Infohabitar, Ano V, n.º 268
Como foi referido no primeiro artigo desta série a ideia de escrever sobre "a vivenda", em termos gerais, mas essencialmente sobre os aspectos de humanização do habitar suscitados pela ideia de "vivenda", decorreu, directamente, de um óptimo artigo de Miguel Esteves Cardoso, intitulado “Vivenda Boa Esperança” e que foi editado no jornal Público. (1)
Lembrei-me, depois, de associar às palavras a editar sobre este assunto, algumas ideias com as quais abri, há poucos anos, um estudo realizado, publicado e disponível no LNEC sobre o título “habitação humanizada” (2), para o qual se poderão dirigir aqueles que queiram aprofundar estas temáticas.
E foi assim que, ao longo de três artigos, se apontaram algumas notas numa primeira aproximação um pouco mais "solta" sobre estas matérias do que aquela que se apresenta no referido estudo.
Estamos, hoje em dia, confrontados com uma serena, mas profunda, revolução das formas de habitar e dos conteúdos vivenciáveis, que estão a marcar e irão estruturar este novo século das cidades; e isto enquanto ainda nos debatemos com problemas críticos em termos de falta de qualidade de vida e especificamente de uma vida urbana que ligue, como tem de ser, uma habitação e uma cidade que sejam positiva e intensamente habitadas.
E assim, enquanto confrontados com a impossibilidade de habitarmos a ficção ou a realidade virtual, aqueles que continuam a insistir em viver a cidade e as diversas cidades que nela se integram, têm a responsabilidade de resgatar, "reabilitar" e aprofundar, estrategicamente, a importância dos sonhos do habitar - e a referência à estratégia liga-se ao habitar a cidade; isto embora tais sonhos sejam bem difíceis, face à destruição que continua a desenvolver-se das paisagens urbanas e rurais.
Mas atenção que tais sonhos habitáveis têm, obrigatoriamente, de transbordar dos nossos mundos domésticos e chegarem e marcarem, positivamente, a cidade habitada das vizinhanças e dos eixos urbanos, só assim tais sonhos serão viáveis.
Fig. 01
E, tal como fica bem expresso no seguinte texto de Manuel Blanco, mesmo o novo reino tecnológico continua, felizmente, a conviver com testemunhos fortes de um habitar expressivamente humanizado.
“Uma construção simples numa aldeia francesa permitiu a Herzog & de Meuron destilar a essência da arquitectura doméstica (Casa Rudin, Leymen), … E uma prenda em forma de casa pequena do norteamericano Robert Venturi para a sua mãe converteu-se na imagem mais reproduzida das últimas décadas no mundo da arquitectura (Casa Vanna Venturi, Philadelphia)…
No mundo doméstico apreciamos mais a intimidade e voltamos, uma e outra vez, à imagem da casa dos nossos sonhos. Nos anos sessenta, Robert Venturi ... um telhado de duas águas, uma grande chaminé e uma entrada como se tivera sido desenhada por uma criança marcava um dos ícones culturais mais significativos da segunda metade deste século...
Nas águas convulsas do final do milénio, Herzog & de Meuron voltam a destilá-la simples e completa, e o arquétipo reaparece na Casa Rudin, de Leymen. Parece que procuramos a segurança do conhecido...
Mas em paralelo voltamos a ter o excesso, de novo, herdeiro de S. Simeon de Hearst, magistralmente retratado por Orson Wells em Citizen Kane. O poderio da Microsoft reflecte-se na nova casa (ou palácio?) do seu dono, que responde à nossa voz e aos nossos mais pequenos desejos como se fora a gruta de Ali Babá e o génio da lâmpada de qualquer conto encantado... reconhece os convidados, recorda as suas preferências, temperaturas favoritas e as suas vidas ou transporta-os navegando nos seus grandes écrans aos limites do hiperespaço. É uma casa que se ocupa das nossas necessidades, levando ao limite o conceito de edifício inteligente, onde o importante não é a sua arquitectura...
A possibilidade de um isolamento conectado pode modificar de forma importante a ocupação do território na nossa sociedade. O teletrabalho, o teleshopping, os acessos rápidos a produtos culturais ou de diversão e escapa e a necessidade de espaço – cada vez mais caro e restrito nas nossas cidades – podem produzir uma retorno a meios naturais e a uma arquitectura dispersa. Et in Arcadia ego (e eu na Arcádia) ... Uma versão idílica de um mundo feliz onde a arquitectura e o espectáculo se misturaram com os nossos sonhos, onde o poder dos meios de comunicação criou novas estrelas que vão transformando, com outros monumentos, a nossa paisagem quotidiana.” (3)
Temos, assim, múltiplas ferramentas e embora elas estejam por todo o lado, e tenham inegável utilidade, voltamos, julgo que, felizmente, "uma e outra vez, à imagem da casa dos nossos sonhos"; haverá, assim, ainda, esperança para esse sonho e para tudo aquilo que ele nos proporciona de uma qualidade de habitar muito para lá da simples satisfação funcional.
E sobre este vital caminho do aprofundar doméstico e urbano dos desejáveis sonhos de habitar, é oportuno reflectir sobre duas frases de Josep Muntañola, a seguir transcritas de um excelente livro deste autor (4), e onde se apontam a potencialidade da poesia e o ponto focal estratégico do habitar como meio privilegiado de pensar a Arquitectura:
Diz Muntañola que, “tal como indica e muito bem Ch. Norberg-Schulz citando Heidegger, é justamente através da interelação entre o construir, o habitar e o pensar que a arquitectura pode ser poética... «A poesia é aquilo que primeiro liga o homem à terra e assim o introduz no habitar», assinala Heidegger a partir de uma poesia de Hölderlin.”
E Muntañola sublinha, ainda, que, segundo Heidegger, “a poesia estrutura a natureza do habitar... Poeticamente o homem habita... Mas a capacidade poética só é possível se o homem se apropria enquanto homem afável, com «coração» (afectivamente), e reconciliado com o seu próprio habitar (kindness em inglês, charis em grego).”
Teremos assim um objectivo de criação de um melhor habitar, mais humanizado, através de caminhos específicos de poesia/afectividade, apropriação e provavelmente empatia de quem habita relativamente a um espaço habitado e desejavelmente sonhado, seja directamente, seja através dos especialistas desse sonho e da procura e identificação dessas empatias. E este processo tem de ser muito especialmente positivo, "dialogante", mas relativamente "passivo", quer nos aspectos de adequação a cada habitante e família habitante, o que nos leva naturalmente para fundamentais características de adaptabilidade, seja nos aspectos ligados à atractividade e ao sentido urbano e cívico, também necessárias nas estruturas do habitar.
Sobre esta matéria que trata de harmonias muito difíceis, mas essenciais, entre um habitar doméstico e urbano positivamente humanizado e sonhado, por cada um, mas igualmente bem marcado pelo sentido cívico apontam-se mais algumas palavras de Norberg-Schulz, que nos ajudarão a encontrar os melhores caminhos nesta essencial plataforma entre qualidade arquitectónica e satisfação profunda de quem habita casa e cidade, uma plataforma em que é necessário encontrarmos uma Arquitectura que sonhe alto, mas com os pés bem na terra, que marque bons desenhos para as gerações futuras terem testemunhos efectivos do seu passado, mas que, nas casas que faz e nas cidades que compõe, seja, também, verdadeiramente amável, compreensiva e amiga dos sonhos dos habitantes, pois só assim a habitação e a cidade habitada cumprirão o seu fundamental interesse social.
Escreveu, então, Norberg-Schulz:
“Tentei demonstrar que a existência do homem depende do estabelecimento de uma imagem ambiental significativa e coerente do “espaço existencial”. Também assinalei que tais imagens pressupõem a existência de certas estruturas ambientais(ou arquitectónicas) concretas, recusando admitir que esses princípios perdem significado por causa da televisão e demais meios de comunicação rápida.
Que devemos então pedir ao espaço arquitectónico para que o homem possa continuar a designar-se como humano? Em primeiro lugar devemos pedir uma estrutura representável que ofereça abundantes possibilidades de identificação.
A tarefa do arquitecto é ajudar o homem a encontrar um sítio existencial onde firmar-se, concretizando as suas imaginações e fantasias sonhadas. Os conceitos de casa, cidade e país são ainda válidos. Dão um estrutura ao novo entorno «aberto» e tornam possível que possamos ser cidadãos do mundo.” (5)
E afinal parece que tudo isto tem muito a ver com "o arquitecto", que deve "ajudar o homem a encontrar um sítio existencial onde firmar-se, concretizando as suas imaginações e fantasias sonhadas!"
E ficamos com uma magistral definição de arquitecto:
"O arquitecto é um ser que caminha sobre a espuma das paisagens
e vive encantado pelas sombras que sobrevivem à flor da relva exactamente
no lugar onde as outras pessoas nunca passam
perguntam os mestres no cruzamento das traves onde
descansa o arquitecto curiosamente maravilhados pelo silêncio
que se desprende das paredes
consumindo a casa toda a partir do traço exacto
que descai do tecto
em direcção ao corpo
da terra
...
eis o arquitecto debruçado sobre a mesa com a aflição
dos guerreiros
...
o arquitecto é o abismo que atormenta o sonho"
Foram palavras do poeta José António Gonçalves.Notas:
(1) Miguel Esteves Cardoso, “Vivenda Boa Esperança”, Jornal Público, 16 de Setembro, 2009.
(2) António Baptista Coelho, Habitação Humanizada – TPI 46, LNEC, Lisboa, Julho de 2006, 577 p., 121 fig; e Habitação Humanizada: Uma apresentação geral – Memória 836, LNEC, Lisboa, 2007, 40 p., 19 fig.
(3) Manuel Blanco, “Arquitectura fin de siglo – El mayor espectáculo del mundo”, GEO, Esp. , n.º 162, 2000.
(4) Josep Muntañola, Poética y arquitectura, Barcelona, Editorial Anagrama, 1981, pp. 59 e 60.
(5) Christian Norberg-Schulz, Existencia, Espacio y Arquitectura, Barcelona, Editorial Blume, trad. Adrian Margarit, 1975, p. 135.
Nota editorial: embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.
Infohabitar Ano V, n.º 268
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte
18 de Outubro de 2009
Edição de José Baptista Coelho
Label: habitação, habitação humanizada, arquitectura e satisfação habitacional
1 comentário :
Muito instructivo e agradável de ler.
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