segunda-feira, setembro 09, 2013

452 - Habitação popular adaptável, evolutiva e bem integrada (I) - Infohabitar 452


Infohabitar, Ano IX, n.º 452

Habitação popular adaptável, evolutiva e bem integrada (I): enquadramento geral - Ou sobre a intenção de se desenvolver um adequado enquadramento da promoção da habitação popular 
António Baptista Coelho
Vivemos o século das cidades e das mega-zonas urbanas, e mais do que isso vivemos o século das grandes zonas urbanizadas e habitacionais informais – desordenadas, “clandestinas” e tantas vezes provisórias, “de abrigo” e sem condições mínimas de habitabilidade –,  em zonas extensas de uma parte significativa dos países em desenvolvimento e emergentes.
O objectivo aqui proposto, neste artigo, é tentar registar as principais linhas de uma habitação popular, a realizar pelos próprios habitantes, habitualmente, com ajuda mútua (familiares e amigos), em contextos sociais de reduzidos recursos financeiros e caracterizada por uma adequada qualidade arquitectónica e urbanística.
De certa forma podemos apontar que o que se visa é uma tentativa de aproximação a um enquadramento do processo informal de desenvolvimento habitacional, desenvolvido por indicações aos projectistas responsáveis pelos diversos e específicos processos de urbanização e reurbanização, numa perspectiva de apoio ao desenvolvimento de soluções domésticas e de vizinhança citadina onde haja alianças entre:
  •  adequadas (ainda que eventualmente mínimas) condições de ordenamento urbano e habitacional;
  • processos habituais e populares de auto-resolução das necessidades de habitação;
  • e soluções de arquitectura urbana marcadas por um razoável nível de qualidade arquitectónica.
Tendendo-se a uma regularização da criação de novas habitações, harmonizada:
  • quer com os fracos recursos dos habitantes e com um processo adaptável e evolutivo de construção da sua habitação;
  • quer com um adequado ordenamento urbano, de pormenor, imediatamente integrado por pequenas casas iniciais e até, eventualmente, apenas, de abrigo, mas capazes de suprir, rapidamente, as necessidades básicas das respectivas famílias, mas não comprometendo uma situação futura razoavelmente estabilizada, integrada por habitações com características, pelo menos, correntes, ou mesmo extensamente desenvolvidas e bem acabadas, que não sejam negativamente estigmatizadas, por terem sido iniciadas através do referido processo gradual de crescimento e de acabamento dos diversos espaços domésticos.
Por estas razões se recuperou, uma vez mais, o gosto, muito especial, de muitos técnicos pelo processo evolutivo habitacional e urbano, que foi, afinal, o processo responsável pela evolução do nosso modo de viver diário e pelo seu quadro de vida doméstico e urbano, considerando-se este numa adequada e ambivalente perspectiva (i) de vizinhança, muito localizada e ainda muito familiar (embora num sentido alargado) e (ii) de relação com a cidade e a sua essencial continuidade urbana, matéria esta que tem especial sensibilidade quando se iniciam conjuntos urbanos com casas mínimas e/ou construções com acabamentos mínimos e, cumulativamente, se visam processos de autoconstrução e autoacabamento – portanto quando se procura assegurar a referida continuidade e coesão urbanas com habitações em fases que podem ser quase de abrigo e realizadas pelos próprios habitantes, e consequentemente difíceis de controlar nas suas imagens urbanas iniciais.
Procura-se, também, que este revisitar do processo evolutivo urbano e habitacional seja feito numa perspectiva de grande contenção de custos, e tendo em conta realidades físicas, paisagísticas, ambientais e culturais bem caracterizadas e diversificadas (bem distintas daquelas que caracterizam o “mundo ocidental e desenvolvido”); e, portanto, numa reflexão exploratória e cuidadosa, que é aqui apenas iniciada, e onde se procura, essencialmente, que os principais aspectos de concepção e de ordenamento, ligados à referida evolução habitacional e urbana marquem soluções, cujas características de desenho e de pormenorização sejam:
(i)    adequadas aos respectivos quadros culturais e ambientais/climáticos – matéria esta que tem importância fundamental na estruturação de cada habitação e da respectiva vizinhança urbana;
(ii)  e que sejam desenvolvidas pelos projectistas locais, evitando-se a natural tendência de se apontarem “projectos-tipo”, ainda que apenas a título de exemplos ilustrativos – numa opção que define um fronteira entre as indicações estruturantes de um projecto habitacional evolutivo e uma sua concretização, que tem de ser cultural e ambientalmente adequada.
É neste sentido que se faz esta reflexão sobre o que poderá e deverá ser uma “habitação popular adaptável, evolutiva e bem integrada”, visando-se, numa segunda linha – a desenvolver, provavelmente, em próximos artigos – quadros específicos que possam ajudar a configurar esta solução em determinadas regiões e zonas climáticas.


Fig. 01

A questão da informalidade e da inadequação familiar e financeira
A questão da informalidade e/ou do desordenamento, quando não por vezes mesmo de um certo caos, no crescimento urbano e habitacional que marca tantas zonas de países em desenvolvimento, é matéria crucial pois refere-se:
  • A situações habitacionais frequentemente precárias e marcadas por condições de habitabilidade – higiene e mesmo saúde – inaceitáveis e que arriscam, em, primeira linha, os grupos sociais mais sensíveis – crianças, idosos, doentes e pessoas condicionadas na sua mobilidade.
  • À aplicação das poupanças da vida de muitas famílias em edifícios e construções que depois, e frequentemente, são muito desvalorizadas, quando colocadas no mercado habitacional.
  • Ao desenvolvimento de um crítico e muito negativo "caos" urbanístico em torno das principais zonas urbanas, a que acrescem, frequentemente, graves problemas ambientais e paisagísticos, criados nessas zonas; situações estas que muito prejudicam toda a sociedade e que obrigam e obrigarão a custos de reurbanização muito elevados, incluindo acções de realojamento de habitantes que ocupam edifícios situados em zonas perigosas, ou caracterizados por condições construtivas e de habitabilidade cuja reabilitação não tem viabilidade, ou situados em espaços necessários na ação de reurbanização (exemplo: vias e equipamentos).
  • À criação de soluções urbanas que são frequentemente muito pouco adequadas, seja em termos de funcionalidade e de conforto no uso do espaço público, seja de promoção do convívio natural e da estada prolongada nesse espaço público; pois, frequentemente, uma malha urbana informal não se rege por condições mínimas de agradabilidade no respectivo espaço público, tudo acontecendo, melhor ou pior, por trás dos limites dos lotes de cada família, e esta situação é muito negativa pela evolução nada “urbana” e sem “interesse público” que assim acontece. Pois não nos esqueçamos que a evolução urbana histórica e natural das nossas povoações acontecia, em pequenos, graduais e bem experimentados “acrescentos”, ciclicamente experimentados, adaptados e validados ao logo de gerações e não nos poucos anos, que são o tempo da informalidade.

  •  Mas também à criação de soluções habitacionais e domésticas muito frequentemente inadequadas em termos funcionais e de conforto ambiental, porque realizadas por pessoas pouco ou nada informadas sobre uma adequada concepção do habitar que deve acontecer no espaço interior, no espaço privado exterior, nas zonas de relação interior e exterior, e nas respectivas e necessárias nuances de privacidade e de sociabilidade, que não se limitam ao espaço privado de cada lote, devendo “invadir” positivamente as zonas públicas de vizinhança e de ligação à cidade.
Esta frequente inadequação doméstica dos espaços habitacionais informais resulta, naturalmente, de uma conjugação entre as graves limitações financeiras das famílias, o referido e rapidíssimo tempo em que decorre a informalidade e a referida ausência de um conhecimento adequado para o desenvolvimento da sua habitação. Um conhecimento que tire partido, até, de situações tão simples como o próprio espaço bem barato, porque “vazio” e quase não equipado (apenas tratado com vegetação, por exemplo).
E lembra-se que, por vezes, o conhecimento disponível até chegará a alguns aspectos construtivos da obra, mais ou menos rudimentares (quando há moradores que trabalham na construção civil), mas tal conhecimento evidentemente que não chega e o resultado concretiza-se, frequentemente, em erros de concepção difíceis ou, por vezes, mesmo impossíveis de emendar e que resultam em negativas condições construtivas e de habitabilidade da casa: e  logo na consequente e já referida falta de valor dessa casa como bem onde se aplicam as poupanças de uma vida e que se deixa à família, acontecendo, assim, uma verdadeira inadequação social de grande número de habitações informais em zonas urbanas informais.
Zonas estas que são, por vezes, reurbanizáveis, considerando-se os respectivos custos de infraestruturação, mas sendo, frequentemente, difícil conseguir uma verdadeira reabilitação habitacional de muitas das respectivas habitações informais, por diversas ordens de razões, entre as quais se destacam: (i) a exiguidade espacial dos lotes, (ii) a infuncionalidade básica das próprias habitações, (iii) problemas críticos de contiguidade entre edifícios vizinhos, e (iv) defeitos construtivos básicos.
Naturalmente que existirão muitos casos de habitações positivamente desenvolvidas e muitos casos de edifícios cuja reabilitação é possível e desejável, mas há, também, muitos casos de habitações que não oferecem condições mínimas de habitabilidade e/ou que prejudicam edifícios e espaços contíguos, e que são de difícil reabilitação (em termos práticos : construtivos e económicos). 


Fig. 02

E, afinal, a questão da frequente falta de qualidade urbana, arquitectónica e construtiva
Tudo o que se acabou de referir pode resumir-se no que se considera ser a frequente falta de qualidade urbana, arquitectónica e construtiva, marcando as habitações populares informais realizadas em pouco tempo nas periferias urbanas, num processo em que a ausência do bem-fazer tradicional, refletido em aspectos específicos de organização e de construção da casa, não foi compensado por tecnologias e conhecimentos actuais e igualmente adequados, tendo-se apenas, frequentemente, assistido a uma aplicação de soluções expeditas e por vezes rudimentares e muito deficientes, desde os aspectos de relação entre zonas privadas e públicas e de repartição dos espaços exteriores e interiores domésticos, até ao uso pouco racional de processos e materiais de construção e acabamento – utilizados, por vezes, apenas porque são os mais baratos e acessíveis naquele local específico.
Naturalmente que esta “regra”, referida à ausência de qualidade arquitectónica (num sentido lato) nas habitações informais, tem excepções e há, assim, situações em que o conhecimento e o bom senso dos habitantes e construtores, por vezes bem acompanhados em termos de assistência técnica e social, produzem soluções adequadas e mesmo arquitectonicamente interessantes e válidas; mas a regra é, frequentemente, negativa e produz, por vezes, situações críticas em termos de condições habitacionais e urbanísticas, por vezes mesmo prejudiciais para a saúde de quem lá habita e desagregadoras da essencial continuidade urbana.
E será possível aliar a força da iniciativa popular em intervenções adequadamente estruturadas, garantindo-se habitações adequadas, que proporcionem bem-estar às respectivas famílias e constituindo uma boa opção de investimento gradual e faseado das suas poupanças, assegurando-se um urbanismo que não esqueça aspectos essenciais de convívio e segurança e minimizando-se as despesas de infraestruturação; matérias estas que são, afinal, o objectivo essencial defendido nesta reflexão.


Fig. 03

Sobre a ideia de uma habitação popular adaptável e adequada em termos domésticos, urbanos e sociais
Salienta-se que não há aqui, nem podia haver, nenhuma ideia de se considerar negativa, como conceito de habitar, a informalidade urbana e habitacional; há sim a ideia de que esta informalidade marca extensas zonas urbanas e periurbanas de países em desenvolvimento e gera, frequentemente, situações urbanas e habitacionais negativas e mesmo , por vezes, muito problemáticas, que importa solucionar de uma forma eficaz e sustentada.
Surge assim a ideia de se procurar uma aproximação entre o modo informal de fazer habitação e espaço urbano e um ordenamento mínimo/ADEQUADO capaz de proporcionar bons espaços domésticos e urbanos, hoje em dia e no futuro; um objectivo ambicioso sem dúvida e para o qual muitos investigadores, técnicos e responsáveis habitacionais e políticos têm contribuído com diversas ideias e trabalho prático realizado em grande relação com os agentes dessa informalidade, em muitas grandes zonas urbanas de países em desenvolvimento.

O que se fará nesta série de artigos é, essencialmente, tentar apurar os aspectos essenciais das matérias urbanísticas e habitacionais que devem ser respeitadas no desenvolvimento de uma habitação popular adaptável e adequada em termos domésticos, urbanos e sociais, tendo-se em conta a matéria específica da evolução habitacional e também quadros ambientais específicos, referidos a determinadas condições climáticas – por exemplo, as regiões tropicais húmidas.
A ideia é que uma habitação popular adaptável e adequada em termos domésticos, urbanos e sociais deverá:
  • Respeitar necessidades habitacionais e humanas básicas, concretizadas em aspectos dimensionais, funcionais, de pormenorização e de proximidade e de relação entre espaços interiores e exteriores, públicos e privados.
  • Cumprir aspectos essenciais de qualidade ambiental, paisagística e de urbanidade; numa perspectiva em que se inviabilizem condições negativas e por vezes muito críticas (por exemplo, habitações em leito de cheia), favorecendo-se as melhores localizações em termos de paisagem e de relação com a cidade.
  • Proporcionar uma adequação optimizada em termos de necessidades familiares e modos de vida específicos, procurando-se servir os modos habituais e tradicionais de habitar em harmonia com a resolução de novas necessidades habitacionais e utilizando as tecnologias construtivas mais adequadas.
  • Contribuir para a vitalidade e continuidade urbana através de espaços exteriores de vizinhança agradáveis e estimulantes; uma condição que procura marcar o sentido de convívio, de relacionamento social e de vivência do espaço exterior que pode existir na proximidade das habitações.
  • Estar ligada a aspectos essenciais de sustentabilidade ambiental, seja pelos impactes produzidos nos locais de intervenção, seja pela própria construção; e nesta matéria haverá tratamento específico de aspectos de adequação climática regional e local.
  • Favorecer um processo adequado de adaptabilidade habitacional ao longo do tempo: (i) harmonizando a vivência de espaços privados interiores e exteriores, em cada lote; (ii) faseando o investimento na habitação de uma forma racional, que distribua as despesas, mas que não ponha em causa a qualidade e o valor do edifício que vai evoluindo; e (iii) possibilitando que este processo evolutivo esteja associado a uma vivência positiva entre vizinhos e à criação de conjuntos urbanos agradáveis.
  • Ter em conta os principais aspectos de um desenvolvimento urbano informal, de modo a que as operações evolutivas estruturadas que são aqui visadas, possam corresponder, globalmente, a soluções que sejam eficazmente utilizadas em processos de autoconstrução e de ajuda mútua; uma condição que poderá também ser útil na utilização destes processos nas importantes e urgentes intervenções de micro-reurbanização de zonas urbanas informais.
Serão estes os aspectos a tratar e exemplificar em próximos artigos desta série, que poderão ter ordem e ritmo editorial diversificados e com os quais se procura contribuir para a reflexão e a discussão sobre as matérias de uma informalidade urbana e residencial eficaz, porque muito sensível às necessidades e aos hábitos dos habitantes, mas também aos principais aspectos de ordenamento dos espaços domésticos e de vizinhança urbana.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.

Editor: António Baptista Coelho - abc@lnec.pt
INFOHABITAR Ano IX, nº452
Habitação popular adaptável, evolutiva e bem integrada (I)
Infohabitar é a revista semanal do Grupo Habitar (GH)
Infohabitar é editada no LNEC- Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT)
Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.

segunda-feira, setembro 02, 2013

Nota da edição da Infohabitar

Estimados leitores da Infohabitar, 
Considerando o grande interesse do último artigo aqui editado e, também, a situação de chegada de férias de muitos dos leitores em Portugal, a Edição da Infohabitar decidiu deixar em "primeira página editorial", por mais uma semana, o artigo n.º 451 da nossa revista, intitulado  A capacidade adaptativa para o habitar urbano: aprendendo com o concurso Previ - Lima . 
Trata-se de um texto das colegas da UNICAMP arquitetas Silvia Mikami G. Pina e Raquel R.M. Paula Barros, onde se faz uma reflexão sobre as temáticas arquitetónicas, urbanas e habitacionais associadas ao concurso Previ-Lima, no âmbito de uma solução de habitação popular adaptável e arquitetonicamente enquadrada, cujos resultados estão, hoje em dia, muito clarificados, passados já bastantes anos após a sua aplicação.
António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar


domingo, agosto 25, 2013

451 - A capacidade adaptativa para o habitar urbano: aprendendo com o concurso Previ - Lima - Infohabitar 451

A capacidade adaptativa para o habitar urbano: aprendendo com o concurso Previ - Lima
Infohabitar, Ano IX, n.º 451

Nota do editor

Tal como foi previamente referido, a Infohabitar edita hoje, com muito gosto, e inaugurando mais um cliclo editorial - após a sua 450ª edição - um artigo das colegas da UNICAMP arquitetas Silvia Mikami G. Pina e Raquel R.M. Paula Barros, onde se faz uma reflexão sobre a importante intervenção no âmbito das inovadoras temáticas arquitetónica, urbanas e habitacionais associadas ao concurso Previ-Lima, que importa ter em conta, seja pela sua atualidade em termos de aplicação como solução de habitação popular arquitetonicamente enquadrada, seja por se poder ter hoje em dia uma perspetiva mais rigorosa das suas potencialidades, passados já bastantes anos após o seu desenvolvimento prático .

Salienta-se, ainda, que a matéria de um habitar evolutivo e participado pelos seus moradores, no quadro de uma cidade construída, também, com a participação popular, mas mantendo uma máxima qualidade arquitetónica, num amplo e verdadeiro sentido, que vai da cidade, à vizinhança e aos diversos espaços interiores e exteriores domésticos é matéria que, hoje em dia, no século das megacidades e das grandes zonas urbanas informais , não poderia ter maior oportunidade, sendo matéria à qual iremos dedicar próximas edições da Infohabitar, solicitando-se, desde já, que contribuições significativas de leitores e autores sobre  a matéria nos possam ser enviadas, na perspetiva de poderem vir a ser publicadas na Infohabitar, após a respetiva análise  editorial.

Finalmente, mas nunca por último, agradece-se, com sinceridade e amizade, às amigas e colegas académicas Silvia Mikami Pina e Raquel Paula Barros, esta excelente contribuição, que se espera seja uma de muitas outras, e aqui se enviam às autoras as calorosas boas-vindas à comunidade, que se julga ser já qualitativamente muito significativa, dos autores da Infohabitar (sempre devidamente registados na margem da revista).

António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar

A capacidade adaptativa para o habitar urbano: aprendendo com o concurso Previ - Lima

Profª Drª Silvia Mikami G. Pina (*) e Drª Raquel R.M. Paula Barros (**)

(*)  Docente e pesquisadora da UNICAMP- Universidade Estadual de Campinas/Brasil. Atualmente é coordenadora do Programa de Pós-graduação Arquitetura Tecnologia e Cidade.
(**) Pesquisadora. Realizou seu doutorado e pós-doutorado na FEC UNICAMP.

O cenário brasileiro atual da habitação de interesse social tem estimulado debates e reflexões entre os pesquisadores e profissionais de arquitetura e urbanismo. O estímulo, ora se dá pela escala do atual programa federal de politica habitacional Minha casa minha vida, ora pelos desafios e, especialmente, pelas perspectivas funestas que se apresentam para o futuro das cidades brasileiras, a sobreviverem após tal programa.

A recente história da produção habitacional de interesse social no Brasil é marcada por soluções de extrema singeleza, quase sempre repetitiva, de qualidade construtiva discutível e de localização em locais precários e distantes. Tais condições têm sido estudadas e pesquisadas em livros, teses, dissertações e artigos, alguns com indicação clara e lúcida de alternativas viáveis à tal política e arquitetura, evidenciando os transtornos resultantes desde os anos 1960 quando se implantou o Sistema Financeiro da Habitação, estabelecido a partir do Banco Nacional da Habitação - BNH. Dentre os vários problemas elencados, sobressai como questão central a moradia ser tratada de maneira simplista, como objeto pensado isoladamente, autônomo, quase independente, retratado como a maquete de uma casa na palma da mão. Algo que não se conecta, apartado da cidade, do contexto, do território, da vivacidade, dos equipamentos e serviços urbanos, das comunidades, das pessoas. Arquitetura sem urbanismo.

No entanto, a regra também tem exceções: raros, mas dignos exemplares de como o projeto e a política habitacional devem ser: aliar, planejar e incluir moradias em situações, locais e modos onde é possível aflorar e concretizar o que denominamos territórios habitacionais (PINA, 2008), lugar com o qual os moradores se identificam e constroem vínculos, comunidades e histórias de vida. Territórios plenos de potencial humanizador e socialmente sustentável.

Dessa maneira, este trabalho busca resgatar o exemplo e as lições para a habitação urbana a partir de um projeto de referência e representativo da busca por maior sustentabilidade urbana e humanização do território habitacional, o Proyecto Experimental de Vivienda-PREVI em Lima, Peru, pela sua importância e impacto. Devido à riqueza de informações encontradas acerca do projeto original e das transformações observadas ao longo de um período de 35 anos de ocupação, nas escalas da habitação em si e da proposta urbanística, optou-se por apresentar aqui um recorte sobre aspectos da proposta urbanística, evidenciando a capacidade adaptativa necessária da habitação coletiva. (1)


A alta demanda e a instabilidade nos modos de vida da população de baixa renda compõem o contexto das intervenções no Brasil, que ocorrem tanto na esfera do assentamento informal quanto na do formalmente projetado. O potencial de um processo de mudança na dinâmica de usos, acompanhado do aumento gradual da capacidade financeira das famílias, raramente aparece considerado no projeto habitacional. Observa-se uma tendência latente em modificar o ambiente habitacional. Lerup (1977)alerta para a dificuldade de um ajuste perfeito do projeto do ambiente construído com as pessoas e alerta a importância em se considerar as ações das pessoas no ambiente que as abriga como processo interativo, dinâmico e natural. Apesar da tendência não se relacionar de modo direto ao nível de renda, a incidência de intervenções pós-ocupação por iniciativa da população de baixa renda em seu ambiente habitacional tem-se mostrado bastante significativa há décadas.

As intervenções espontâneas que ocorrem no decorrer da ocupação das moradias não contam com diretrizes de projeto ou qualquer assessoria técnica profissional, gerando consequências negativas ao longo dos anos, incluindo o desperdício material e energético, o comprometimento da permeabilidade do solo e da qualidade ambiental e estrutural das moradias, além de efeitos nocivos à qualidade de vida dos moradores. Elas podem ser motivadas pela ausência de qualidade ou inadequação do ambiente construído, ocasionada por falhas de projeto, incluindo, entre outros, o não detalhamento, falhas de execução e emprego de materiais de qualidade insuficiente. Deficiências frequentes aliam-se à falta de envolvimento dos moradores no processo de projeto, assim como a ausência de programas de gestão de uso e manutenção dos espaços.

Por outro lado, alguns projetos já consolidados revelam a complexidade do tema ao permitirem interpretações diversas e o afloramento dos aspectos positivos do empenho e da cooperação na adaptação da própria moradia e seu entorno, em contraponto aos conjuntos habitacionais de caráter rígido e indistinto, em larga escala e mal localizados. Ante tal fenômeno, faz-se necessário o estudo de abordagens relacionadas à adaptação gradativa para, na sequência, compreender o projeto original e as intervenções ocorridas no Proyecto Experimental de Vivienda (PREVI), em Lima, Peru.

Sobre a capacidade adaptativa

O entrelaçamento de temas, por vezes dissonantes, configura possíveis contribuições para o projeto que considera a possibilidade de modificações no ambiente construído. Schneider e Till (2007) identificam três momentos históricos na agenda da habitação coletiva flexível contemporânea, sobretudo no contexto europeu e, posteriormente, no norte-americano. São eles: a modernidade e a habitação mínima, refletindo inicialmente a alta demanda por habitação para as classes trabalhadoras no período pós-Primeira Guerra em densidade e escala sem precedentes, relacionada à flexibilidade tanto pelas reduzidas dimensões bem como pelos novos modos de vida a serem proporcionados pela tecnologia mecanizada; a industrialização da habitação valendo-se da padronização e eficiência, relacionada à flexibilidade no sentido da possibilidade de diferentes arranjos dos componentes construtivos; e, a partir dos anos de 1960, a valorização da participação e possibilidades de escolha por parte dos moradores. Em todos os episódios, o conceito de flexibilidade esteve presente como meio para atingirem-se outras demandas e, guardadas as diferenças contextuais, permanecem na agenda da habitação contemporânea.

Para o contexto habitacional de recursos mínimos, alta demanda e urgência, onde a incerteza é um modo de vida, Hamdi (1991) propõe o entendimento da prática projetual da habitação sob os temas da participação, flexibilidade e empoderamento para a promoção de uma arquitetura de cooperação e desenvolvimento incremental. Tal entendimento conduziria a um processo de projeto de empoderamento, no sentido de capacitar o arquiteto, bem como as pessoas em suas próprias moradias e territórios, para o alcance de uma resposta integrada de projeto e como meio efetivo de emancipação pessoal e coletiva. O empoderamento na habitação seria o processo pelo qual se cultivam física e gradualmente as condições que permitam a habitação e vizinhanças de crescer e transformar-se diante das condições do momento. Assim, os arquitetos precisam compreender seu trabalho como parte de um processo vivo, ou seja, ser cultivadores de ambientes, e não fazedores de projetos. A flexibilidade como modo construtivo estaria associada ao imperativo sociopolítico, viabilizando a participação dos moradores no processo de projeto e capacitando-os a transformar sua unidade de habitação em um lar.

Habraken (1999) concebe que sistemas de produção em massa da habitação bloqueiam a atividade do indivíduo-morador e que, para o resgate da relação natural entre ser humano e ambiente, faz-se necessário alcançar uma moradia autônoma ou independente. A construção de uma edificação seria uma identificação relacionada estreitamente ao desejo de possessão, propositadamente frustrado naquele sistema de produção da habitação. O princípio da independência remete também ao conceito de habitação como processo, como ação coletiva da sociedade. Santos e Vogel (1985) observam o caráter de autonomia das relações sociais nos territórios coletivos que permitem a negociação cotidiana de suas regras de uso, ao mesmo tempo compartilhadas e flexíveis.

Em meio a exemplares que variam de rígidos a quase indeterminados no que se refere ao grau de controle do arquiteto e de seu projeto sobre as possibilidades formais, técnicas e de uso, Schneider e Till (2007) ressaltam um olhar mais amplo sobre o conceito de flexibilidade, relacionado à inata oportunidade de adaptabilidade, capaz de usos sociais diferentes, independentemente da possibilidade ou não de distintos arranjos espaciais e construtivos. Os argumentos apresentados pelos autores para a habitação mais flexível, mesmo conhecidos, são bastante convincentes: socialmente ele habilita o morador a assumir o controle de sua habitação, quer por fazer escolhas antes da construção definitiva ou durante o ciclo de vida da moradia. Demograficamente, permite ajustar os projetos aos modos de vida e às novas configurações familiares. Tecnicamente, pode permitir a incorporação de novas tecnologias e a modernização das antigas, especialmente quanto às instalações prediais.

Aqui, o olhar mais amplo sobre o conceito de flexibilidade é tomado como contribuição para uma abordagem comprometida com a capacidade sociocultural de transformação do ambiente construído nas diferentes escalas, da arquitetura à cidade. A habilidade de resposta à dinâmica de usos e das necessidades e expectativas dos moradores atuais e futuros é de particular importância para as camadas pobres da população, que requerem habitação com mescla de usos e de pessoas e em localizações que proporcionem o direito à cidade, de mecanismos de suporte à geração de renda, entre outras. Relevantes estudos de diferentes épocas (COELHO e CABRITA, 2009; TALLEN, 2008; JACOBS, 1961) salientam a importância da diversidade para uma abrangência de aspectos qualitativos, incluindo a segurança e a vivacidade urbana. Adicionalmente, ao investigar a possível aplicação do conceito de resiliência para o sistema socioecológico das cidades, Du Plessis (2012) considera que a interpretação correta do conceito seria a de habilidade de adaptar-se a mudanças, o que, por sua vez, dependeria da diversidade de usos e respostas, a exemplo do funcionamento dos ecossistemas.

Proyecto Experimental de Vivienda - PREVI

O caso do PREVI, em Lima, foi selecionado para investigação por constituir projeto de habitação coletiva já realizado, ocupado e consolidado, e por seu caráter experimental, envolvendo conceitos e modalidades tipológicas variados, com capacidade adaptativa e flexível. O PREVI foi objeto de concurso internacional e é brevemente apresentado a seguir.

Em 1966, o governo do Peru formulou um projeto experimental, a ser co-financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), para oportunidade de novos conceitos e técnicas com o intuito de nutrir uma nova política pública na área da habitação no país. O arquiteto inglês Peter Land foi convidado a coordenar a iniciativa do Proyecto Piloto 1-PP1, objeto de concurso aberto aos arquitetos peruanos e a 13 equipes convidadas de arquitetos estrangeiros em 1969. O PP1 abrigaria uma comunidade de 1.500 moradias em área de 40 ha na periferia de Lima, cerca de 8 km ao norte da cidade. Lucas, Salas e Barrionuevo (2012) esclarecem que, enquanto a proposta de lotes e serviços do Proyecto Piloto 3-PP3 dirigia-se aos níveis de pobreza extrema, o PP1 dirigia-se sobretudo à população de baixa renda com certa capacidade aquisitiva. Rico material incluindo os fatores e requisitos programáticos mais relevantes do edital, relacionados aos fatores ambientais, urbanísticos, de desenho urbano e arquitetura, encontra-se sintetizado em Barros e Pina (2012).

Três prêmios foram concedidos para as equipes de arquitetos internacionais e outros três para as nacionais. Todavia, após novas circunstâncias políticas e crises institucionais, o terremoto severo em Lima em 1970 e a alta qualidade das propostas resultantes do concurso, a iniciativa foi redimensionada para um terço da área original em um novo projeto conduzido por Peter Land para aproximadamente 500 habitações. A construção deu-se por meio de pequenos grupos a partir de uma seleção dos diferentes projetos do concurso, contando também com a assistência técnica de especialistas em engenharia sísmica (LAND, 2008). A opção realizada constitui uma síntese dos critérios considerados mais interessantes dos diferentes projetos. A Figura 1 representa a implantação do conjunto, que foi entregue aos moradores em etapas, concluídas em 1978.

Foram feitos levantamentos documentais e de estudos já realizados para melhor compreensão do caso de análise. Para atualização e aprofundamento do estado presente do PREVI, foi realizada visita técnica ao local entre janeiro e fevereiro de 2012. Naquela ocasião, também se realizou visita específica a algumas residências das Quadras 16 e 17, projeto de Alexander e equipe.





Figura 1 -PREVI implantado
Fonte: adaptado de Garcia-Huidobro, Torriti e Tugas (2008, p. 52).



O estudo de caso em questão enfoca a proposta urbanística implementada e também o grupo de moradias construídas a partir do projeto submetido por Alexander e equipe, fundamentado em uma combinação patterns formulada especificamente para o PREVI e apresentada em Alexander et al. (1969). Os patterns expressam a percepção de necessidades humanas no ambiente construído e foram aqui considerados como parâmetros projetuais. Assim, o caráter propositivo dos patterns enfatiza essa interpretação, como elementos cuja variação de valor contribui e orienta a solução de um problema no todo, sem lhe modificar a natureza. Uma seleção feita a partir daquela combinação de parâmetros para o PREVI foi utilizada para a avaliação projetual. Verifica-se seu potencial de contribuição para o aprimoramento da base teórico-conceitual em questão a partir da verificação de sua influência na proposta urbanística do PREVI e de sua relevância para os modos de vida dos moradores daquelas quadras após 35 anos de ocupação. A avaliação também se pauta nas abordagens relacionadas à adaptação gradativa e na leitura, observação e percepção dos pesquisadores.


A proposta da equipe norte-americana

Considera-se pertinente salientar a proposta da equipe norte-americana para a área designada pelo concurso, com densidade bruta de 43 moradias/ha, totalizando 1.726 moradias. Alexander et al. (1969) explicaram que o desenho da implantação era aproximado, visto que um processo de escolha permitiria aos moradores definir a forma e a extensão da habitação e dos lotes com maior precisão. O sistema construtivo permitiria a alteração das paredes internas e instalações. O processo de escolha os levaria a hierarquizar as partes da habitação segundo suas necessidades particulares, bem como em relação a sua capacidade financeira prevista para o período de financiamento. Na sequência, um processo de combinação a ser conduzido por um arquiteto compatibilizaria as escolhas dos moradores. Vizinhanças ou cada grupo de moradias teriam de 30 a 70 habitações e seriam envolvidas por ruas levemente rebaixadas, que alimentariam os pequenos bolsões de estacionamento coletivo. As vizinhanças possibilitariam a apropriação dos espaços por seus moradores, dando-lhes ambiência própria, sendo o formato e a circulação em cada vizinhança únicos e relacionados a sua localização no conjunto. A partir dessas vizinhanças, o sítio conteria três configurações sobrepostas – sistema viário, rede de caminhos de pedestres e eixo comunitário, constituindo os elementos estruturantes propostos pela equipe e reunidos em “Parâmetros para a comunidade”. A Figura 2 representa trecho da implantação do projeto original da referida equipe.


Figura 2 - Trecho de implantação proposto pela equipe norte-americana: (a) lotes residenciais de maior exposição a pedestres e atividades na alameda central e(b) rede de caminhos de pedestres cruzando sistema viário, em simbiose
Fonte: adaptado de Alexander et al. (1969, p. 60, p. 79).


O PREVI concretizado


O desenho urbano beneficiou-se da topografia plana, que garantiu a acessibilidade dos percursos e acessos às moradias, equipamentos e serviços. A configuração de espaços abertos de pequenas dimensões pelo arranjo das habitações, aliada à presença da vegetação, propiciam um microclima agradável, que colabora para a manutenção da umidade do ar e minimiza os efeitos da iluminação natural intensa no verão. Morros de adobe foram utilizados na divisa com a rodovia Panamericana Norte como estratégia para barrar a maior fonte de ruídos no local. Posteriormente, esses morros foram eliminados para permitir mais vagas para os automóveis individuais, conforme constatado na visita técnica. Os bolsões de estacionamento coletivo, estrategicamente localizados para a minimização das distâncias a serem percorridas a pé até as moradias são insuficientes, visto o aumento imprevisto de demanda por vagas.

A análise comparativa entre as propostas submetidas indica uma densidade média de 36 a 40 unidades/ha e a predominância da agregação das habitações em fita, configurando 70% dos projetos inscritos. Nas habitações, a circulação vertical foi prevista em 100% das propostas e, em 70% dos casos, a circulação horizontal integra-se à área social (INSTITUTO..., 1979).

Na sequência, a Figura 3 apresenta alguns dos espaços abertos do PREVI em suas diferentes escalas, do público ao coletivo. Nela, identificam-se respectivamente os seguintes parâmetros:

(a) passeio (alameda central);
(b) escolas abertas (creches, colégio Jorge Basadre e respectivos espaços abertos);
(c) caminhos centrípetos (passeios que se alargam, criando ambiente de estar); e
(d) jardins coletivos delimitados nas diferentes vizinhanças, de caráter semiprivado.


Figura 3 –Implantação do conjunto: (a)Alameda central (calçamento em manutenção), (b) e(c)Creches municipal e privada, (d),(e) e (f)Colégio Jorge Basadre e respectivos espaços abertos e (g), (h) e(i)Pequenas praças delimitadas por moradias.



A proposta de Alexander et al. (1969) para o concurso, de fato, influenciou o projeto implementado do PREVI, sobretudo:
(a) na configuração espacial das quadras em pequenos grupos de moradias que possibilitam diferentes graus de exposição para as moradias no arranjo do conjunto, conformando caminhos de pedestres, pequenas praças e entradas coletivas;

(b) na rede hierarquizada de caminhos de pedestres, culminando na alameda central, que, por sua vez, congrega usos educacionais, lazer, comércio e serviços para as comunidades; e

(c) na concepção dos bolsões de estacionamento coletivo, visando à maior proximidade e vigilância a partir das moradias, embora adotados em escala distinta do original.

Salienta-se que o projeto implantado responde satisfatoriamente aos requisitos relacionados aos fatores ambientais, urbanísticos, de desenho urbano e de arquitetura estabelecidos pelo Concurso. Todavia, a inserção urbana de qualidade, incluindo a conjugação equilibrada entre os usos, dar-se-ia em parte pela localização próxima a indústrias e dependeria de sistema de transporte coletivo eficiente, ainda hoje não alcançado, conforme relato dos moradores antigos de diferentes quadras, na visita realizada. Esses moradores também descrevem a saturação da Escola Jorge Basadre e de seus parques, quadras esportivas e equipamentos de recreação de acesso livre, dada a necessidade crescente dos moradores dos assentamentos vizinhos menos favorecidos, fato que tem levado à depredação e degradação desses espaços e equipamentos de uso comum, que possuíam outro caráter nos primeiros anos do bairro.

A densidade populacional do PREVI ampliou-se aceleradamente. Ao aumento de densidade soma-se a maior facilidade na aquisição de veículos individuais, que, em conjunto, sobrecarregam a demanda por vagas de estacionamento. A tipologia geral de habitação compacta de baixa altura caracteriza o bairro, ainda que recentemente tenha ocorrido forte adensamento construtivo elevando o gabarito de altura.

Aprendendo com o PREVI: a capacidade adaptativa para o habitar urbano

Após 35 anos de ocupação, o PREVI constitui um verdadeiro bairro em que a moradia existe associada a outros usos, comércio, serviços e equipamentos comunitários. O parque, o colégio e a creche municipal configuram uma centralidade alimentada por caminhos em hierarquia, que desembocam na alameda central, com alto grau de legibilidade espacial. O projeto também possibilitou o surgimento espontâneo de outros equipamentos e serviços na alameda central e nas quadras. O traçado urbano é complexo, rico e promove a apropriação e o cuidado com o espaço público e coletivo, harmonizando-se às diferentes propostas arquitetônicas e construtivas. A maioria das intervenções nas moradias tem ocorrido em altura, não interferindo nos limites dos espaços coletivos e públicos e, portanto, não comprometendo o desempenho socioambiental desses espaços abertos.

Na escala das habitações, não ocorreram programas de transferência de conhecimento para a capacitação dos moradores sobre as diferentes tipologias e sistemas construtivos, nem a assistência técnica esteve disponível tanto para a garantia da segurança estrutural como para a qualidade ambiental dos espaços internos, evitando a descaracterização das quadras e do conjunto.

Muito embora uma variedade de tecnologias pré-fabricadas tenha sido adotada, as sucessivas transformações deram-se por meio do uso de técnicas construtivas tradicionais. Tenicela (2002) e Lucas, Salas e Barrionuevo (2012) relatam que teria colaborado para esse fato o descaso proposital das administrações posteriores por razões políticas, promovendo indiretamente a descaracterização do PREVI e das áreas contíguas.

O projeto da equipe norte-americana para o Concurso agrega como diferenciais a ênfase na diversidade de combinações de lotes e habitações e processos participativos de escolha dos lotes e da hierarquização das partes da moradia, porém não efetivados. Todavia, considera-se que os parâmetros relacionados ao atendimento dos diferentes níveis do convívio à proteção influenciaram o desenho urbano do PREVI implantado.

A aprendizagem com o PREVI refletiu na proposta de instrumental de promoção de qualidade socioambiental em relação dinâmica com as abordagens investigadas. Os conceitos propostos são interdependentes e sintetizados a seguir:

- HARMONIZAR-SE AO LUGAR E APRIMORÁ-LO significa estreitar a relação entre o ambiente construído e natural para reverter a atual tendência degenerativa de ocupação e uso territorial. Tal reconciliação requer o abrigo da biodiversidade e oportunidades para a vida em contínua adaptação, ou seja, a almejada capacidade adaptativa;

- PRIORIZAR A DIVERSIDADE, em conjunto com políticas habitacionais que garantam o acesso aos serviços e o direito à cidade, é fundamental para evitar a segregação socioambiental nos territórios habitacionais e interage com as especificidades do lugar, dotando-o de significado e proporcionando a vivacidade urbana;

- ESTABELECER PROCESSOS PARTICIPATIVOS contribui para o abrigo efetivo daquela diversidade, pois o envolvimento dos moradores pode ocorrer de maneiras diversas e nas diferentes etapas do projeto ao uso do ambiente construído, desde o estabelecimento do programa habitacional;

- ATENDER AOS NÍVEIS DO CONVÍVIO À PROTEÇÃO se refere aos diferentes níveis de envolvimento social e de privacidade desde as relações socioespaciais na trama urbana até a escala do habitar como permanência protegida; e

- CONSIDERAR E FACILITAR A FLEXIBILIDADE, enquanto oportunidade de adaptabilidade aos usos e pessoas, viabiliza as modificações incrementais que podem assegurar o bom ajuste e a durabilidade, oferecendo o suporte à melhoria da qualidade de vida sem o comprometimento da qualidade ambiental, em interdependência com os demais conceitos.

A avaliação do PREVI implantado como um todo destaca um projeto que se ajusta ao lugar e aprimora-o a partir da cuidadosa consideração das características locais, incluindo a escolha da localização e fatores de impacto no conforto ambiental; prioriza a diversidade pela mescla de usos, oferta de diferentes faixas de custo, tipologias e oportunidades de adaptabilidade e expansão; atende às necessidades de convívio e proteção pela conformação e articulação dos espaços coletivos e públicos em hierarquia; prevê a flexibilidade de arranjos espaciais e de usos sociais para as diferentes fases de vida a partir de diversos elementos estruturantes e de espaços de múltiplo uso nas escalas da implantação e da moradia. Muito embora processos participativos não tenham sido formalmente previstos, eles ocorrem pelas ações da associação dos moradores sobre a manutenção dos espaços coletivos e as reivindicações diante do poder municipal, conforme constatado na visita técnica: conquista da troca do piso da alameda central; intervenções individuais não comprometedoras do coletivo; e sinalização em praças diversas, valorizando os melhoramentos alcançados e o envolvimento dos moradores.

Algumas considerações e reflexões
As lições a partir do PREVI, relacionadas às abordagens investigadas acima, permitiram o aprimoramento da base teórico-conceitual de potencial humanizador e de sustentabilidade socioambiental vinculada ao projeto da habitação coletiva. O instrumental proposto apoia prática projetual para a promoção da capacidade adaptativa do ambiente habitacional, conduzindo a uma apropriação espacial positiva por uma diversidade de moradores e ações de melhoria de sua própria iniciativa, bem como em cooperação. O instrumental é composto de um conjunto de conceitos interdependentes, onde a conciliação de valores com o envolvimento comunitário se constituirão em importante estratégia para as intervenções individuais. Globalmente, tais conceitos agregam ao ambiente construído habitacional oportunidades para a vida em contínua mudança.

Editais de concursos públicos para habitação social no Brasil nos últimos tempos têm valorizado a provisão de moradias flexíveis e expansíveis para as modalidades unifamiliar e multifamiliar. Nessas iniciativas, apreende-se a preocupação maior com o barateamento e a escala da construção. Em boa parte, a produção promovida pelo Estado parece não reconhecer a importância da localização em relação à cidade e desconsidera inteiramente o desenho urbano. Estes dois aspectos são especialmente importantes, pois deles depende a qualidade geral dos bairros e a possibilidade da sua integração e a identidade de seus moradores com o lugar e com a moradia. Também não são considerados a conjugação moradia-trabalho e demais usos; não se viabiliza o projeto participativo e não se orientam projetos que incentivem iniciativas dos próprios moradores na melhoria de sua qualidade de vida e da sustentabilidade em suas variadas dimensões e escalas, incluindo a da cidade.

Assim, a iniciativa do concurso PREVI e o posterior fenômeno de apropriação dos espaços e intervenções merecem um olhar mais atento e abrangente, que supere interpretações tais como a de mostruário heterogêneo de tipologias ou a da consideração exclusiva de seu caráter de experimentação tecnológica. O caráter experimental reside também no contraponto ao paradigma moderno de edifícios de múltiplos pavimentos como solução padrão para habitação social, ao incentivar a habitação compacta de baixa altura em arranjo denso. Ressalta-se, sobretudo, a responsabilidade exemplar do edital quanto à importância atribuída aos fatores ambientais, usos e tradições locais. O PREVI agrega lições para uma arquitetura de possibilidades que incentiva a interação entre as pessoas, suas atividades e o ambiente habitacional que as abriga. Espera-se que elas sirvam de inspiração para futuras iniciativas de projetos e concursos, especialmente para políticas públicas na área da habitação na América Latina, retomando e atualizando o conceito de habitação flexível e participativa, especialmente para sua incorporação no processo de projeto.


Referências

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Agradecimentos

As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo-FAPESP pelo apoio a esta pesquisa; à Jorge Castillo Lozano pela hospitalidade e acompanhamento da visita técnica; aos demais moradores entrevistados do PREVI pelo acolhimento e permissão para conhecer suas moradias; aos professores Mauro C. O. Santos do PROARQ/FAU/UFRJ e Wilder F. Tenicela pelas informações e diálogos acerca do PREVI.

Notas

(1) Outros aspectos complementares foram analisados em artigo publicado pelas autoras em 2012: Sinfonia inacabada da habitação coletiva: lições a partir do PREVI para uma arquitetura de possibilidades. Ambiente Construído, Porto Alegre, v. 12, n. 3, p. 7-26, jul./set. 2012.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.
Editor: António Baptista Coelho abc@lnec.pt

INFOHABITAR Ano IX, nº451
A capacidade adaptativa para o habitar urbano: aprendendo com o concurso Previ - Lima
Editor: António Baptista Coelho
Lisboa, Grupo Habitar e LNEC - Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT)
Apoio editorial de José Baptista Coelho, Encarnação - Olivais Norte