Cumprindo-se uma das variadas valências da nossa revista, referida à divulgação de novos livros nas nossas amplas áreas temáticas, é com muita satisfação que na presente edição da Infohabitar se apresenta, com algum pormenor, o novo livro de Alberto José de Sousa, intitulado “A progênie brasileira de uma fachada da Renascença”, incluindo-se a sua Introdução e o seu Capítulo 1, naturalmente, por amabilidade do autor.
O livro pode ser adquirido em http://www.estantevirtual.com.br/ e em breve estará disponível na biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Lembra-se que o Prof. Arquiteto Alberto Sousa é já um estimado co-autor da nossa Infohabitar tendo aqui editado, no n.º 191 da nossa revista (em 6 de Abril de 2008), a apresentação de um outro seu livro, com o título "A variante portuguesa do classicismo imperial brasileiro"; e nestes sentido e tal como então já se referia (na apresentação ao referido n.º 191 da Infohabitar), deseja-se que esta colaboração continue em anos vindouros, aproveitando-se para enviar ao amigo e colega um forte abraço de parabéns por mais esta sua obra e os desejos de que a sua intensa e valisosa actividade editorial continue por muitos e bons anos.
Nascido em João Pessoa-PB (1951), Alberto José de Sousa é arquiteto graduado pela UFPE (Recife, 1973), desenvolveu o mestrado (M Phil) na Universidade de Edimburgo (em 1979), doutorou-se na Universidade de Paris I (em 1990) e pós-doutorou-se na Universidade Nova de Lisboa (em 2001).
Até ao presente, Alberto José de Sousa escreveu os livros "Arquitetura neoclássica brasileira: um reexame" (1994), "O classicismo arquitetônico no Recife imperial" (2000), "O ensino da arquitetura no Brasil imperial" (2001), "Do mocambo à favela: Recife, 1920-1990" (2003), "A invenção do barroco brasileiro: a igreja franciscana de Cairu" (2005), "A variante portuguesa do classicismo imperial brasileiro" (2007) e "Sete plantas da capital paraibana, 1858-1940" (2010); é ainda co-autor do livro "Guia do Recife: arquitetura e paisagismo" (2004). Foi professor do Departamento de Arquitetura da UFPB entre 1983 e 2013.
Lembra-se que o Prof. Arquiteto Alberto Sousa é já um estimado co-autor da nossa Infohabitar tendo aqui editado, no n.º 191 da nossa revista (em 6 de Abril de 2008), a apresentação de um outro seu livro, com o título "A variante portuguesa do classicismo imperial brasileiro"; e nestes sentido e tal como então já se referia (na apresentação ao referido n.º 191 da Infohabitar), deseja-se que esta colaboração continue em anos vindouros, aproveitando-se para enviar ao amigo e colega um forte abraço de parabéns por mais esta sua obra e os desejos de que a sua intensa e valisosa actividade editorial continue por muitos e bons anos.
Nascido em João Pessoa-PB (1951), Alberto José de Sousa é arquiteto graduado pela UFPE (Recife, 1973), desenvolveu o mestrado (M Phil) na Universidade de Edimburgo (em 1979), doutorou-se na Universidade de Paris I (em 1990) e pós-doutorou-se na Universidade Nova de Lisboa (em 2001).
Até ao presente, Alberto José de Sousa escreveu os livros "Arquitetura neoclássica brasileira: um reexame" (1994), "O classicismo arquitetônico no Recife imperial" (2000), "O ensino da arquitetura no Brasil imperial" (2001), "Do mocambo à favela: Recife, 1920-1990" (2003), "A invenção do barroco brasileiro: a igreja franciscana de Cairu" (2005), "A variante portuguesa do classicismo imperial brasileiro" (2007) e "Sete plantas da capital paraibana, 1858-1940" (2010); é ainda co-autor do livro "Guia do Recife: arquitetura e paisagismo" (2004). Foi professor do Departamento de Arquitetura da UFPB entre 1983 e 2013.
Com os renovados parabéns e as saudações calorosas ao autor,
António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar
Síntese do livro
Este livro examina a enorme difusão que teve no Brasil um tipo de frontaria de igreja introduzido no século XVI por uma magnífica edificação renascentista portuguesa: a capela de Nossa Senhora da Conceição em Tomar. Mais de 200 fachadas brasileiras, espalhadas numa imensa área, seguiram esse influente modelo durante cerca de três séculos. O livro trata 100 delas, comentando e ilustrando 42 dessas, e identificando e caracterizando sinteticamente 58 frontarias. Além disso, ele mostra que o modelo derivou de uma ilustração existente num importante tratado arquitetônico da Renascença italiana e explica o processo através do qual a derivação ocorreu.
Ficha técnica do livro:
S725
Sousa, Alberto
A progênie brasileira de uma fachada da Renascença/ Alberto Sousa – João Pessoa : Mídia Gráfica e Editora, 2017.
Edição com versão em inglês. 180 p.; il. ISBN: 978-85-7320-112-3
1. Arquitetura religiosa – Brasil
2. Arquitetura – séc. XVI-XIX
3. Arquitetura classicista
4. Arquitetura barroca
CDU: 726(81)
Sumário do livro
Prefácio 7
Introdução 11
1. De um tratado arquitetônico a uma frontaria paradigmática 19
2. A utilização do modelo de Tomar em igrejas brasileiras 29
3. A persistência do modelo em fachadas com frontão barroco 63
4. A persistência do modelo em igrejas com frontaria barroca 81
5. Considerações finais 99
English version of the texto 117
Bibliografia / Bibliography 169
Lista das figuras 175
Origem das figuras 177
Sources of illustrations 179
Introdução
É sabido que certas fórmulas arquitetônicas perduram por um longo tempo.
Uma delas que merece ser destacada por sua longevidade e amplíssima difusão é a volumetria, adotada em igrejas, na qual duas torres erguem-se nos dois cantos frontais do edifício – que foi usada em numerosos países durante um milênio e meio. Incorporada há muito à memória coletiva do mundo ocidental, essa volumetria surgiu no século V, no Oriente Próximo, e foi utilizada até o segundo quartel do século passado, quando começou a ceder lugar a outras soluções, propostas pelos arquitetos modernistas.1
Este livro vai tratar uma dessas fórmulas, bem menos longeva e de difusão bem mais restrita, mas que interessa muito ao estudo da arquitetura religiosa brasileira, onde foi largamente empregada.
Estou me referindo àquele tipo de frontaria que é encimado por um frontão, ladeado por pilastras, vazado por uma fenestração em cruz (composta de uma porta central, um óculo também central – ou um ornato imitando este – e duas ou três janelas) e desprovido de pilastra ou cimalha intermediária que o divida em painéis.
Ele nasceu com a construção – em Tomar, Portugal – da ermida (ou capela) de N. S. da Conceição, iniciada por volta de 1550. Em apurada linguagem renascentista, essa primorosa edificação foi projetada pelo arquiteto luso-espanhol João de Castilho.2
Bem cedo a inovadora e marcante frontaria dessa capela tornou-se um modelo para fachadas de igrejas edificadas em Portugal e no Brasil. Mas apenas a descendência brasileira desse modelo será tratada aqui. Deixo para outros pesquisadores o estudo da progênie portuguesa dele, o qual possibilitaria um interessante paralelo com aquele cujos resultados são aqui apresentados.
Provavelmente foi por volta de 1580 que se começou a construir a primeira igreja brasileira com fachada afiliada à fórmula introduzida pela capela tomarense. Muitas outras foram edificadas no século XVII e muitíssimas o foram nas quinze décadas seguintes. Na segunda metade do Oitocentos a produção delas caiu fortemente, mas elas continuaram sendo erguidas. Logo, em terras brasileiras tal fórmula perdurou por cerca de 300 anos, tempo considerável, equivalente a mais da metade da existência de nosso país.
Minha admiração pela capela da Conceição de Tomar data de quando a conheci, há pouco mais de um quarto de século. Em fins dos anos 1990, quando escrevia o livro O classicismo arquitetônico no Recife Imperial,3 percebi pela primeira vez que sua frontaria tinha servido de modelo para um edificação brasileira (constatação que evidenciei no livro): a igreja anglicana do Recife, do final dos anos 1830. Mais tarde, me dei conta de que a fórmula definidora dessa frontaria fora adotada em múltiplas igrejas seiscentistas brasileiras e expus esse achado no meu livro A invenção do barroco brasileiro: a igreja franciscana de Cairu, publicado em 2005.4 Nos últimos anos, constatei que o mesmo aconteceu com um grande número de igrejas setecentistas brasileiras.
De posse dessas informações, resolvi escrever o presente livro para discutir os ecos da paradigmática frontaria da capela tomarense na arquitetura religiosa brasileira, desde a época em que eles tiveram início até os meados do século XIX.
Desconheço outra publicação que tenha feito o mesmo. Como assinalei no Prefácio, são exceções, no Brasil, análises que estudam conjuntos de igrejas da época colonial cujo traço comum seja o fato de terem seguido uma determinada fórmula arquitetônica. Ademais, em geral, a fórmula aqui estudada não tem atraído o interesse dos estudiosos, devido talvez à sua simplicidade, que – não perceberam eles – em vez de constituir uma deficiência era uma expressão da racionalidade e uma potencial fonte de beleza comedida e nobreza. Em outras palavras, a fórmula era um caminho conducente à “nobre simplicidade”, perseguida depois pelos arquitetos neoclassicistas.5
Pesquisando autores conceituados, encontrei somente dois que deram a ela alguma atenção – nitidamente insuficiente. Germain Bazin, o melhor analista das igrejas coloniais brasileiras, apresentou uma explicação – que discutirei adiante e que sempre me pareceu inconvincente – da origem da fórmula e falou genericamente sobre o emprego dela na arquitetura religiosa brasileira.6 John Bury ressaltou que ela foi largamente utilizada em Minas Gerais no Setecentos e emitiu uma opinião bastante desfavorável sobre ela, considerando a antiquada e provinciana.7
A pesquisa que fiz permitiu-me encontrar 200 igrejas brasileiras com frontaria derivada daquela da capela de N. S. da Conceição, em Tomar, e eu teria sem dúvida achado outras se não tivesse encerrado meu levantamento ao atingir esse número, que me pareceu suficiente para comprovar a amplíssima difusão que esse modelo alcançou no Brasil. Cheguei a esse total consultando muitos livros de história da arquitetura, inventários do patrimônio cultural, coleções de fotos e desenhos antigos, e sobretudo o vastíssimo acervo de imagens disponibilizado pela Internet, o qual – faço questão de o ressaltar – muito facilitou meu trabalho de garimpagem.
Procurei excluir da pesquisa capelas de engenhos e de fazendas, só abrindo exceção para umas poucas que, por alguma razão, julguei merecedoras de inclusão. Assim procedi porque elas se situam em propriedades particulares e porque meu interesse era estudar a difusão do modelo de Tomar no meio urbano e suburbano.8
Efetuei um exame global das 200 frontarias catalogadas, mas sabendo ser inviável deter-me em cada uma delas, resolvi comentar um quinto delas, ou seja, quarenta exemplares, cuja análise individual era compatível com o tipo de livro que eu tinha em mente. Fiz questão de dar heterogeneidade a esse universo menor a ser comentado incluindo nele: (a) igrejas situadas em dezesseis estados brasileiros (dos vinte existentes no começo da República, que os instituiu), em núcleos urbanos de diversos portes; (b) edifícios de tamanhos distintos; (c) frontarias de diferentes épocas e estilos; e (d) fachadas possuidoras de características variadas.
O passo seguinte foi dividir esse conjunto, que acabou ficando com 42 unidades, em três subconjuntos: o primeiro compreendendo vinte frontarias em estilos classicistas, o segundo reunindo doze fachadas híbridas em que o classicismo convivia com formas barrocas, e o terceiro incluindo dez frontispícios em linguagem barroca.
A cada um deles foi reservado um capítulo do livro, no qual cada frontaria é retratada através de uma imagem, e suas características principais são sintetizadas num parágrafo contendo geralmente entre dez e treze linhas – e no final do qual eu apresento as reflexões, de diversas ordens, que tirei da análise das fachadas nele tratadas.
A esses três capítulos foi acrescentado um outro, o último do livro, no qual exponho outras reflexões minhas, de diferentes naturezas, relativas ao conjunto das frontarias brasileiras – classicistas, híbridas e barrocas – que seguiram a fórmula em pauta, ou a determinados segmentos dele. Além disso, decidi que nesse capítulo final eu identificaria, num quadro, 58 fachadas adicionais, a fim de que a metade das frontarias catalogadas por minha pesquisa – ou seja, cem delas – ficasse identificada neste livro. Nesse quadro apontarei algumas características básicas de cada fachada e depois dele farei diversos comentários sobre as informações nele apresentadas.
Mas este livro não se restringe a analisar a progênie brasileira da capela tomarense em questão – ainda que ela seja seu objeto principal. Antes de se ocupar dela, ele identifica, já no capítulo seguinte, a provável fonte inspiradora do projeto da frontaria dessa capela que, creio eu, não só é mais convincente que a indicada por Germain Bazin, como parece ser a verdadeira, pelo que sugerem consistentes indícios que pude coletar.
Curiosamente, ao contrário do que costuma acontecer, essa fonte inspiradora não foi uma edificação existente nem um projeto arquitetônico não executado ou concebido para exercer o papel de modelo: foi um desenho traçado, pelo arquiteto italiano Cesariano, com a finalidade não de gerar uma construção, mas de ilustrar um livro dele publicado na Itália renascentista, em 1521, que adquiriu notoriedade por ser a primeira tradução para uma língua viva do célebre tratado de Vitrúvio, até então impresso apenas em latim.9
Decorre daí que, em última análise, as numerosas fachadas brasileiras que constituem o objeto do presente livro descendem, de uma maneira ou de outra, de uma relevante publicação pertencente à tratadística renascentista italiana, o que, a meu ver, é um atributo respeitável.
No capítulo seguinte, além de identificar a aludida fonte inspiradora, proponho uma explicação do processo transformador usado por Castilho para chegar ao projeto da frontaria da capela tomarense a partir de tal fonte, e também argumento em favor da tese, por mim formulada, que vê num desenho integrante de um tratado renascentista o ponto de partida da concepção desse projeto.
Considero, aliás, que com essas duas últimas ações eu possa estar prestando uma contribuição mais importante que aquela representada pela identificação que fiz desse ponto de partida. Penso assim porque a mesma identificação deste já pode ter sido feita por outrem – embora ela não o tenha sido por vários autores respeitados que consultei –, na medida em que um analista experiente que confronte o referido desenho de Cesariano com a fachada principal da capela tomarense pode detectar sem dificuldade (como aconteceu comigo) a relação de descendência que existe entre eles. Uma vez que não conheço tudo o que se escreveu sobre essa capela, seria imprudente de minha parte achar que eu tenha sido o primeiro a detectar tal relação. Já a argumentação que desenvolvo ao desempenhar as duas referidas ações é seguramente uma contribuição inédita, resultante de reflexões recentes minhas, até aqui não divulgadas.
Notas
1. A basílica de Turmanin, na Síria bizantina, parece ter sido uma das primeiras igrejas a fazer uso dessa fórmula (Emily Cole (org.), The grammar of architecture, Londres / Nova Iorque / Boston, Bulfinch Press, 2002, p. 149). Intrigante é constatar a similitude existente entre a volumetria dessa basílica e a da igreja quinhentista de Santa Maria da Graça, em Setúbal, Portugal, no que concerne ao tratamento do espaço situado entre as torres (cuja parte superior é vazia, com exceção de uma parede que une as faces traseiras das torres, enquanto a parte imediatamente abaixo está ocupada por um pórtico alinhado com as faces dianteiras das torres). Seria essa semelhança uma mera coincidência? Ou seria ela uma consequência do fato de que o arquiteto da igreja portuguesa projetou-a inspirando-se nessa basílica ou noutras igrejas de feição assemelhada que existiram na Síria nos princípios da era medieval?
2. http://www.patrimoniocultural.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa -do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/70239/ Em um livro publicado nos anos 1890, o arquiteto alemão Albrecht Haupt elogiou o edifício por sua originalidade, seu estilo rigoroso e a beleza do seu exterior; quanto ao seu interior, ele considerou-o ainda mais belo que o exterior e viu nele “um reflexo do primeiro Renascimento italiano” (em A arquitectura do Renascimento em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1986, p. 190-191).
3. Alberto Sousa, O classicismo arquitetônico no Recife imperial, João Pessoa / Salvador, Editora Universitária–UFPB / Fundação João Fernandes da Cunha, 2000.
4. Alberto Sousa, A invenção do barroco brasileiro – A igreja franciscana de Cairu, João Pessoa, Editora Universitária–UFPB, 2005.
5. John Summerson, The Architecture of the Eighteenth Century, Londres, Thames & Hudson, 1986.
6. Germain Bazin, A arquitetura religiosa no Brasil, Rio de Janeiro, Record, 1984.
7. John Bury, Arquitetura e arte no Brasil colonial, São Paulo, Nobel, 1991.
8. Várias capelas de engenho afiliadas à formula em questão podem ser vistas em Geraldo Gomes, Engenho & Arquitetura, Recife, Fundação Gilberto Freyre, 1997, p. 105-119, e no site https:// everderame.wordpress.com/cape las-de-engenho/
9. Cesare Cesariano, Di Lucio Vitruvio Pollione de Architectura libri dece..., Como, Gotardus de Ponte, 1521.
Capítulo 1 De um tratado arquitetônico a uma frontaria paradigmática
A primeira versão impressa do célebre tratado de Vitrúvio foi publicada, em latim, no ano de 1486, em Roma. Da mesma maneira que as cópias manuscritas anteriores e o tratado original, essa publicação quatrocentista consistia num texto sem ilustrações. Fra Giocondo teve a ideia de acrescentar desenhos ao texto vitruviano, para facilitar a compreensão deste, e materializou-a publicando em 1511, em Veneza, uma edição ilustrada do trabalho, escrita igualmente em latim.1
O fato de ambas as publicações estarem redigidas numa língua não mais falada que poucos conheciam limitava a acessibilidade delas ao público interessado. Por isso, o arquiteto Cesare Cesariano, discípulo do famoso arquiteto Bramante, resolveu preparar uma edição do tratado em italiano (a primeira tradução dele para uma língua viva), que foi publicada na cidade de Como, Lombardia, em 1521, sob o longo título Di Lucio Vitruvio Pollione de Architectura... e que encontrou grande aceitação. Seguindo o exemplo de Fra Giocondo, Cesariano também agregou ilustrações ao texto.
Ele utilizou uma delas (Fig. 1) para representar a planta e a elevação frontal de um templo do tipo prostilo descrito por Vitrúvio. Entretanto, essa ilustração era uma representação incorreta, como bem assinalou Christoph Jobst,2 pois tal templo tem na sua frontaria colunas livres formando um pórtico e não pilares interligados por paredes (que os transformam em pilastras). A divergência era menor no alçado, uma vez que o do templo em questão também ostentava quatro suportes verticais, um frontão triangular apoiado num entablamento e uma porta central (que no templo prostilo localizava-se numa parede recuada que fechava a frente da cela); porém, o óculo, as janelas e as pilastras largas, em segundo plano, que aparecem nas extremidades inexistiam no templo, constituindo acréscimos da autoria de Cesariano.
1. Ilustração existente na tradução do tratado de Vitrúvio feita por Cesariano (Illustration included in Cesariano’s translation of Vitruvius’ treatise)
Desta forma, a elevação que aparece em tal ilustração era na verdade uma criação dele – em linguagem renascentista –, traçada a partir da fachada frontal de um templo clássico (muitos outros arquitetos da Renascença projetaram frontarias que eram versões modificadas ou interpretações de modelos da antiguidade). Vou aqui argumentar que essa elevação criada por Cesariano foi o ponto de partida para a elaboração do frontispício da ermida de N. S. da Conceição, em Tomar, Portugal – projetada por João de Castilho e principiada em c. 1550. Em geral os analistas consideram essa capela – que sobressai pela pureza de sua linguagem classicista – uma obra que inovou a arquitetura portuguesa quinhentista e se inclui entre os melhores edifícios renascentistas construídos em Portugal.3 Castilho, que se notabilizara como arquiteto gótico-manuelino, deve ter conhecido o tratado de Cesariano, que alcançou uma substancial circulação. Pouco experimentado na nova linguagem renascentista e desejoso de dar uma ascendência nobre à frontaria da ermida (Fig. 2), ele concebeu-a tomando por base um desenho que, segundo aquele tratado, retratava um tipo de alçado da antiguidade clássica descrito por Vitrúvio – por ignorar, talvez, que tal desenho não era uma representação correta desse alçado. Se sabia disso, ele pode ter-se servido da ilustração de Cesariano, mesmo assim, por tê-la considerado um ponto de partida capaz de conduzir a um bom resultado – o que de fato ela terminou sendo.
2. Frontaria da ermida de N. S. da Conceição, Tomar, Portugal (Façade of the church of N. S. da Conceição, Tomar, Portugal)
Para chegar ao desenho da frontaria da ermida, Castilho fez uso, no meu entendimento, de três procedimentos que têm sido comumente adotados em casos de derivação arquitetônica: supressão, translação e redimensionamento.4
Primeiramente, ele suprimiu do desenho de Cesariano os seguintes elementos: as estátuas sobre o frontão, a metade inferior do óculo,5 as duas pilastras intermediárias, as pilastras recuadas e mais largas das extremidades, a estátua e o frontão triangular da portada, bem como parte do ornato situado na base das janelas. O resultado da supressão efetuada pode ser visto na Fig. 3.
3. Elevação antes e depois da supressão efetuada (Façade before and after the elimination of elements)
O passo subsequente foi transladar alguns componentes do alçado resultante da supressão efetuada. Castilho deslocou o meio-óculo até a base do frontão e as duas pilastras até as extremidades laterais da elevação, movimentando também as duas janelas diagonalmente, para baixo e para dentro (Fig. 4). Com essa translação ele obteve um desenho bastante próximo daquele do frontispício que foi edificado.
4. Elevação antes e depois da translação efetuada (Façade before and after the repositioning of elements)
A etapa final consistiu simplesmente em redimensionar certos elementos da frontaria, como a relação entre a altura e a largura dela, as janelas, a porta e o friso do entablamento.
O resultado da utilização desses três procedimentos foi o alçado que é mostrado na Fig. 5.
5. Resultado final das três intervenções (Final result of the three actions)
Em minha maneira de ver, foi por intermédio desse processo transformador que foi criado o frontispício da ermida de N. S. da Conceição, em Tomar.
Convém assinalar que este diferia substancialmente de uma espécie de frontaria renascentista italiana em que também estavam presentes pilastras de canto e um frontão – que foi usada em obras marcantes, como as igrejas de San Pietro in Montorio, em Roma, e Madonna del Calcinaio, em Cortona. Esse tipo de fachada era bastante vertical e tinha duas ou três aberturas (uma porta e uma ampla janela, circular ou retangular, e por vezes um óculo ou uma pequena janela no frontão) dispostas no seu centro ao longo de um mesmo eixo – características estas herdadas da era românica. Essa tipologia resultara da fusão desses traços medievais com a fórmula classicista na qual pilares de canto suportam um frontão, proveniente do templo clássico in antis.
Devido a sua origem diferente, o frontispício português em questão, a despeito de suas pilastras de canto e seu frontão, contrasta com tal tipologia italiana, por ser horizontal e conter quatro aberturas dispostas em cruz.
Germain Bazin propôs outra explicação para a gênese da frontaria da capela de Tomar: no seu entender, ela derivou da elevação frontal da igreja de Santa Maria delle Grazie (Fig. 6), situada em Pistoia, Itália, construída a partir de 1469 e afiliada à tipologia italiana à qual acabei de me referir.6 Como outros estudiosos do seu tempo, Bazin atribuiu essa elevação ao renomado arquiteto Miche- lozzo, mas essa atribuição foi contestada já em 1984 e é rejeitada pela comuna de Pistoia, que em seu site diz ser desconhecido o nome do projetista da igreja.7
Sou da opinião que Bazin se equivocou. Ao contrário da elevação de Cesariano e a da capela tomarense, a da igreja de Pistoia é vertical, tem mísulas nas cornijas do frontão e não apresenta fenestração em cruz (sua fenestração em linha seguia uma tradição medieval), nem arquitrave, nem friso, nem capitéis nas pilastras de canto. Teria sido mais trabalhoso, para Castilho, traçar a frontaria da ermida a partir da fachada pistoiese – pois tal exigiria um número maior de modificações – do que a partir da elevação de Cesariano, mais parecida com a frontaria da ermida. Além disso, o exitoso livro deste último arquiteto era uma fonte inspiradora bem mais prestigiosa do que uma igreja pouco conhecida e de importância arquitetônica secundária. Note-se também que a fachada de Cesariano e a de Castilho compartilham duas semelhanças significativas: capitéis jônicos nas pilastras e frontões triangulares encimando as janelas.
6. Frontaria da igreja de Santa Maria delle Grazie, Pistoia, Itália (Façade of the church of Santa Maria delle Grazie, Pistoia, Italy)
É bem mais provável que Castilho tenha se inspirado no que um estudioso de Vitrúvio que foi capaz de traduzir o tratado deste – Cesariano – dizia ser um modelo seguido na admirada antiguidade clássica, do que numa fachada quatrocentista de importância menor, dominada por uma fenestração pertencente à tradição medieval.
Fortalece a tese de que Castilho inspirou-se na ilustração de Cesariano a semelhança existente entre a planta nesta mostrada (Fig. 1) e a planta da ermida (Fig. 7), que em linhas gerais é quase a primeira acrescida, na frente, de seis módulos estruturais agrupados em duas faixas paralelas ao lado frontal. Foi talvez o fato de a planta de Castilho ter derivado de um desenho meramente ilustrativo que fez com que Kubler não tenha conseguido identificar nenhum edifício que pudesse ter servido de modelo para ela, levando-o a considerá-la um “desenho experimental” único.8 Observe-se que no seu comentário sobre a frontaria da ermida, Kubler não apontou nenhuma relação entre ela e o citado desenho de Cesariano – assim como não aderiu à tese de Bazin sobre a origem da frontaria.
7. Planta da ermida de N. S. da Conceição, Tomar, Portugal (Plan of the church of N. S. da Conceição, Tomar, Portugal)
Na verdade, ao que tudo indica, o projeto de Castilho para a fachada da capela tomarense não tinha ancestrais em edificações renascentistas italianas, como o revelam as vastas literatura e iconografia sobre elas por mim consultadas ao longo de muitos anos. Tal projeto – bem como o modelo em que ele se converteu – pode ser considerado uma feliz criação renascentista portuguesa, ainda que derivada de uma publicação italiana.
Por tudo o que eu disse acima, estou seguro de que minha explicação é bem mais convincente do que a proposta por Bazin, analista brilhante pelo qual tenho grande admiração. Se ele tivesse examinado atentamente a ilustração de Cesariano aqui discutida, certamente teria percebido que ela era uma explicação mais adequada para a origem do alçado português em questão do que a elevação frontal da igreja de Santa Maria delle Grazie, em Pistoia.
Como eu afirmei mais atrás, o frontispício da ermida de N. S. da Conceição, em Tomar, constituiu um modelo para numerosas frontarias brasileiras construídas entre fins do Quinhentos e meados do Oitocentos, muitas das quais serão tratadas adiante. Dado que ele será mencionado inúmeras vezes nos capítulos que se seguem, em nome da concisão quase sempre me referirei a ele simplesmente como o modelo de Tomar (ou tomarense).
Ressalte-se, entretanto, que esse modelo nunca foi seguido fielmente nas igrejas brasileiras, cujas frontarias se afastaram dele de alguma maneira.
Tal aconteceu até mesmo nas primeiras fachadas que o seguiram (que se diferenciavam dele moderadamente), como se verá no capítulo seguinte, onde algumas delas serão comentadas. A linguagem nelas presente não era o classicismo renascentista italiano – era o estilo chão português –, e elas exibiam algumas particularidades resultantes de exigências funcionais e construtivas impostas pelo contexto brasileiro, ou das preferências estéticas dos construtores locais.
As frontarias brasileiras se afastaram ainda mais do modelo de Tomar – mas sempre preservando a estruturação básica deste – quando formas barrocas foram nelas introduzidas no século XVIII, como se verá nos capítulos 3 e 4.
Notas
1. Bertrand Jestaz, Architecture of the Renaissance – From Brunelleschi to Palladio, Londres, Thames and Hudson, 1996.
2. Christoph Jobst, “Cesare Cesariano (1476/78-1543): Di Lucio VItruvio Pollione de Architectura”, in Teoría de la arquitectura, del renacimiento a la actualidad, Colônia, Alemanha, Taschen, 2006, p. 26-35.
3. Para José Eduardo Horta Correia, João de Castilho foi o “primeiro grande arquitecto português da Renascença” (em Arquitectura portuguesa: renascimento, maneirismo, estilo chão, Lisboa, Editorial Presença, 1991, p. 31).
4. Dois outros procedimentos também bastante utilizados em casos de derivação arquitetônica são a adição e a substituição de elementos. O próprio Cesariano empregou-os para transformar a frontaria de um templo protilo da antiguidade clássica naquela que aparece na Figura 1. No que concerne ao primeiro, ele acrescentou um óculo ao frontão e preencheu cada intercolúnio com uma parede vazada por uma abertura. E em relação ao segundo, ele substituiu as colunas por pilares, dois dos quais (os das extremidades) ele adornou com uma pilastra mais estreita.
5. É possível que Castilho tenha trocado o óculo circular por um semicircular por querer traçar uma fachada renascentista sem reminiscências medievais, já que a abertura redonda tinha sido um traço marcante das arquiteturas românica e gótica. Além de não estar associado a estas, o tipo de óculo que ele adotou tinha o mesmo formato semicircular de um gênero de abertura que fora utilizado em edifícios da Roma imperial: a janela termal.
6. Germain Bazin, A arquitetura religiosa no Brasil, Rio de Janeiro, Record, 1984, p. 366, 371.
7. https://www.comune.pistoia.it/1997/Chiesa-di-Santa-Maria-delle-Grazie
8. George Kubler, A arquitetura portuguesa chã – Entre as especiarias e os diamantes, 1521-1706, Lisboa, Vega, 1988, p. 34.
Notas finais:
.
Finalmente salienta-se que o processo editorial da Infohabitar, revista ligada à ação da GHabitar - Associação Portuguesa de Promoção da Qualidade Habitacional (GHabitar APPQH) – associação que tem a sede na Federação Nacional de Cooperativas de Habitação Económica (FENACHE) –, voltou a estar, desde o princípio de setembro de 2017, em boa parte, sedeado no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) e nos seusDepartamento de Edifícios e Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT); aproveitando-se para se agradecer todos os essenciais apoios disponibilizados por estas entidades.
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.
Infohabitar, Ano XIV, n.º 628
A progênie brasileira de uma fachada da Renascença
Infohabitar 628
Infohabitar 628
Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
abc.infohabitar@gmail.com
Editado nas instalações do Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do Departamento de Edifícios (DED) do LNEC; Infohabitar, Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).
Apoio à Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.
Sem comentários :
Enviar um comentário