Infohabitar, Ano VII, n.º 374
É com uma muito especial satisfação que a presente edição da nossa revista edita mais um novo colaborador do Infohabitar e mais um amigo e colega do outro lado do Atlântico, e do grande País irmão.
Editamos, então, um artigo de Luís António Machado, um texto pleno de oportunidade no tratamento que faz das questões da violência urbana e dos grupos sociais marginalizados nas grandes cidades deste nosso século da urbanidade, e é possível referir e sublinhar que se queremos construir um melhor novo século com grandes cidades há que abordar decidida e urgentemente estas e outras questões associadas - e desde já se regista, que esperamos poder contar com outras contribuições deste colega aqui no infohabitar: o convite está, assim, lançado.
Luís António Machado da Silva é Sociólogo do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é Coordenador Executivo do UrbanData/Brasil e membro do INCT (Observatório das Metrópoles); os seus principais temas de actuação são os seguintes: favela, sociabilidade, violência, cidadania e informalidade.
A edição do Infohabitar não pode deixar de lembrar que na próxima Terça-feira, dia 20 de Dezembro, pelas 18h 30, noa Escola Secundária de Pedro Nunes, serão expostos os conjuntos habitacionais e outros empreendimentos que ganharam os Prémios do Instituto da Habitação e Reabilitação 2011 e entregues os respectivos prémios.
E como a próxima edição do Infohabitar será realizada, dentro de uma semana, no próprio dia de Natal, com a publicação das "de Boas Festas" do Grupo habitar e do Infohabitar, não queremos deixar de desejar, desde já, a todos os amigos e leitores, uma Consoada em paz, alegria e fraternidade, entre família e amigos.
O editor do Infohabitar e a Direcção do Grupo Habitar
António Baptista Coelho
Fig. 01
O RIO DE JANEIRO, HOJE:
segregação socioterritorial e violência
Luiz Antonio Machado da Silva
lmachado@iesp.uerj.br
CVitae: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do
Entender a dinâmica social do Rio de Janeiro contemporâneo implica necessariamente uma referência à conformação física de seu território: uma estreita faixa de terra espremida entre a montanha e o mar.
Essa foi a condição geográfica da expansão da cidade, que acompanha a evolução do capitalismo brasileiro, constituída a partir de um mercado de terras que definiu uma ocupação característica: durante muito tempo, em linha reta, acompanhando a oferta de transporte (primeiro ferroviário, em seguida rodoviário), do centro para a periferia, mas deixando vazios nos entremeios, pela dificuldade de construir nos morros mais próximos ou como reserva de valor nos espaços intermediários entre o centro e a periferia.
Os proprietários aguardavam que a pressão popular levasse à implantação de infra-estrutura nas glebas mais distantes, para então incorporar esses territórios, já agora muito valorizados pela disponibilidade de serviços urbanos.
Os morros permaneciam vazios ou ocupados por barracos, por não interessarem à acumulação imobiliária regular. Na periferia, em geral a industrialização chegava depois da ocupação humana, de modo que havia uma defasagem entre o mercado de terras e o mercado de trabalho, empurrando seus moradores para ocupar-se nas áreas mais adensadas. (A zona oeste do município permaneceu desocupada por muito tempo, pela falta de comunicação com a cidade, e há cerca de trinta anos sofre um boom patrocinado por grandes complexos habitacionais para as camadas médias e superiores.)
Esse padrão básico de ocupação, que entre o final de 1920 e o final de 1960 absorveu imensos contingentes de trabalhadores, especialmente através da migração interna rural-urbana, permanece até hoje. Mas o período decisivo na produção da forma urbana do Rio de Janeiro foi a década entre 1950 e 1960.
Esse modo de urbanização gerou uma possibilidade de sobreacumulação: permitiu que parte das necessidades de moradia deixasse de ser resolvida como item do custo de reprodução da força de trabalho, por meio, inicialmente, de um intenso processo de auto-construção nos morros, interstícios desocupados e nos loteamentos mais distantes, e mais tarde pela constituição de um mercado imobiliário secundário, mas “informal” – e, portanto, com preços proporcionalmente deprimidos e, assim, acessíveis aos mais pobres –, apesar de florescente e cada vez mais sofisticado (inclusive fisicamente: hoje, algumas favelas chegam a ter prédios de 6, 8 e até 10 andares).
Esta maneira de incorporar terras e força de trabalho à cidade está na origem das cerca de 800 favelas do Rio atual (como as favelas não têm fronteiras claras e sua definição é objeto de intensa disputa política, ninguém sabe ao certo quantificá-las). Embora demograficamente inferior à ocupação das periferias, as favelas vieram a se tornar o centro da política urbana e do modo de integração social da cidade, marcando-lhe o imaginário e a sociabilidade. Em outras palavras, a favela é uma referência decisiva no debate coletivo que constitui o “mapa mental e moral” que define o Rio de Janeiro para si mesmo e para fora.
Fig. 02
Esse lugar da favela na cidade tem relação com sua presença intersticial, visível e socialmente desconfortável, mas ao mesmo tempo necessária e funcional, nas regiões mais abastadas da cidade (nas áreas nobres e nos subúrbios próximos).
A contiguidade física de manchas habitacionais muito distintas, mas com fronteiras nebulosas, e a interdependência no mercado de trabalho – especialmente os serviços construtivos, domésticos e de cuidados pessoais – põe em contato muito próximo segmentos sociais estrutural e culturalmente distintos.
Nessas condições, produz-se um intenso conflito que, ao mesmo tempo em que volta e meia explode no debate público e na prática política, é pulverizado nas miríades de relações interpessoais inevitáveis da vida cotidiana que, mesmo fortemente hierarquizadas, terminam por fragmentar e polarizar a convivência sem, entretanto, destruir a integração da cidade. Não estou falando de desintegração, mas de um modo de integração constitutivo de uma ecologia urbana singular.
No quadro das profundas desigualdades do selvagem capitalismo brasileiro, que tem graves problemas de regulação institucional, a contiguidade física conduziu a formas de produção de distância social marcadas por preconceitos, estigmas, etc., de base socioterritorial.
Desde quando os barracos nos morros do centro da cidade deixaram de ser algo irrelevante, as favelas sempre foram áreas associadas à desorganização social e familiar, incivilidade e imoralidade, verdadeiros tipos ideais das “classes perigosas”. Durante a maior parte do tempo, porém, esta expressão era entendida em termos políticos, como fica evidente em uma famosa frase do establishment político-religioso no pós-Segunda Guerra: “é preciso subir o morro, antes que o morro desça”.
Este enquadramento sofre uma reviravolta a partir do início dos anos 1980, com a escalada da violência criminal associada à expansão do tráfico de drogas ilícitas associada à entrada da cocaína, que construiu sua base de operações (as “bocas”) justamente nos territórios segregados, uma vez que ali a modalidade de presença dos dispositivos estatais era, digamos, mais flexível.
Agora o perigo representado pelas favelas não dizia mais respeito à “revolução”, mas às ameaças à integridade física e patrimonial durante a vida cotidiana. Como as “bocas” eram vistas como a fonte do perigo e se localizavam nas favelas, toda a população moradora foi social e moralmente contaminada por essa proximidade.
Dessa maneira, altera-se profundamente a orientação geral do policiamento ostensivo rotineiro, que passou a assumir uma lógica militarizada de combate ao crime comum, introduzindo uma cunha na linguagem dos direitos que sempre caracterizara as disputas políticas no Brasil urbano.
Por volta do início dos anos 1980, a prática do controle social rotineiro passa a ser institucionalmente operada e politicamente discutida em uma linguagem organizada em torno da categoria da “violência urbana”. O desdobramento atual, iniciado em fins de 2008, dessa linguagem é um programa de policiamento de proximidade denominado “Unidades de Polícia Pacificadora”, que se propõe a eliminar o domínio armado dos traficantes nas favelas e permitir atividades de promoção social nessas localidades.
Durante algum tempo, os favelados começaram a se tornar atores coletivos relevantes no debate público, não obstante a discriminação que sempre sofreram. Nos últimos trinta anos, porém, sua capacidade de organização e vocalização de demandas está fortemente erodida. De um lado, pela linguagem da violência urbana, que lhes retira legitimidade por considerá-los coniventes com a violência criminal. De outro, porque os seguidos confrontos entre os bandos de traficantes em torno do controle das “bocas”, e entre estes e a polícia, produziram um medo generalizado cujo resultado é um intenso esgarçamento do tecido social local que, por sua vez, torna muito difícil e arriscado o trabalho de mobilização para ações coletivas.
Em 2008 organizei uma coletânea a partir de pesquisa coletiva intitulada “Vida sob Cerco”, que descreve em detalhe esses processos. Neste mesmo ano, com a criação das Unidades de Polícia Pacificadora, começam a ser substituídas as “tropas de ocupação”.Para avaliar o significado histórico-social desta novidade, estou realizando outra pesquisa, com o mesmo grupo. Com apenas três anos de implantação, o programa é ambíguo e indefinido, mas abre uma nova conjuntura.
Fig. 03
Notas finais da edição do Infohabitar:
Luís António Machado da Silva realizou uma excelente palestra, muito concorrida, no passado dia 14 de Dezembro de 2011, na sala 3 do Centro de Congressos do Laboratório Nacional de Engenharia Civil; uma sessão subordinada ao tema "SOCIABILIDADE VIOLENTA: VIDA QUOTIDIANA E POLÍTICA NO RIO DE JANEIRO".
Resumo/introdução á palestra: A violência urbana é um tópico central do debate público em todo o Brasil, inclusive no Rio de Janeiro, onde desde 2008 está na berlinda um programa de "policiamento comunitário" para as áreas de habitação favelada, chamado de UPP - Unidades de Polícia Pacificadora. Propõe-se discutir as possibilidades e limites desta política pública e seu impacto sobre o lugar das favelas na cidade.
Regista-se, finalmente, o último livro de Luís António Machado da Silva:
"Vida sob cerco - violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro", Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008.
http://www.novafronteira.com.br/
http://pt-br.facebook.com/pages/Editora-Nova-Fronteira/109576862394434
sac@novafronteira.com.br
Editora Nova Fronteira SA, Rua Bambina, 25 Botafogo - 22251-050 Rio de Janeiro - RJ
As imagens que acompanham o artigo são de A. Baptista Coelho
Notas editoriais:
(i) A edição dos artigos no âmbito do blogger exige um conjunto de procedimentos que tornam difícil a revisão final editorial designadamente em termos de marcações a bold/negrito e em itálico; pelo que eventuais imperfeições editoriais deste tipo são, por regra, da responsabilidade da edição do Infohabitar, pois, designadamente, no caso de artigos longos uma edição mais perfeita exigiria um esforço editorial difícil de garantir considerando o ritmo semanal de edição do Infohabitar.
(ii) Por razões idênticas às que acabaram de ser referidas certas simbologias e certos pormenores editoriais têm de ser simplificados e/ou passados a texto corrido para edição no blogger.
(iii) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
O RIO DE JANEIRO, HOJE:
segregação socioterritorial e violência
Infohabitar, Ano VII, n.º 374, 18 de Dezembro de 2011
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