quinta-feira, fevereiro 01, 2007

124 - Condição de adaptabilidade dos espaços culturais, um caso de estudo: Solar dos Zagallos – artigo de Ana Tomé (1) e Teresa Heitor (2) - Infohabitar 124

 - Infohabitar 124

Ana Tomé (1)
Teresa Heitor (2)

(1) Arquitecta, Mestre em Construção, Assistente na Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa, investigadora do Instituto de Engenharia de Estruturas, Território e Construção (ICIST), e-mail: anatome@civil.ist.utl.pt

(2) Arquitecta, Doutorada em Engenharia do Território, Professora Associada do Instituto Superior Técnico (IST) da Universidade Técnica de Lisboa (UTL), investigadora do ICIST, e-mail: teresa@civil.ist.utl.pt – Av. Rovisco Pais, 1049-001 Lisboa, Portugal.

Palavras chave: adaptabilidade, reconversão funcional, reabilitação, espaços habitacionais e culturais, Câmara Municipal de Almada, Solar dos Zagallos – Centro de Artes Tradicionais de Almada em Portugal, Avaliação Pós-Ocupação, métodos de representação e análise espacial, satisfação dos utilizadores, compatibilidade/incompatibilidade entre espaço e usos.

RESUMO

A comunicação reporta-se à análise da reconversão funcional de edifícios e ao desenvolvimento de um instrumento de análise susceptível de caracterizar os pressupostos indutores da adaptabilidade espácio-funcional.
O instrumento analítico apoia-se em metodologias de Avaliação Pós-Ocupação (Preiser, 1996; Sanoff, 2001) e em métodos de representação e análise espacial (Hillier e Hanson, 1984). Com base na sua aplicação a um edifício em situação de uso, identificam-se as regras morfológicas presentes, analisam-se alterações espaciais e funcionais ocorridas após a sua ocupação, avalia-se o grau de satisfação dos utilizadores e identificam-se factores de compatibilidade/incompatibilidade entre espaço e usos.

O trabalho desenvolvido baseia-se no estudo de caso do Solar dos Zagallos – Centro de Artes Tradicionais de Almada em Portugal. Datado do séc. XVIII, foi, na sua origem, a casa-mãe de uma quinta agrícola mais tarde transformada em quinta de recreio. Os diferentes proprietários habitaram o Solar de modos distintos, facto reflectido na evolução da sua forma construída. Nos anos oitenta, o Solar foi adquirido pela Câmara Municipal de Almada. Sujeito a recuperação arquitectónica, foi transformado em equipamento cultural do concelho. Analisando esse processo de reactivação funcional, e os modos de apropriação espacial decorrentes, pretende-se contribuir para a compreensão das regras morfológicas intrínsecas à condição de adaptabilidade do espaço arquitectónico e sua interacção com os padrões de uso suportados pelo edificado.

ABSTRACT
The paper refers to the analysis of buildings reconversion and to development of an instrument of spatial and functional analysis capable of describing the space and functional adaptability inductors.
The analytical instrument is based on Post Occupation Evaluation methodologies (Preiser, 1996; Sanoff, 2001) and on space analysis methods (Hillier and Hanson, 1984). Morphologic rules and functional alterations were analyzed. Users satisfaction was evaluated and adequacy factors between space and use are identified.
The work is based on a case study: Solar dos Zagallos – Almada Center of Traditional Arts (Portugal). The building was built in XVIII century as a farm-house and latter was transformed to housing (recreation farm). Along time households needs have changed. This fact had reflexes on the built form. Late in the XX century it was acquired by the local authority and transformed into cultural center. The analysis of the functional reconvertion process, and the understanding of the morphologic rules concerns space adaptability condition and its interaction with the use patterns.

1. ADAPTABILIDADE DOS EDIFÍCIOS – RAZÃO DE SER E ÂMBITO

A análise do desempenho físico e funcional dos edifícios é um tema de estudo relativamente recente. Os actuais modelos de desenvolvimento urbano e a crescente complexidade e especialização dos grupos sociais induziram a necessidade de novos critérios informadores dos actos de projectar, construir e gerir edifícios.

Sendo as estruturas edificadas o suporte operacional das actividades de organização social devem adequar-se, na concepção e uso, ao devir dessas actividades e dessa organização porque, nas sociedades contemporâneas, as respostas “estacionárias” (Thiel, 1996) não são viáveis e poderão ser contraproducentes. As vicissitudes físicas e funcionais de um edifício têm de ser ponderadas em fases de projecto e devem ser estudadas ao longo da sua vida útil.

Metodologias de análise espácio-funcional de edifícios, e pressupostos projectuais subjacentes, poderiam socorrer-se da teorização de William Peña (1987). Para este autor os edifícios são entendidos como objectos físico-espaciais dos quais interessa avaliar a flexibilidade segundo critérios de extensibilidade (possibilidade de ampliação), convertibilidade (capacidade de modificação da organização interna) e versatilidade (polivalência dos espaços).

Esta sistematização analítica pode ser um expedito auxiliar de projectistas e gestores, mas os edifícios não são, apenas, objectos físicos. Trata-se de objectos sociais. Não nascem dos materiais. Nascem de necessidades sociais. Os edifícios não se constroem para assumirem formas de geometria variável. A flexibilidade espacial será uma propriedade física mas não é a essência, a razão de ser do edifício.

O espaço pressupõe o uso e a relação espaço/usos carece de análise inclusiva do protagonista dessa relação: o utilizador, o grupo social. A alteração do espaço é epifenómeno de alterações de uso decorrentes de alterações de organização social. Para um dado edifício a flexibilidade não será mais do que um valor de circunstância, flutuante segundo a natureza do problema espácio-funcional que interessa resolver.

Outros autores (Hillier e Hanson, 1984) também contribuíram para a análise dos edifícios recorrendo a modelos de análise sintáctica que procuram descrever a estrutura configuracional dos sistemas espaciais (arquitectónicos e urbanos). Na perspectiva sintáctica, a linguagem formal da dinâmica urbana e arquitectónica organiza-se segundo estruturas configuracionais relacionadas com estruturas sociais.

Evidenciaram, aqueles autores, que o espaço adquire uma determinada ordem e expressão formal em resultado de um processo social, e que essa expressão é sistematizável segundo tipos morfológicos. Na visão morfogenética de Hillier e Hanson perpassa uma analogia biológica quanto ao processo de configuração formal: o genótipo, como organização genética, e o fenótipo, como organização derivada, distinta mas decorrente do genótipo.

No estudo de edifícios, o genótipo é o conjunto de valores espaciais abstractos que deverão prevalecer nas formas construídas, fenótipos, que dele derivam. Dalton e Kirsan (2005) consideram que o genótipo de um edifício será o grafo mais similar a todos os outros grafos de uma amostra de edifícios da mesma tipologia. Consideram, também, que será mensurável a convergência/divergência entre o grafo genotípico e um seu grafo fenotípico.

A distância, ou divergência, fenotípica entre estruturas configuracionais tem correspondência na modificação das estruturas sociais com ela relacionadas. Observou Hillier (2002) que essa correspondência poderá ser questionável confinando-se o conceito de tipo morfológico a uma relação biunívoca entre um dado padrão de actividade social e uma dada configuração espacial. Para aquele autor o conceito de “tipo” transcenderia a relação entre um único padrão de actividade e uma única forma espacial.

Segundo Hillier, o nexo entre organização social e organização espacial de um edifício deve ser ponderado no quadro de categorias de organizações sociais possíveis e de categorias de formas espaciais possíveis. Um dado edifício corresponderia à conjugação de elementos específicos de uma das categorias com elementos específicos de outra categoria, organizando-se segundo padrões de uso compreensíveis pelos procedimentos metodológicos da análise sintáctica espacial e da análise pós-ocupacional.

Por outro lado, as tipologias morfológicas (espaciais) não podem deixar de ser relacionadas com homólogas tipologias organizacionais (sociais). Os conceitos de genótipo e de fenótipos espaciais terão correspondência em genótipos e fenótipos de organização social. O equilíbrio inicial não pode ser assumido como estável e perene. A estabilidade dessa relação depende dos valores espaciais e dos valores sociais que estejam em causa.

Num edifício entendido como sistema de sistemas técnicos, albergando sistemas sociais, esse processo de adaptação, essa adaptabilidade, sustenta a possibilidade de sobrevivência desse sistema porque a adaptabilidade não depende, exclusivamente, da espacialidade edificada. É uma propriedade determinada pela relação entre o habitante e o edificado.

O processo evolutivo (ou de mera sobrevivência) de um edifício, depende da sua estrutura (construtiva, espacial, funcional, social) mas depende, também, de relações específicas com um contexto envolvente (implantação geográfica, significado histórico, valor de memória, extensão dos laços comunitários, funcionalidade económica, etc.), pelo que a adaptabilidade será um processo contínuo, enquanto que a flexibilidade é um processo pontual, um particular momento no processo de adaptabilidade.

Como objecto social, o edifício depende de uma área de suporte territorial e de uma envolvente de suporte cultural e económico. Neste sentido a adaptabilidade é uma propriedade inclusiva do edifício no seu contexto. Contrariamente, a flexibilidade é uma propriedade, exclusiva de um edifício, circunscrita ao seu espaço interno (Figura 1).




Figura 1 – Adaptabilidade e flexibilidade: âmbitos de influência

Sendo objectos sociais, os edifícios não podem ser analisados como meros abrigos de sobrevivência e organização dos grupos humanos. Em contrapartida também não são seres naturais. Não podendo evoluir segundo um darwinismo adaptativo têm de ser concebidos e têm de ser geridos por critérios que permitam a coerência da relação espaço/função consoante foi assumida na génese do edifício, na matriz social, espacial e territorial que suportou o acto de construir.

Interpretações sintácticas espaciais, intervenções flexibilizando o edificado, requalificações do grupo social utilizador, são questões que não se esgotam nem se resolvem no edifício em si mesmo. Se, por razões práticas, os edifícios podem ser entendidos como simples abrigos, nas situações como as do Solar dos Zagallos (recuperação/renovação/uso cultural) outros critérios devem prevalecer para que o desempenho dos edifícios não dependa de decisões administrativas, para que possam viver e respirar sem estarem ligados a um ventilador político.

O estudo visou compreender as relações entre o espaço edificado do objecto de estudo e os usos actuais. O estudo efectuado corresponde a uma aproximação ao estudo das condições de adaptabilidade do edifício. A abordagem focou-se no conhecimento da capacidade de resposta do sistema espacial às solicitações decorrentes das actividades culturais implementadas. Permitiu estabelecer conclusões relativamente ao embebimento do Solar dos Zagallos no tecido social e urbano do concelho. Assim, foi possível delinear uma primeira apreciação do processo adaptativo do Solar ao presente estatuto funcional.

O artigo está dividido em cinco partes. Na primeira parte discutiu-se a razão de ser e âmbito do conceito de adaptabilidade; na segunda parte faz-se o enquadramento histórico do caso de estudo e explicita-se o seu desempenho actual; na terceira parte explana-se a metodologia aplicada e enunciam-se as principais conclusões obtidas em cada etapa; na quarta parte estabelece-se o diagnóstico do caso de estudo e discutem-se factores indutores da adaptabilidade do edifício, na quinta e última parte enunciam-se conclusões gerais e indicam-se futuras linhas de desenvolvimento do trabalho.

2. SOLAR DOS ZAGALLOS – REFERÊNCIA HISTÓRICA; DESEMPENHO ACTUAL


A Quinta dos Zagallos está classificada como património municipal. A Quinta integra diversos edifícios de entre os quais se destaca o edifício residencial designado por Solar. É uma construção do século XVIII, constituída por dois pisos organizados em L (Figura 2).

Ao longo da sua existência a Quinta e o Solar atravessaram vicissitudes modeladoras da sua identidade física e social. Utilizadores distintos matizaram a apropriação dos espaços. Na sua génese o Solar foi casa agrícola transformada em quinta de recreio pelos proprietários, a família Zagallos. Nesse período (início do século XIX) foi construído o corpo dos salões complementado com a escadaria de acesso ao pátio. Cerca de um século mais tarde, o declínio financeiro dos proprietários determinou a cedência do Solar a um credor – a família Piano – que lhe reconverteu o uso, transformando-o em habitação alternativa de férias.

Em finais do século XX, dificuldades financeiras da família proprietária determinaram a sua venda à Câmara Municipal de Almada. O Solar foi objecto de um processo de recuperação. A função original foi alterada: a habitação unifamiliar (espaço privado) deu lugar a um equipamento cultural (espaço público). Actualmente o Município procura estabilizar a identidade funcional do edifício como Centro de Artes Tradicionais do concelho.

As novas valências de uso pretendem satisfazer três vertentes: fruição/lazer, criação/formação e pesquisa/formação. A gestão do Solar procura adaptá-lo a suporte de pontuais iniciativas culturais (pequenos espectáculos teatrais; concertos de música; palestras). Como actividade permanente foi instalada uma exposição de olaria relacionada com o passado histórico da região.


Figura 2 – Solar dos Zagallos: localização (Quinta dos Zagallos); piso 0, piso 1 e perspectiva do pátio

No decurso de duzentos anos a relação entre o sistema espacial do Solar e as actividades nele desenvolvidas pelos seus utilizadores-proprietários manteve-se relativamente estável. O carácter residencial do espaço, suporte de uma família economicamente preponderante nos destinos da comunidade, constituiu o traço comum que marcou esse passado do edifício.

O contexto envolvente do Solar e da Quinta também manteve o seu cunho rural. Ainda hoje, apesar da urbanização generalizada e da implantação industrial, subsistem resquícios de práticas remanescentes do amanho da terra. A aquisição do Solar pela entidade camarária corresponde a uma alteração dessa primitiva relação de equilíbrio espácio-funcional. Marca uma nova fase de existência do edifício.

3. ABORDAGEM METODOLÓGICA


A abordagem sistémica da Avaliação Pós-Ocupação (APO) foi o processo metodológico sustentador do objectivo deste estudo. Neste âmbito destacam-se, pela relevância das informações recolhidas, as observações directas. Este método possibilitou a aquisição de informação privilegiada sobre vivências do edifício e do território. O diagnóstico da actual relação espaço-uso incorporou outras metodologias complementares tais como a abordagem sintáctica espacial. A aplicação do modelo sintáctico permitiu identificar, objectivamente, propriedades espaciais e cotejá-las com os modos de apropriação e uso do espaço observados.

As linhas gerais da abordagem metodológica desenvolvida encontram-se sintetizadas no quadro da Figura 3. O objecto de estudo foi caracterizado de acordo com três componentes: físico-construtiva; espácio-funcional e comportamental (Ornstein, 1995). Complementarmente, procedeu-se à caracterização sumária da envolvente no sentido de contextualizar o objecto de estudo. Esta contextualização abrangeu vários aspectos: geo-físicos, históricos, sócio-económicos, espaciais. Considerou não só a caracterização do enquadramento espacial próximo e imediato do Solar – a própria Quinta como, também, a caracterização do enquadramento urbano da vila da Sobreda onde aquele se localiza (acessibilidades, estrutura morfológica, componentes funcionais, etc.).

O processo analítico seguido congregou vários métodos de investigação de acordo com os objectivos específicos de cada componente a caracterizar. As observações directas constituíram-se como uma fonte de informação preferencial comum a todas as componentes consideradas e suporte de todas as fases do trabalho. As entrevistas a entidades significativas quanto ao seu conhecimento sobre o Solar, constituíram outra importante fonte de informação, devido ao número restrito de dados sistematizados sobre o assunto. Por este meio, foi possível aprofundar aspectos concretos da matéria em estudo (por ex. continuidades e descontinuidades das atribuições funcionais do Solar após a sua ocupação pela entidade camarária).

As observações indirectas (consulta de documentação disponível sobre eventos passados, relatos informais, etc.) constituíram informação de natureza complementar que permitiu estender o conhecimento das actividades culturais além do presente imediato. Os questionários permitiram colher informações relativamente ao seu perfil dos visitantes do Solar. Permitiram, também, avaliar outros aspectos: modo de conhecimento dos eventos; conhecimento prévio do espaço e meio de transporte utilizado. Possibilitaram, ainda, estabelecer uma apreciação global dos utilizadores relativamente ao ambiente construído do Solar.

A necessidade de investigar questões de natureza específica requereu o recurso a abordagens especializadas. No âmbito da caracterização físico-construtiva do Solar, foi desenvolvida pesquisa no sentido de procurar as razões subjacentes a um dos principais problemas patológicos detectados na estrutura do Solar – humidade nas paredes evidenciado nos Salões. As acções desenvolvidas implicaram o contacto com especialistas do Laboratório Nacional de Engenharia Civil - LNEC (Lisboa).




Figura 3 – Quadro-síntese: abordagem metodológica (perspectiva geral)

No âmbito da caracterização espácio-funcional, a aplicação do modelo sintáctico desenvolvido por Hillier e Hanson (1984) permitiu aprofundar o conhecimento do sistema espacial e das suas propriedades configuracionais e, em particular, identificar a vocação funcional dos espaços.

Seguidamente, e relativamente a cada componente caracterizada, explanam-se alguns dos procedimentos desenvolvidos no âmbito dos métodos aplicados.

3.1 Caracterização físico-construtiva

O Solar é uma construção tradicional, com paredes exteriores portantes, de alvenaria húmida de pedra e tijolo contemporânea do Terramoto de 1755. Identificaram-se e sistematizaram-se problemas relativos ao estado de conservação do edifício. Elaborou-se um documento, referente às patologias da construção, constituído por três fichas: a primeira, comporta a informação base e as outras duas comportam informação complementar que permite localizar e identificar o problema focado na primeira.

A caracterização patológica assenta em três informações essenciais: os sintomas apresentados pela patologia, (modo como se manifesta); a natureza da patologia, (identificação do tipo de problema em causa); e a sua causa provável, (um diagnóstico definitivo carece, nos casos mais complexos de investigação específica).

Concluiu-se que as patologias que mais afectam o Solar estão relacionadas com condensações e humidades do terreno, que ascendem por capilaridade, resultantes da alteração do comportamento termo-higrométrico das paredes afectadas. As suas causas não são directamente originadas por uso intenso ou desadequado. Antes se conotam com uma reconstrução deficiente, que nem sempre terá tido presente conhecimentos actualizados da problemática específica dos problemas referenciados. A impermeabilização das paredes com a aplicação de rebocos novos, de cimento, ao invés de cal, conjugados com deficiências na execução do corte de humidade das fundações permitiu explicar os sintomas observados.

A reconstrução efectuada, ao repor a aparência do edifício, não terá recuperado a sua lógica construtiva subjacente, cunhada na matriz formativa do objecto. A alteração desse equilíbrio termo-higrométrico poderá vir a comprometer definitivamente o suporte construído do edifício e, deste modo, a sua própria existência.

3.2 Caracterização espácio-funcional
A análise das propriedades espaciais do sistema, e da sua relação com as actividades em curso, recorreu ao método da Análise Sintáctica. Foi aplicado o modelo gama (g) vocacionado para a descrição de objectos arquitectónicos.

As representações gráficas utilizadas baseiam-se no mapa convexo (representa relações de contenção espacial e de contiguidade; é o menor conjunto de espaços convexos de maior área); no mapa axial (representa relações de acessibilidade física e visual; é o menor conjunto de linhas axiais de maior comprimento); e no mapa g (grafo justificado que representa o programa e a fragmentação espacial). Os três tipos de representações do modelo g (piso 1) encontram-se exemplificados na Figura 4.


Figura 4 – mapa convexo, mapa axial e grafo justificado: (piso 1)

As informações do mapa convexo permitiram a análise da dimensão local do sistema. Compreendeu-se a distribuição e a extensão dos sectores funcionais no espaço. O Sector Cultural é aquele que ocupa mais células e as células de maior dimensão, enquanto o Sector Administrativo é mais concentrado no espaço. A contiguidade espacial detectada comporta uma diferença básica: o número de adjacências directas entre células é mais elevado para os gestores e menor para os visitantes. Os primeiros condicionam a evolução espacial dos segundos diminuindo a permeabilidade directa entre células. As células mais condicionadas são aquelas que possuem adjacências directas com o exterior (os salões, por exemplo).

Os mapas axiais permitiram analisar a dimensão global do sistema. Traduzem uma diferença essencial quanto às distintas acessibilidades dos utilizadores: para os gestores a acessibilidade é total; para os visitantes a acessibilidade é condicionada. A rede de acessibilidades caracteriza-se pela sua densidade e é marcada por grandes eixos de desenvolvimento axial. Resultam da profusão de espaços de transição existentes e da elevada adjacência que caracteriza a dimensão local do sistema. Nos salões (piso 1), as acessibilidades geradas permitem estabelecer fluências muito intensas entre interior e exterior. A concentração de acessibilidades exteriores nesta zona possibilita a sua autonomização espácio-funcional relativamente ao todo.

Os grafos justificados permitiram estudar configurações distintas que o sistema espacial pode apresentar, e analisar variações nas propriedades sintácticas do espaço, resultantes dos condicionamentos introduzidos pelos gestores. Os grafos referenciados aos gestores expressam as qualidades do sistema espacial, utilizado em toda a sua extensão; os grafos referenciados aos visitantes constituem derivações do sistema original. Expressam utilizações parciais do espaço. A quantidade de derivações que o sistema original apresenta traduz a versatilidade do sistema espacial implicando, por outro lado, maior dificuldade na sua descodificação e controlo.

Concluiu-se que o sistema se caracteriza por acentuada profundidade espacial marcada por extensas linhas de percurso. A intensa acessibilidade espacial resulta não só da profundidade do sistema mas, também, da sua permeabilidade (interior e interior/exterior).

Como consequência da multiplicação de adjacências directas entre espaços próximos, assiste-se à formação de sub-sistemas cíclicos promotores da dispersão do controlo espacial – fenómeno particularmente sensível nas conexões dentro-fora. Alguns espaços (salas da coordenação) conjugam propriedades espaciais complementares: elevada contiguidade e obrigatoriedade de passagem. Os gestores controlam e acedem rapidamente ao sistema.

A natureza da versatilidade do sistema resulta da possibilidade de condicionamentos diferenciados (embora limitados) do espaço em função das solicitações das actividades acolhidas. As limitações prendem-se, essencialmente, com aspectos de extensibilidade (áreas úteis restritas e indisponibilidade de espaço livre) e de conversibilidade (rigidez do tipo de estrutura portante).

3.3 Caracterização comportamental (usos)

A análise dos modos de apropriação espacial do Solar teve, a montante, o esclarecimento da constituição dos grupos de utilizadores-tipo. Estes abarcam uma variedade de sub-grupos de visitantes que interagem de modos diferenciados com o objecto de estudo. A análise incidiu sobre o sub-grupo atraído ao Solar pelas suas actividades culturais. A sua interacção com o espaço é mais intensa e directa relativamente a outros sub-grupos de visitantes.

A importância das observações directas no conhecimento dos modos de apropriação do espaço justificam o destaque de algumas situações observadas. A informação foi recolhida através de registos fotográficos, desenhados e escritos. Referenciam-se dois eventos ambos caracterizados por ocupação extensiva do espaço e concentração de elevado número de utilizadores. Os acontecimentos descritos implicaram respostas diferenciadas do sistema espacial às cargas de uso a que foram sujeitos. Contribuíram para a compreensão das limitações das capacidades de uso do Solar. Os eventos decorreram durante as festividades natalícias (2002).

A observação de um espectáculo de música com crianças e jovens, do Coro Juvenil e Infantil do Conservatório Regional de Almada, permitiu assistir a uma ocupação do espaço que ultrapassou os limites da sua capacidade (Figura 5). Os grupos actuantes, constítuidos por alunos e professores, e a assistência formada por familiares e amigos, concentraram mais de uma centena de visitantes.

O espectáculo ocorreu no Salão Dourado e demorou cerca de uma hora. Os espectadores tinham acesso através das escadarias do pátio com entrada pelo do Salão Verde. No entanto, os acessos não foram controlados e o público rapidamente abriu as portas do Jardim de Aparato relativas a ambos os salões. O Salão Dourado encontrava-se completamente lotado bem como com o corredor central e periferia do compartimento, ocupados com espectadores de pé.

As salas vizinhas dos salões foram ocupadas pelos artistas como salas de ensaio e camarins. O acesso ao sistema era feito a partir do percurso sul com entrada através da Sala 1. Mais uma vez, não sendo controlados os acessos, foi aberta a porta de ligação com a varanda (entrada do público). Estabeleceu-se grande promiscuidade entre fluxos de espectadores e de artistas. As actuações decorreram num clima de grande perturbação, com muito ruído de fundo, resultante dos movimentos caóticos de atravessamento do espaço, inviabilizando a audição e visualização das apresentações em condições aceitáveis.

O segundo evento observado – cantos populares – corresponde à recriação de uma memória natalícia em que os habitantes da vila, em Janeiro, visitavam as casas senhoriais brindando os donos com cânticos da época. O evento implicou uma ocupação do espaço em toda a sua extensão, por um número bastante alargado de pessoas, durante um período de tempo que decorreu por quatro ou cinco horas (Figura 6).


Figura 5 – Registo: Coro Juvenil Figura 6 – Registo: Janeiras

A Presidente da Câmara, na varanda dos salões, assumia o papel de proprietária recebendo os grupos actuantes que aguardavam sinal de entrada junto do portão do pátio. Ao sinal, avançavam até junto da escada exterior. Faziam uma primeira actuação enquanto o grupo seguinte aguardava junto da fogueira acesa no pátio. Subiam as escadas e faziam uma segunda actuação no Salão Verde. Finalmente, conduzidos por elementos da equipa do Solar, atravessavam o Salão Dourado, as Salas 1 e 2, e todo o corredor, em direcção às salas a nascente onde era servida uma ceia. Terminada a refeição, o grupo descia ao piso 0, pelas escadas interiores, acedendo novamente ao pátio.

Concluiu-se que a estrutura espacial tem alguma capacidade para suportar picos de ocupação concentrados desde que a evolução dos utilizadores no espaço seja muito controlada. Estas observações permitiram aprofundar a compreensão da versatilidade espacial do sistema e dos condicionamentos da sua usabilidade. O contraste estabelecido entre os dois eventos, evidenciou a importância do controlo do sistema para o funcionamento normal das actividades. Foi igualmente evidente o facto de esse controlo ser muito volátil dada a acentuada permeabilidade física e visual do sistema espacial.

4. DIAGNÓSTICO E DISCUSSÃO


A abordagem metodológica seguida permitiu estabelecer o diagnóstico da presente relação entre o espaço do Solar e os seus usos. O programa de actividades culturais implementado, temporalmente descontínuo, não se encontra estabilizado. Assiste-se a ensaios de utilizações (condicionados por limites orçamentais apertados) que procuram dotar o sistema de um sentido de uso perene hesitantemente decorrente da antiga quinta de recreio. Como consequência, o espaço apresenta-se sub-utilizado com dois picos de ocupação localizados na época natalícia e ano novo e na festa do Solar, em Junho.

A modificação dos padrões de uso da antiga habitação (sem ventilação natural resultante da abertura diária de portas e janelas, sem produção de calor na cozinha agora desactivada e com uma ocupação quase sempre residual) contribui, subtilmente, para um processo de degradação potenciado por técnicas de reabilitação não coerentes com a lógica construtiva do edifício.

Embora, devido à delicadeza da estrutura centenária e limitações da sua versatilidade espacial, o uso do Solar deva ser condicionado relativamente ao número de utilizadores e tempo de utilização tal necessidade não deve ponderar apenas factores quantitativos. Deve antes visar uma estratégia de uso assente na qualidade de ocupação subjacente a uma nova ordem funcional. Essa qualidade, questão sensível neste caso, exprimiria a compatibilidade entre o padrão configuracional do espaço e os padrões de actividades dos utilizadores. O uso é o elo a recuperar.

Nos tempos primordiais, o Solar constituia-se como um pólo actuante sobre a envolvente. As relações estabelecidas com o contexto resultavam da sua integração no tecido social da Sobreda, facto potenciado por este ser um meio pequeno. A Quinta dos Zagallos empregava parte da população da vila. O predomínio económico e financeiro da família conferia-lhe influência política nos destinos da Sobreda. Tal relação encontrava paralelo do ponto de vista urbano: a entrada principal da Quinta, situada no antigo Largo do Rio, rematava a rua principal da Sobreda. Hoje, a antiga via apresenta-se segregada na malha urbana subvertida por urbanizações desfiguradoras da paisagem.

A equipa gestora do Solar ensaia alguns usos reportados à memória de usos passados. São exemplos disso certas actividades desenvolvidas. Tratam-se de eventos episódicos que não satisfazem a necessidade de reconstituir consequentemente a natureza da função original e dotar este espaço de uma usabilidade coerente. Outras actividades (como as exposições) nada comportam de identitário relativamente ao espaço que as suporta (nem quanto ao seu conteúdo, nem quanto ao modo como se espacializam no sistema).

O Solar, não obstante o seu aparato cénico, e o investimento na sua recuperação, parece uma entidade sem radiação proporcional ao seu estatuto. Em contrapartida, edifícios vizinhos de análoga tipologia genotípica, recuperados por particulares, apresentam uma notável vitalidade. A estes edifícios foi dado um uso utilitário (celebração de eventos sociais) análogo ao da sua matriz. Ao Solar foi dado um uso institucional pouco consequente. Naqueles casos, foi desenvolvido um processo de adaptação, de compatibilidade das alterações funcionais com as alterações espaciais e sociais. Essas actividades de sucesso não cedem o passo à urbanização mantendo presente a antiga estrutura morfológica do território.

A procura de um conteúdo de uso mais consequente e natural para o invólucro espacial do Solar é uma questão intimamente ligada ao conhecimento das condições de adaptabilidade do edifício. As metodologias existentes, aplicadas a este estudo, permitiram fazer o retrato da actual situação. A APO é vocacionada para o estudo de edifícios em uso; a Análise Sintáctica debruça-se sobre o estudo do espaço e das propriedades decorrentes da sua configuração. No entanto, por si só, estas abordagens não abrangem as questões levantadas pelo conceito da adaptabilidade. As respostas terão de ser procuradas na matriz formativa do objecto. O objectivo será clarificar o carácter desses usos primordiais. Para compreender esses valores será necessário extravasar para além do objecto. Há que fazê-lo no tempo (procurando as razões subjacentes à sua origem) e no espaço (analisando a sua ancoragem morfológica, funcional e social ao território). A pesquisa de outros valores requer instrumentos de análise adequados. Outras abordagens metodológicas serão necessárias para inquirir os valores da adaptabilidade.

5. DESENVOLVIMENTOS FUTUROS


No estudo efectuado procurou-se analisar as capacidades adaptativas do Solar às actividades culturais implementadas. Concluiu-se que o espaço apresenta uma versatilidade moderada resultante da capacidade de compartimentação interna e da autonomização do sistema espacial; suporta ocupações extensivas desde que muito controladas. O espaço solarengo encontra-se sub-utilizado. A reinterpretação autárquica do sentido do uso da antiga quinta de recreio e fruição não estará a ser eficaz na reconversão funcional do edifício.

O aprofundamento das condições de adaptabilidade de espaços culturais terá como referência o Solar e assentará em três vertentes: 1) estudo das questões relacionadas com esse espaço público; 2) comparação com outros exemplos significativos; 3) desenvolvimento de abordagens metodológicas específicas.

O aprofundamento de aspectos relacionados com o caso de estudo do Solar implica a identificação da matriz formativa do objecto sendo relevante analisar o edifício no seu contexto urbano actual. A comparação do grafo genotípico do Solar com os grafos fenotípicos marcantes de cada fase da sua existência contribuirá para o esclarecimento do processo evolutivo do sistema espacial.

Confrontar-se-á esse conhecimento com os perfis dos grupos de utilizadores que, em cada uma dessas fases, habitaram o edifício e com os seus padrões de actividades. A consideração de outros casos de estudo permitirá estabelecer análises comparativas relativamente às condições de adaptabilidade de espaços culturais. Procurar-se-á comparar e analisar as condições de adaptabilidade de edifícios reconvertidos para fins culturais e de edifícios projectados para essas necessidades.

O estudo das condições de adaptabilidade de espaços culturais exige o desenvolvimento de abordagens metodológicas específicas. As técnicas de observação das relações entre espaço e utilizadores recorrem frequentemente a procedimentos de observação directa. As dificuldades e limitações de registo que este tipo de técnicas comporta são evidentes. Dependem das capacidades de quem observa (capacidades de concentração, de decisão, de registo, etc.). Também não permitem registar a simultaneidade/continuidade dos acontecimentos culturais, factores determinantes para o estudo do fenómeno. Por estas razões, procurar-se-á desenvolver técnicas alternativas de observação e registo que permitam ultrapassar as limitações dos procedimentos convencionais da observação directa muito dependentes do factor humano.

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