Infohabitar, Ano VIII, n.º 378
Chelas e a urgência e oportunidade da sua regeneração
por António Baptista Coelho
Notas explicativas:
O presente artigo resultou da solicitação de uma opinião, por parte do jornalista do Público Carlos Filipe,relativamente à actual e prolongada situação do Bairro de Chelas, em Lisboa; uma solicitação que levantava variados aspectos e interrogações, como por exemplo a leitura desse território à luz de objectivos básicos de arquitectura e urbanismo, o seu enquadramento histórico global e o seu potencial de melhoria e de humanização, agora reconsiderado, também na perspectiva do próximo desenvolvimento do novo grande Hospital Oriental de Lisboa.
A questão era múltipla, bastante completa e sensível às temáticas do bem-viver e do bem-fazer a cidade; e foi, a seguinte, a resposta, que, em conjunto com outras respostas de colegas de diversas disciplinas, informou o artigo do referido jornalista, intitulado "Chelas: o que era novo e moderno ignorou as pessoas", editado no Público de Domingo, em 4 de Dezembro de 2011 (pp. 40 e 41).
Edita-se, em seguida, o texto integral então realizado e enviado em resposta à referida solicitação, acompanhado por algumas imagens de Chelas.
Fig. 01
Sobre os muitos, críticos e tão prolongados problemas humanos, sociais e urbanos de Chelas (a questão colocada era múltipla e bastante completa)
A resposta à sua questão múltipla, porque são várias e na prática é apenas uma: que talvez se resuma ao como fazer cidade com habitação e fazê-la dom sensibilidade de modo a que a cidade seja o mais possível amiga dos seus habitantes e designadamente daqueles mais sensíveis, física e socialmente.
De uma forma sintética poderia referir que, em Chelas, historicamente se pretendeu, naturalmente, fazer melhor do que antes se tinha feito, em termos de estrutura urbana designadamente, mas, infelizmente tal não foi conseguido; talvez porque na altura haveria uma ideia de modernidade e porque tal modernidade tinha a ver com variado aspectos, até políticos, talvez porque não se conseguiu ter, na altura da concepção de Chelas, um adequado discernimento relativamente a conjuntos planeados ali ao lado e extremamente bem conseguidos em termos habitacionais e urbanos e refiro-me a Alavalade, Olivais Norte e certas zonas de Olivais Sul,e havia aqui um excelente leque de opções: umas mais urbanas e coesas na belíssima malha de Alvalade, ainda hoje um exemplo de escala e humanização, e na também excelente solução naturalista e modernista de Olivais Norte, onde se fizeram pela primeira e talvez única vez em Portugal, os edifícios no meio do verde e dos jardins, mas sem se perder um sentido agradável e confinado de bairro, que ainda hoje está vivo.
A referida modernidade de Chelas desenvolveu-se., em boa parte, pelo lado do automóvel, de um automóvel muito separado do peão, e ao fazê-lo transformou um grande pedaço potencial de (boa) cidade numa zona em que os veículos mandam, com "vias rápidas", muito pouco acompanhadas de passeios, numa sensação estranha de território estruturalmente alcatroado, com os edifícios separados das estradas, pois há essencialmente estradas e não ruas, e nos espaços em que se pretendeu fazer circuitos pedonais este pouco vingaram, tornando-se, frequentemente, espaços muito pouco usados e portanto inseguros.
Fig. 02
Volto a referir que a intenção foi de tentar fazer melhor, mas não se olhou para o passado recente da promoção habitacional e urbana lisboeta, pois se tal tivesse sido feito teríamos concluído por uma relativa, mas clara, redução da qualidade vivencial de Alvalade para Olivais Norte, e depois, uma redução clara de tal qualidade em Olivais Sul (embora tal qualidade se mantenha em partes deste bairro), e se formos tentar entender as razões desta situação teremos o privilegiar do trânsito de veículos, o tamanho excessivo das intervenções, a reduzida ligação à cidade e ás zonas urbanas envolventes e, há que dizê-lo, um certo sentido de projecto do habitar em que a força da obra individual acaba por se sobrepor a um certo essencial sentido cívico, sóbrio, que deve fazer salientar, muito mais, a rua, a praceta e o jardim público do que a obra de cada edifício; e há ainda que referir que mesmo a obra de cada edifício passou, em Chelas, correntemente, para uma escala/dimensão muito maior, e dos três e quatro pisos com duas famílias por patim, passou-se, por vezes para os mais de dez pisos e quatro ou cinco famílias em cada nível - uma situação ela própria sem grande problema mas que se pode tornar crítica quando há que dialogar com grupos socioculturais cada vez mais sensíveis, que foi o que acabou por ir acontecendo no decorrer dos anos.
Sublinho já o deveria ter feito antes, que esta é uma matéria que exige uma abordagem muito cuidadosa, até por haver em Chelas excelentes peças de arquitectura habitacional e porque uma cidade tem um tempo de gestação que se mede em muitas dezenas de anos, havendo portanto que ter muito cuidado com o que se diz, para se tentar não haver muitos enganos.
Fig. 03
Dito isto há que registar que em Chelas os realojamentos feitos há muitos anos e designadamente no período conturbado do pós 25 de Abril, não harmonizaram, como o deveriam ter feito, grupos socioculturais específicos e soluções habitacionais, as tais de grande escala; não digo que habitar um edifício com 100 e mais vizinhos seja fácii; julgo que nunca será fácil, mas será sempre mais difícil para quem não tenha hábitos de vivência na vertical, porque vivia num "bairro de lata"; e esta é uma matéria que nos leva longe, como outras aqui apenas afloradas.
Depois é lembrarmo-nos que as cidades são feitas de vizinhanças, mas também de uma essencial continuidade urbana, uma continuidade que se respira nas muitas esquinas de Alvalade e Campo de Ourique, bem como nas suas ruas, ao logo das quais até os grandes equipamentos, como o Parque Desportivo do Inatel, as escolas, o Mercado, o Batalhão de Sapadores Bombeiros e o LNEC, integram e fazem parte activa dessa continuidade de ruas e de esquinas, uma continuidade que nos acompanha na fruição do espaço urbano, no encaminhamento natural que esse espaço nos facilita em termos de percursos funcionais e de lazer, e uma continuidade que se pode dizer ser garantida em Olivais Norte por um excelente verde urbano (hoje em dia infelizmente mal mantido).
Mas em Chelas nem há esse verde, nem há praticamente quaisquer aspectos dessa continuidade e até os grandes equipamentos acabam por se constituir em barreiras nos percursos - deixam de ser pólos de referência e de activação dos percursos, como em Alavalade, para serem grandes espaços vedados que nos fazem desviar e que cooperam no acentuar de uma descontinuidade de percursos, que é marcada à partida pelos mega-edifícios e pelos mega-agrupamentos de edifícios afastados fisicamente uns dos outros, como se fossem realidades distintas, e produtoras de uma fractura do espaço urbano que afinal não faz mais do que reforçar o tal território retalhado e separado por autênticas vias rápidas onde nenhum peão, por mais convicto que o seja, tem vontade de caminhar.
E tudo isto aconteceu e acontece ao longo de dezenas de anos, como bem sabemos.
Fig. 04
Um outro aspecto que tornou, muito provavelmente, mais críticas as situações foi a concentração em Chelas ao logo de muitos anos de habitação de realojamento, não tendo havido uma política de verdadeira tentativa de integração social através da disponibilização de habitação em quantidade para outros grupos sociais intermédios - a tal classe média apenas remediada que muitas vezes não tem outra possibilidade a não ser emigrar para as periferias.
E aqui não podemos imaginar que, por exemplo, 10 famílias em 100 podem garantir uma integração com sinal positivo, a integração social é extremamente sensível e exige misturas muio cuidadosas. Entende-se que o município não tenha grandes alternativas de localização do realojamento, mas sabe-se há muito que a concentração social de grupos com o mesmo tipo de carências resulta em problemas acrescidos; e esta é uma matéria que tem cruzado variados elencos políticos municipais e que hoje em dia, felizmente, está a ser acompanhada de uma forma integrada nos seus aspectos físicos e sociais.
E chegamos à questão actual onde vale bem a pena citar um grande projectista que escreveu sobre Chelas aquilo que é , julgo, do senso comum de muita gente, e nem é preciso ser arquitecto.
Manuel Tainha referiu Chelas “como uma zona sombria” e “um território dilacerado”, e continuou alientando que "é preciso afrontar isso com coragem e imaginação. Socorrendo-se de quem? Não sei. Dos urbanistas e dos poetas. Seja de quem for. O que está a acontecer em Chelas é um caso paradigmático. As pessoas vivem nos interstícios das grandes vias e o automóvel é soberano na cidade. As áreas residenciais são áreas residuais entre os sistemas de circulação” - “O artista é o mais frio dos homens – entrevista de João Carlos Fonseca e José Charters Monteiro a Manuel Tainha”, revista Arquitectura e Vida, Março 2000.
O Arq.º Manuel Tainha sintetiza, assim, grande parte do que atrás apontei e sublinha, indirectamente, um desabafo que partilho: já chega! É mais do que tempo para regenerar, reabilitar, reconverter, preencher e requalificar Chelas, e, quem sabe, o tempo que passou nos permita fazer ali uma intervenção tão sensível e adequada, como estruturalmente reabilitadora da realidade que ali se vive.
Sei, evidentemente, das inúmeras condicionantes urbanísticas que incidem sobre Chelas, como os acessos à prevista nova ponte sobre o Tejo e o traçado do previsto TGV, que há que salvaguardar; mas tomadas essas decisões de traçados Chelas tem de ser "libertada" desse seu destino no mínimo "cinzento", e afinal temos ali um extraordinário pedaço de território bem orientado em termos de insolação e de excelentes vistas sobre o Tejo e estrategicamente posicionado no todo de Lisboa; e julgo que embora maltratado e retalhado ao longo de dezenas de anos Chelas tem, ainda, um enorme potencial em termos de terrenos, proporcionando, um excelente resultado final, mas só se se optarmos por uma intervenção cuidadosa e muito exigente de acupunctura urbana, marcada por um elevado nível de qualidade arquitectónica e de respeito para com a reconstituição de uma escala e de uma vida de cidade.
Fig. 05
Falta referir, nesta reflexão aberta sobre Chelas, que a prevista integração de grandes equipamentos hospitalares em Chelas só poderá ajudar a "desenclavar" o bairro (que hoje ainda o não é), pois a introdução de esta nova dinamização urbana e cívica, poderá vitalizar as principais infraestruturas de transportes públicos existentes (como o Metropolitano) e o tecido urbano que lá terá de ser (re)desenvolvido, e aqui centraria um último conjunto de reflexões: é que julgo que a própria tipologia das soluções a desenvolver para a integração dos equipamentos hospitalares deveria privilegiar:
(i) uma fortíssima abertura à comunidade local e à cidade(e não um gigantesco equipamento vedado e que reforce ainda mais os bloqueios urbanos já existentes);
(ii) a contribuição activa para o colmatar das críticas descontinuidades urbanas existentes;
(iii) a diversificação dos grupos socioculturais que habitam a zona;
e (iv) isto para além de se dever considerar a intervenção como oportunidade de melhoria sensível e evidente dos problemas existentes no grande tecido de Chelas - entre os quais e incrivelmente continua a subsistir uma fraquíssima relação pedonal com o resto da cidade.
É evidente que o que se foi fazendo mal ao longo de decénios não será remediado em meia dúzia de anos, mas é possível privilegiar e é vital calendarizar medidas e opções que, de uma vez por todas, atribuam a Chelas um sentido de vivência urbana e humana tendencial e claramente positivo.
Não poderia ainda deixar de apontar que a urgente e vital intervenção em Chelas deve integrar habitação para diversos grupos socioculturais e variadas soluções e novas formas de habitar com diversificadas tipologias (ex., habitações para jovens casais e para pessoas sós, conjuntos habitacionais com serviços comuns, etc.) e que nesta perspectiva é possível e desejável reforçar a aliança que, hoje em dia existe entre a CML e a Federação Nacional de Cooperativas de Habitação Económica, sendo que o grande conjunto cooperativo, ali bem próximo, no Vale Formoso, é um excelente exemplo do que importa atingir em termos de uma elevada qualidade residencial a custos controlados.
Fig. 06
Finalmente, sublinha-se que um aspecto que é, hoje em dia, fulcral, e que importa ter em conta no urgente refazer de Chelas é o devolver das ruas aos seus habitantes e diria mesmo a todos os lisboetas e visitantes, e há todo um novo conjunto de medidas disponíveis em termos de zonas residenciais com velocidade controlada, melhoria do tratamento e equipamento dos circuitos pedonais e, sem dúvida, uma estratégica e pontual densificação com novos edifícios e eventual demolição de alguns outros edifícios ou parte deles (aliás já praticada pela CML), que garanta a (re)criação de continuidades em termos de imagens e sequências urbanas, a introdução de novos habitantes e novas actividades e o desenvolvimento de espaços urbanos mais eficazes e mais atraentes e aqui a melhoria do verde urbano terá o seu papel, sempre muito importante.
A verdadeira reformulação de Chelas é um objectivo tão crucial como ambicioso, mas vamos tornar esse objectivo um verdadeiro desígnio de Lisboa, aliando-lhe um essencial conteúdo de humanização visual e funcional dos seus espaços urbanos, de modo a que o "antes e o depois" de Chelas constitua uma conquista para lembrar e aprender.
E termino, salientando, ter-se registado aqui uma opinião pessoal, e que tenho a perfeita noção de que Chelas constitui um problema extremamente complexo, mas também sei que é necessário actuar com urgência até porque Chelas para além de ser uma grande zona urbana sensível e problemática, também constitui um enorme potencial urbano e habitacional para Lisboa.
Notas sobre a ilustração:
As imagens são do autor do artigo, algumas delas têm já alguns anos, mas considera-se que, globalmente continuam a ilustrar o que é um pouco a "não-paisagem" geral e de pormenor de Chelas, tal como se aponta no artigo.
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Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
Infohabitar n.º 378, 22 de Janeiro de 2012
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domingo, janeiro 22, 2012
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