscou novos valores e novos padrões. Propôs três maneiras de
trazer vida ao ambiente construído. A primeira é o movimento através dos
espaços (visão serial); a segunda, a percepção do lugar; e por fim, a terceira
diz respeito à morfologia e ao conteúdo da cidade”, desenvolvendo-se “a
constante atenção do ser humano sobre sua posição no espaço, seu sentimento de
pertencimento ao lugar e a sua identidade, junto com a percepção de outros
lugares.” (4)
E a mesma autora salienta que assim se
evidencia “o objetivo de manipular, jogar com os elementos da cidade para que
exerçam sobre as pessoas um impacto de ordem emocional, uma vez que o cérebro
humano reage ao contraste, à diferença entre coisas, e, ao ser estimulado por
duas imagens, ele percebe a existência desse contraste. Assim, a cidade
torna-se visível num sentido mais profundo, animada de vida pelo vigor e drama
dos seus contrastes, quando isso não acontece, ela passa despercebida, é uma
cidade amorfa. Ao se desenhar a cidade segundo a ótica da pessoa que se desloca
(pedestre ou de carro), a cidade passará a ser uma experiência eminentemente
plástica.” (5)
Afinal, como escreveu Kevin Lynch, “a
paisagem urbana é, para além de outras coisas, algo para ser apreciado,
lembrando e contemplado” (LYNCH, 1960, p.09); e, podemos juntar: algo para nos
emocionar, que dinamize a identidade e a apropriação em relação aos espaços
urbanos que mais usamos ou que visitamos.
Naturalmente
que todo este leque de potencialidades da imagem urbana, em termos da sua capacidade de moldar a
paisagem da cidade tem aplicações diretas e muito efetivas nas intervenções de
reabilitação de velhos espaços públicos mal-usados e arruinados e de outros
espaços urbanos recentes mas que foram concebidos, praticamente, na ignorância
desta disciplina urbanística.
(fig. 04): A excelente intervenção
de reabilitação urbana e de espaços públicos, integrada no Programa POLIS, no centro de Castelo Branco.
Melhorar a urbanidade de espaços ditos “urbanos”
Atuar de tal forma correponde ao
desenvolvimento de uma reabilitação urbana com influência direta na
qualificação da cidade, designadamente, se uma tal intervenção em termos de
imagem urbana estiver aliada a ações sustentadas de re-habitação e
revitalização das zonas intervencionadas.
Visando-se uma cidade mais estimulante e
habitada, uma cidade integrada por vizinhanças cuja imagem urbana seja
requalificada ao serviço de uma melhor habitabilidade local e relacional, em
espaços públicos que sejam, naturalmente, mais: defensáveis; conviviais e
privatizados; eficazmente geridos; apropriáveis e amistosos.
Fig. 05: Um bom exemplo
de introdução de um moderno pequeno edifício de habitação de interesse social
de promoção municipal num velho bairro de Lisboa, junto ao Largo do Conde
Barão, edifício com projeto de Eugénio Castro caldas e Nuno Távora (2005).
Cidade e Habitação Apoiadas
Um aspeto que importa sublinhar é que recuperar a cidade para o cidadão
a pé é assegurar boa parte do re-habitar da cidade; a outra parte refere-se à
re-introdução estratégica, ao longo dessas desejáveis continuidades de espaços
urbanos, de unidades residenciais diversificadas e de pequenos equipamentos
conviviais.
De certa forma é uma opção por viver em habitação apoiada pela cidade
e em habitação que apoia a cidade, e esta é, também e complementarmente,
uma forma de desmistificar a “habitação social que é (a mais) apoiada”, abrindo
lugar para a sua total integração com a restante habitação e com a cidade.
Nesta perspectiva e para além dos grupos sociais economicamente
desfavorecidos há que pensar nos idosos, favorecendo-lhes a continuidade da boa
vivência da sua cidade, mas também em novos habitantes especialmente
disponíveis para participar na vitalização urbana local, como é o caso de
jovens adultos e pequenos agregados familiares; e há que pensar seja nos apoios
funcionais destas pessoas em termos de acessibilidades e equipamentos, seja no
estímulo da sua vivência direta do exterior contíguo às suas habitações.
E as escolhas tipológicas dos novos e renovados edifícios pode
privilegiar a mistura cuidadosa de vários tipos de soluções de acessibilidade,
de fogos, de conjuntos de fogos e mesmo de pequenos quarteirões, e sempre numa
adequada e dupla perspectiva de espaços edificados e exteriores.
Pois, afinal, será, em boa parte, nos espaços de transição entre
habitação e cidade que se irão encontrar soluções estimulantes marcadas pela
escala humana e que atuam, duplamente, seja no edificado que fica mais próximo
e caraterizado pela vida da cidade, seja nos espaços públicos de proximidade,
que se tornam mais sensíveis a um conteúdo que para além de urbano é
residencial.
E aqui encontramos outro nível de intervenção da reabilitação urbana,
que integra a intervenção nos espaços exteriores públicos com a melhoria, mais
ou menos radical, dos respetivos edifícios envolventes, em ações integradas que
maximizem as vantagens do mundo doméstico e urbano, do interior e exterior, estendendo
o sentido de habitar para além da porta de entrada de cada habitação, mas garantindo,
no exterior, segurança, conforto, legibilidade e identidade; afinal caraterísticas
muito associadas ao interior e que assim se prolongam pelo exterior.
(Fig. 06) A recente e excelente intervenção de pedonalização e reabilitação dos espaços públicos urbanos promovida pela Câmara
Municipal de Lisboa no eixo da Av.ª Duque de Ávila, em Lisboa.
Breves conclusões
Conclui-se então
esta reflexão com duas ideias básicas:
As ações de
reabilitação dos espaços citadinos devem privilegiar boas soluções de imagem
urbana, marcadas por continuidades afirmadas, atraentemente diferenciadas, funcionalmente
mistas, que levem a cidade até à porta de muitas casas; e nestas continuidades
urbanas há que integrar uma estimulante diversidade de oferta habitacional e de
equipamentos conviviais.
Notas:
(1) Edmund White – “O Flâneur – Um passeio pelos Paradoxos de
Paris. São Paulo, Companhia das Letras, Colecção “O Escritor e a Cidade”, 2001.
O excerto foi retirado do artigo de Andréia Azevedo Soares, intitulado “O
Flâneur – Um passeio pelos Paradoxos de Paris – Passear por uma Paris menos
óbvia”, saído no suplemento “Fugas” do jornal “ Público” de 2002/09/28. Este
mesmo livro foi, entretanto, editado entre nós pela editora ASA na Colecção “O
Escritor e a Cidade.”
(2) António Pinto Ribeiro, “Abrigos: condições das cidades e
energia das culturas”, 2004, p. 18.
(3) Dina De Paoli, “O Valor do desenho urbano na construção de
bairros habitacionais e comunidades”, Tese de Doutoramento em Arquitetura,
apresentada e discutida/aprovada na Universidade Estadual de Campinas- Unicamp,
Campinas, SP, Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, 2014, pp.
22 e 23.
(4) Ibid. p. 27.
(5) Ibid.
p. 28.
Editor: António Baptista Coelho - abc@lnec.pt
INFOHABITAR Ano X, nº 478
Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores..
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores..
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.
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Requalificação da cidade: imagem urbana e habitação
Um artigo de António Baptista Coelho
Grupo Habitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade
Habitacional e Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do LNEC
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