Série habitar e viver, I: A importância de um verdadeiro habitar
artigo de António Baptista CoelhoIntrodução à série de artigos: “Habitar e viver”
Com o texto que se segue inicia-se o que se espera vir a ser uma nova e longa série de artigos, realizados numa perspectiva, que se considera fundamental, de se assumirem os espaços residenciais como factores decisivos numa vida pessoal e urbana verdadeiramente satisfatória e estimulante.
Ao longo de muitos textos iremos falar, aqui, de casas pensadas para serem bem habitadas, de como foram pensadas pelos seus autores e de como as pessoas as habitam e as pensam, quando as habitam. Iremos passear pelos espaços que medeiam entre a cidade e o habitar íntimo, e, naturalmente, num sentido contrário, físico e visual, num ciclo que se deseja virtuoso e não vicioso, embora lhe conheçamos, naturalmente, muitos vícios, quando lembramos tantos sítios que “habitamos”.
A ideia é irmos pensando sobre tais espaços entre a cidade e a casa e entre a casa e a cidade, em abordagens mais específicas sobre determinados níveis e cenários mais urbanos, mais de vizinhança, mais familiares ou mais íntimos, numa sequência de artigos que terá, por vezes, mudanças de sentido e de ritmo, assim como visará diferentes perspectivas, por exemplo, mais teóricas, mais práticas, mais ambientais, mais simbólicas, etc., etc.
Fig. 00: o jogo da glória diário, da casa às zonas mais animadas da cidade e em sentido contrário, num ciclo que não pode ser vicioso.
Falarmos dos ciclos ou do jogo da glória entre cidade e casa, ou melhor entre cidade, bairro, vizinhança e casa e depois na sequência inversa, dos interiores domésticos aos “interiores” urbanos, não significa esquecermos a natureza, seja numa perspectiva de paisagem global, na qual uma boa cidade se deverá integrar positivamente melhorando, pela cultura, a ordem natural, seja numa perspectiva pormenorizada da inserção da natureza no urbano, e das mil formas que tem de assumir a natureza na cidade, humanizando-a, é um facto, e aproximando-a da sua matriz natural; ainda que, eventualmente, pela quase-ausência de elementos naturais, possamos, por exemplo, centrarmo-nos num pequeno jardim urbano estratégico, que pode ser até uma única árvore rodeada da cidade do pormenor.
Num mundo globalizado e reduzido pelas tecnologias de informação, numa vida marcada pela falta de tempo para quase tudo, numa perspectiva estruturada por estratégias de consumismo geminadas com planos de vida rigidamente estruturados, num século que parece que se teria iniciado sem ideologias e com a ideia de que certas qualidades, como o convívio, a solidariedade e até a capacidade poética, seriam meras perdas de tempo sem sentido; e que afinal acorda para a mais que provável total insensatez de tais ideias e para problemas de qualidade de vida diária que muitos pensavam serem já fantasmas do passado, é talvez a boa altura de nos determos sobre a importância que pode ter uma verdadeira qualidade do nosso habitar no dia-a-dia.
Fig. 01
E ao entender que essa qualidade pode ser realmente muito marcante numa vida mais agradável e com mais significado, poderemos querer começar a ter muito mais cuidado com as características do habitar desse nosso jogo que se quer da glória e nunca de um desagrado, tantas vezes profundo, com tantos dos elementos que integram os nossos cenários de vida.
Aqui iremos sempre, numa “profissão de fé” clara sobre a certeza de que a qualidade residencial é fundamental para uma vida melhor e mais estimulante e que uma tal importância decorre de muitos, muitos mais aspectos para além dos funcionais, e será mesmo possível afirmar, desde já, que alguns dos principais problemas de inadequação e de rejeição de determinadas soluções de habitar têm a ver, exactamente, com ter-se dado, durante dezenas de anos uma inusitada importância à funcionalidade doméstica e residencial, num sentido estrito de funcionalidade “mecânica”, e de se ter considerado que a funcionalidade, por si só, seria capaz de qualificar uma dada solução residencial e urbana, o que foi e é, sem dúvida, um gravíssimo erro.
Fig. 02
Algumas notas de enquadramento sobre a importância e a natureza do habitar
Habitar deve poder ser feito na casa de cada um e na vizinhança de cada um, a vizinhança que, por um lado, amplia a casa e que, por outro, traz a cidade até essa vizinhança.
Habita-se, assim, uma espiral contínua de níveis físicos residenciais, desde os limites de um bairro aos espaços domésticos, passando pelos agrupamentos residenciais que, desejavelmente, devem constituir sistemas de vizinhança de proximidade, verdadeiramente coesos e atraentes em termos funcionais e visuais.
E nesta espiral do habitar não passamos só pelos principais mundos residenciais – o centro urbano, o acesso ao centro, o bairro, a vizinhança, o edifício e a habitação –, mas também usamos, intensamente, os limiares e os elementos de relação e de transição entre aqueles; e há até quem afirme que a Arquitectura está, privilegiadamente, nesses elementos de relação …, pois, afinal, são essas transições e ligações que verdadeiramente podem assegurar a continuidade e concatenação espacial, funcional e ambiental que deve caracterizar essa espiral.
Noutro trabalho, editado há alguns anos e onde faço uma apresentação sistemática, exaustiva e diversificada dessa espiral - “Do Bairro e da Vizinhança à Habitação”, ITA 2, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 2000 –, chamei-lhe "jogo da glória" diário, um jogo que se desenvolve entre os as nossas casas, as ruas onde moramos, os cafés e quiosques onde, habitualmente, paramos um pouco, não só por qualquer necessidade, como será beber um café ou comprar o jornal, mas por qualquer outra vontade de parar e beber um café enquanto se passa os olhos pelo jornal, e, depois, a entrada nos grandes fluxos urbanos já mais estranhos ao nosso bairro, até, que finalmente, chegamos ao sítio onde trabalhamos.
Fig. 03
Mas o "jogo da glória" diário continua com os nosso percursos habituais a meio do dia, também pontuados pelos mais diversos ambientes, espaços e relacionamentos, até que, depois, no final do dia, fazemos o percurso inverso, que nos traz de volta ao nosso espaço de habitar familiar e pessoal, através de uma sequência de cenários urbanos desejavelmente vivos, seguros e estimulantemente encadeados.
Já aqui se regista algo que irá marcar toda esta reflexão, que é o diálogo constante que é necessário fazer e aplicar, em termos práticos, entre objectivos funcionais e outros objectivos essenciais para se viver com alegria e satisfação, e já Christian Norberg-Schulz escreveu que:
"A arquitectura preocupa-se com algo mais do que necessidades práticas e economia. Ela trata de significados. Os significados derivam de fenómenos naturais, humanos e espirituais, e são experimentados como ordem e carácter. A arquitectura traduz estes significados em formas espaciais. As formas espaciais em arquitectura não são nem Euclidianas nem Einsteinianas. Em arquitectura as formas espaciais significam lugar, percurso e domínio, isto é, a estrutura concreta do ambiente humano. Por isso a arquitectura não pode ser satisfatoriamente descrita através de conceitos geométricos e semiológicos. A arquitectura deve ser entendida em termos de formas significantes".
Nesta viagem por alguns modos de fazer boas casas e bons sítios de vida, afinal, bons sítios de habitar, iremos então pensar sobre formas significantes, mas também sobre formas e elementos que satisfaçam os habitantes, e, também aqui, nem tudo o que nos satisfaz é do foro funcional.
Iremos então aqui pensar um pouco sobre o "jogo da glória" urbano diário e sobre conjuntos diversificados de qualidades, umas mais mensuráveis outras menos, mas não iremos aqui tratar de fornecer os parâmetros dessas qualidades, que estão disponíveis no livro que referi, nem, por uma questão de opção, iremos andar a passear pela cidade. Um tal passeio citadino, sem dúvida útil, terá de ficar para outras oportunidades, mas nesta série de artigos falaremos apenas da cidade das vizinhanças e dos espaços residenciais pormenorizados dos edifícios e das habitações; sublinha-se, assim, que, embora se reconheça a importância determinante do espaço urbano, considerado numa perspectiva de continuidade urbana bem viva e caracterizada, esse papel protagonista da cidade habitada/humanizada não será aqui, nesta série, objectiva e extensamente comentado.
De facto a importância da “boa cidade” para um bom habitar é determinante, tal como ficou acima apontado nas referências feitas ao “jogo da glória" diário entre os nossos pequenos mundos domésticos, passando pela esquina da vizinhança onde dizemos bom-dia ao jornaleiro, até aos sítios da cidade onde trabalhamos e onde, afinal, também habitamos. Mas não se pode pensar sobre tudo ao mesmo tempo e assim iremos ficar pelo início e fim desse “jogo da glória" diário, e iremos, provavelmente, até essa esquina, embora focando, sempre mais, os mundos de proximidade que se desenvolvem dentro e na envolvente directa das nossas casas.
Fig. 04: as vizinhanças de Nuno Teotónio pereira e Pinto de Freitas em Olivais Norte, Lisboa
Mas além de um tal “jogo da glória" diário cidade-casa-cidade há mais a dizer, de forma destacada, sobre um habitar mais qualificado e que em nós produza verdadeira satisfação, pois a habitação não deve ser mais considerada somente como um bem de consumo que responde a imperativos funcionais, mas também como um bem cultural. O habitar deve deslocar-se, diz Jean Nouvel, “para o domínio dos bens de consumo culturais, domínio para o qual evolui realmente uma parte da sociedade” (Éleb e Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, p. 247).
E, sinceramente, nunca acreditei que a habitação e o habitar pudessem ser considerados como bens de consumo funcionais e tenho mesmo a noção que quando tal aconteceu e acontece não houve nem há verdadeira satisfação com o habitar, haverá, sim, um habitar potencialmente influenciador de uma vida menos motivadora; pois há muito mais no habitar para lá da funcionalidade, diria mesmo que o verdadeiro habitar começa além da funcionalidade e quando a funcionalidade é verdadeiramente estruturadora é porque se conjugou com outras qualidades do verdadeiro habitar como os aspectos culturais, a versatilidade dos usos, a atractividade urbana, etc., etc.
Fig. 5: Uma vista do apartamento mobilado da Casa Milá, de Gaudi, em Barcelona.
“Habitar e viver”
"Em caixas sobrepostas vivem os habitantes da grande cidade...O número da rua e a designação do andar fixam a localização do nosso «buraco convencional», mas a nossa casa não tem nem espaço à volta dela, nem verticalidade...A nossa casa não tem raiz...os arranha-céus não têm cave...Os edifícios na cidade só têm uma altura exterior. Os elevadores destroem os heroísmos da escada... falta aos diferentes compartimentos do alojamento refugiado num andar um dos princípios fundamentais para distinguir e clarificar os valores da intimidade. E o estar em casa não é mais do que uma simples horizontalidade"(1); neste texto Gaston Bachelard identifica um conjunto de aspectos potencialmente geradores de um mau habitar, ou, pelo menos, de uma crítica indiferença residencial, uma indiferença que, rapidamente, irá degenerar em más influências na nossa vida diária; não será um texto de síntese sobre esta matéria, mas nele fica evidenciado muito do que nos desagrada nas casas que habitamos, e ao longo desta série de artigos tentaremos ir reflectindo de forma prática sobre estes e outros aspectos afins, auxiliando-nos de muitos exemplos que provam ser possível viver em boas casas pelo mesmo custo financeiro do viver nessas tristes casas a que se refere Bachelard.
Keil do Amaral associou à qualidade arquitectónica as "conjugações significativas de edifícios correntes com boa qualidade arquitectónica e bem agrupados ao longo das ruas, ou envolvendo praças, ou enquadrando monumentos, ou valorizando parques e jardins, ou dispostos segundo critérios actuais, menos formalistas... " (2); e, muito provavelmente, boa parte do que caracteriza o bom habitar é consequência desta “normalidade” organizativa e formal, um excelente quadro onde as nossas vidas podem ser protagonistas.
E partilha-se a opinião do Arq.º George Ferguson, Presidente do RIBA (em 2004), que referiu estar convencido que de um melhor desenho resulta um melhor habitar, através de uma mais ampla e profunda satisfação com o habitar, seja esse habitar exercido numa escola, num escritório ou, naturalmente, numa habitação (3). Todos estaremos, porventura, de acordo que, se assim for, e considerando conjuntos habitacionais que são frequentemente dedicados a pessoas socialmente desfavorecidas, é provável que a promoção de habitação de interesse social, apoiada pelo Estado, possa e deva assumir um papel de relevo como ferramenta de apoio ao desenvolvimento pessoal e social dessas pessoas e das respectivas vizinhanças e comunidades locais, e, nesta perspectiva, é fundamental desenvolverem-se e aplicarem-se neste tipo de promoção habitacional verdadeiras linhas de humanização do habitar, linhas estas que pouco têm a ver com os custos, mas sim, essencialmente, com uma verdadeira qualidade do projecto urbano e doméstico.
Trata-se de um facto conhecido, mas parece que tem sido pouco interiorizado pela própria sociedade, em termos da importância que tem no que se refere à evolução de soluções de forma/função em ligação, por um lado, com a história da cultura e do sequencial enriquecimento do nosso património urbano, e, por outro, com os aspectos da satisfação das necessidades e dos desejos de uma grande diversidade de grupos socioculturais; pois tem de ficar claro que viver numa obra de boa arquitectura residencial é realmente uma experiência muito positiva.
Sobre a construção dos nossos pequenos mundos domésticos o arquitecto e o habitante P. Céleste refere que se trata “de ocupar um sítio, de estar em sua casa, de produzir uma habitação calorosa. O contexto é o que nos anima. Há peças que devem ver o exterior e esse exterior deve fazer sonhar. Há que ter atenção a uma distribuição simples que proporcione dar um nome a cada peça e que se ligue a comportamentos habitacionais muito flexíveis... não é possível a circulação dupla se as áreas não o permitem... é preciso encontrar uma certa forma de deambulação, estar atento à arte de colocar uma porta, uma janela, atento aos gestos quotidianos. O habitar de hoje não é mais pensado como no século xix para a festa e a recepção, mas para a relação com a vida quotidiana” – uma citação extraída do excelente livro de Monique Eleb e Anne Marie Chatelet . (4)
Repare-se que Céleste nos fala de “ocupar um sítio”, de o apropriarmos, mas também, e naturalmente, de “produzir uma habitação calorosa”; e a seguir refere que é o contexto que nos anima; um conjunto de aspectos que nos falam de um habitar “único”, não monótono, não mudo e em relação, em continuidade. Todos estes aspectos determinantes num habitar que verdadeiramente nos entusiasme; e porque não deveríamos pedir ao habitar menos que isso: que nos entusiasme!
Fig. 06: o tecido urbano denso e vivo de Barcelona.
E o mesmo Céleste, depois de falar um pouco sobre o arquitectar dos espaços do habitar – pensando talvez mais nos interiores, mas podemos, todos, imaginar aqui vizinhanças, pracetas e curiosas sequências citadinas habitadas – refere que o habitar de hoje é pensado, menos para a festa e a recepção e mais para a relação com a vida quotidiana; e aqui deixo, para já, duas reflexões.
A primeira sobre a eventual falta que hoje temos, verdadeiramente, de alguma festa e algum convívio, que equilibre tanta dureza e tanto excesso de gratuita funcionalidade urbana, como se máquinas fôssemos e não seres de carne e osso e mente e sentimentos.
A segunda reflexão tem a ver com uma pergunta que quero aqui sublinhar e que se refere a saber se os nossos espaços vivenciais e residenciais são, hoje em dia e de forma geral, razoavelmente adequados às nossas vidas quotidianas?
E aqui tenho de apontar, desde já, que julgo que não! Porque desde há algumas boas dezenas de anos e com naturais excepções positivas, tem havido um constante distanciamento entre o que realmente precisaríamos para melhor viver na cidade e aquilo que nos é “oferecido” e tantas vezes em prol de uma sociedade nova, moderna, funcional e “adequada”; e as verdadeiras necessidades humanas estão muitas vezes criticamente ausentes.
A ideia que fica é que parece ter-se criado, provavelmente no início do século XX, uma distância entre as verdadeiras necessidades humanas residenciais e urbanas e meio urbano residencial, e depois essa distância acabou por se ir ampliando tantas vezes por razões funcionais, frequentemente ligadas às necessidades dos veículos e eventualmente a outras necessidades ditas “económicas”, mas muito pouco humanas, nisso não haja dúvida; e hoje em dia há que acrescentar a este hiato, entre verdadeiras necessidades residenciais e urbanas, uma discrepância entre os modos como hoje se vive a cidade e a casa e as ideias ainda vigentes sobre o que é habitar e viver a cidade e a casa.
E, por fim, há sempre que lembrar que para além das “simples” necessidades há os desejos e há os sonhos e são estes, parece, que fazem rodar o mundo.
Realmente há muito mais num habitar amplo e bem qualificado para além das matérias racionais e funcionais, e está na hora de aprofundarmos e debatermos esse muito mais pois, por um lado já se viu onde essa parcialidade na abordagem do habitar nos levou; e se há hora mais adequada de tratarmos tal assunto é agora neste nosso novo século das cidades, das grandes cidades.
Esta nova série de artigos quer ajudar a um tal aprofundamento e a uma tal discussão e quer, assim, contribuir para que se possam (re)fazer partes de cidade verdadeiramente humanizadas e vitalizadas por um habitar que seja, simultaneamente, uma outra nossa pele pessoal, doméstica e uma outra “nossa” pele social, cívica e urbana.
Notas:
(1) G. Bachelard, "La Poétique de l'Espace", p. 30.
(2) Francisco Keil Amaral, "Lisboa uma Cidade em Transformação", p. 58.
(3) Artigo de Rita Jordão Silva no Jornal Público de 29 de Novembro de 2004, citando George Ferfuson, Presidente do Royal Institute of British Architects na inauguração da nova galeria do Victoria and Albert Museum, dedicada a uma exposição permanente de arquitectura, num significativo retorno ao passado pois até 1909, e tal como se refere no artigo, “a arquitectura era a alma do Victoria and Albert Museum”.
(4) Monique Eleb e Anne Marie Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, 1997,, p. 238
1.º Artigo da Série “Habitar e viver”.
Edição Infohabitar: Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 16 de Novembro de 2008.
Editor, José Baptista Coelho
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