domingo, março 24, 2013

432 - RUAS E QUARTEIRÕES - Infohabitar 432

Infohabitar, Ano IX, n.º 432
Artigo XXVIII da Série habitar e viver melhor

Falar de ruas é falar de quarteirões, umas e outros são irmãos inseparáveis, e mesmo quando os segundos têm uma presença pouco expressiva, porque são dificilmente penetráveis, eles proporcionam exactamente essa perspectiva de “espaço outro”, de uma outra dimensão reservada a quem habita as ruas e pode olhar por detrás delas e, eventualmente, pode usar alguns remansos de sossego e de natureza que, por detrás delas, existam no miolo dos quarteirões.

Importa sublinhar que se fala aqui de quarteirões não no sentido mais corrente do mesmo, associado a agrupamentos edificados relativamente regulares em termos de configuração geral e tipológica, o que nos pode levar a uma expressiva flexibilidade de aceitação do que pode ser um "quarteirão", mas que a noção de quarteirão aqui comentada se aplica apenas em realidades citadinas e de vizinhança em que não se abdica de um sentido urbano coeso que marque determinadas porções de território não excessivamente extensas, bem identificáveis, caracterizando uma dada realidade vivencial específica (ou até quase única), positivamente marcada por determinados limites e franjas e contentora de determinadas realidades vivenciais específicas - que podem ser, por exemplo, uma dada zona de verde urbano, um recinto polidesportivo, um conjunto de quintais privados, uma praceta pedonal convivial, um estacionamento arborizado, etc., etc.


Fig. 1

Devemos, no entanto, referir que o que não pode estar em causa quando falamos de quarteirões ou de para-quarteirões urbanos é a sua dupla viabilidade, tanto ao serviço das vizinhanças habitadas, como da essencial continuidade da vida urbana e das suas imagens de suporte; e neste sentido há que sublinhar que existem casos de grandes quarteirões bem "clássicos"/regularmente configurados e ortogonais que se limitam a repetir, até à náusea, uma solução sem viabilidade, multiplicando-se "praças" sem vida e identidade, e portanto sem sentido; enquanto casos há de grandes quarteirões orgânicos e modernistas que vivem plenamente como afirmadas e agradáveis zonas de vizinhança e bem-estar local, enquanto acrescentam qualidade, diversidade e identidade ao bairro e à cidade.

Voltando a uma pequena discussão do "casamento para a vida" entre ruas e quarteirões, ou entre ruas e interiores/miolos de quarteirão, importa sublinhar o que parece ser umas das partes mais interessantes desta ideia: seguimos as ruas, em continuidade e mesmo em muito desejável continuidade, numa sequência ou conjuntos de sequências bem sincopadas, que nos ligam da vizinhança que habitamos mais intensamente aos pontos mais centrais do bairro/zona que é o nosso e mesmo da cidade que é a nossa, enquanto por tràs dessas continuidades existem, também desejavelmente, realidades vicinais específicas e diferenciadas, mais públicas, mais comuns das respetivas vizinhanças ou até mais privadas de condomínios - e a crítica à destruição da cidade por uma concentração de condomínios exclusivos fica para outra oportunidade, aceitando-se aqui que condomínios de "grão fino" que não perturbem excessivamente continuidades gerais poderão até ser aceitáveis.

E será, talvez, neste encadeado urbano sóbrio de imagens, porque pouco publicamente evidente, de uma certa ou mesmo forte diversidade de vizinhanças constituintes de interiores de quarteirão, que se pode basear boa parte da flexibilidade tipológica de uma habitar que vá, como deve ir, da habitação ao espaço da vizinhança e dos laços com a continuidade urbana e que se devem também estruturar as matérias da adequação das soluções vivenciais e das respetivas e essenciais questões de apropriação e de identidade.

Uma matéria importante na eficácia destas ideias é a questão da escala das intervenções e do seu detalhe adequado e oportuno, ao serviço da cidade, da vizinhança e, expressivamente, do homem habitante e citadino; e estas não são apenas palavras são assuntos essenciais, difíceis de manejar, mas vitais para o bem-estar e a urbanidade.


Fig. 2

Um ainda recente e excelente livro de trata destas matérias de uma forma prática, mas não “quadrada”, porque vai à prática de um grande leque de bairros e vizinhanças lisboetas e proporciona uma análise clara dos principais aspectos desta união siamesa entre vários tipos de ruas e quarteirões, e assim se apontam muitas possibilidades distintas, igualmente caracterizadas por um interessante potencial de satisfação residencial e urbana, que aliás poderemos experimentar, nos locais, nas suas particularidades e associadas a diferentes indicadores urbanísticos. O livro aqui referido e que vivemente se aconselha é o "Atlas Urbanístico e Arquitectónico de Lisboa", coordenado por Manuel Salgado e José Sarmento de Matos, com textos de Nuno Portas, Ana Tostões e José Sarmento de Matos, uma edição Argumentum de 2006.

Numa muito útil aproximação às soluções de composição e constituição dos edifícios residenciais, numa perspectiva de manutenção e até evidenciação de atraentes e funcionais imagens urbanas de quarteirões, Peters Paulhans escreveu que :"Cada variação da construção linear e o retorno à construção marginal de quarteirões, significam trabalho urbanístico que deve ser, hoje em dia, realizado pelo arquitecto.

Desta temática fazem parte, também, as possíveis utilizações diferenciadas dos pisos térreos. Estas influenciam a imagem da rua e dependem, elas próprias, do tipo de rua: habitações nos pisos térreos apenas são aceitáveis em ruas tranquilas; lojas, apenas onde exista suficiente procura e animação urbana; e garagens apenas se não ocuparem toda a fachada". (1)

Alexander salienta que os quarteirões devem ser estruturados de modo a captar o Sol em espaços agradáveis e protegidos, sem grandes zonas de sombra entre esses espaços e os “seus” edifícios.; esta ideia leva a que os edifícios se disponham sempre a Norte dos principais espaços exteriores usados por peões. (2)

Talvez que falar aqui de quarteirões quando falámos um pouco de bairros, depois de sequências entre a cidade e a casa e, também de vizinhanças, isto numa perspectiva marcada pelo bem-estar do peão, possa significar uma estratégica aproximação ao edifício, mas sempre considerando-o como elemento desejavelmente integrado em conjugações maiores, efectivas e afectivas, capazes de garantir verdadeiras sequências coesas de espaços públicos, apagando-se, um pouco, o edifício, como elemento específico, numa tal agregação de elementos urbanos e residenciais.

Importa sublinhar que se acredita ser a realidade do quarteirão, com a flexibilidade de definição acima apontada, essencial seja para a (re)configuração de grandes vizinhanças/bairros e, sequencialmente, da própria cidade "nuclear", seja para uma urgente reinterpretação da própria tipologia do edificado residencial e urbano, num retorno ponderado e refuncionalizado a um habitar mais directamente ligado ao espaço público, ou, pelo menos, a habitares bem diversificados, bem distintos da actual ditadura tipológica de soluções quase únicas, e que possam incorporar seja um máximo de adequações a formas de habitar, seja um máximo de recriações de formas urbanas que sejam novamente estimulantes.


Fig. 3

Já tratámos e voltaremos a abordar esta matéria do "quarteirão", ou da pequena vizinhança, a propósito do fazer um habitar que integre e articule espaço doméstico e espaço citadino, sem problemas mútuos, mas com vantagens mútuas, mas talvez o “mistério” de bons quarteirões residenciais e urbanos, bons para quem os habita e bons para a cidade que por eles é composta é toda a diversidade que neles é possível, toda a riqueza que pode caracterizar os seus conteúdos.

E bem a propósito Monique Eleb e Anne Marie Chatelet sublinham que “o que mais fascina no quarteirão são as organizações complexas que ele originou, os segredos no seu coração: esse prodigioso concatenar de actividades e de construções estabelecidas longe das vistas, ao abrigo dos panos de fachadas dos edifícios da rua” e concluem apontando que “aí parece bater o pulso da cidade e encontrar-se a sua matéria específica” . (3)

Mas as referidas autoras acreditam que neste miolo urbano de vizinhança não será provavelmente muito adequado tentar dinamizar a convivialidade pois “mais do que tentar criar uma sociabilidade em cada quarteirão é preciso ligá-los ao quarteirão alargado, à cidade”. (4)

As autoras referem-se, directamente, a uma realidade francesa de habitação de interesse social que não será a nossa, no entanto entende-se e acolhe-se a ideia, considerando-se o modo de viver actual, embora, quem sabe, haja ainda alguma esperança para um convívio de proximidade; uma coisa é certa, sem condições ele nunca poderá acontecer e, de qualquer forma, a ideia não era qualquer sentido de “convívio obrigatório”, e sabemos bem o que acontece, frequentemente, quando o cenário “obriga” a esse tipo de relações, mas talvez que todos aqueles mistérios que tanto nos fascinam e nos surpreendem nos quarteirões sejam matéria de base sobre a qual se possa vir a edificar um pouco mais do que as simples e formais relações de boa vizinhança, e mesmo estas, se forem física e ambientalmente estimuladas, já corresponderão a um patamar positivo de uma vizinhança amigável e agradável.


Notas:
(1) Peters Paulhans, "Edificios Plurifamiliares", p. 7.
(2) Christopher Alexander; Sara Ishikawa; Murray Silverstein; et al, "A Pattern Language/Un Lenguaje de Patrones", p. 464.
(3) Monique Eleb e Anne Marie Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, 1997, p.282.
(4) Id. ibid., p. 88.

Notas editoriais:

(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.



Editor: António Baptista Coelho


INFOHABITAR Ano IX, nº432
ARTIGO XXVII DA SÉRIE HABITAR E VIVER MELHOR
RUAS E QUARTEIRÕES
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte



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