quarta-feira, março 04, 2020

A questão da audição jurídica de crianças fora dos Tribunais e outros aspetos interventivos ao nível do território e defesa de humanos, e não-humanos, mais vulneráveis: o projeto da Quinta do Zurro (QZ) - Infohabitar # 721

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Infohabitar, Ano XVI, n.º 721



A questão da audição jurídica de crianças fora dos Tribunais e outros aspetos interventivos ao nível do território e defesa de humanos, e não-humanos, mais vulneráveis:

pelo sonho é que vamos! – o projeto da Quinta do Zurro (QZ)


Maria Paula Elvas (QZ), João Lutas Craveiro (LNEC), Teresa Nogueira (QZ)

Ilustrações de António Baptista Coelho (LNEC)



A Quinta do Zurro (QZ) é um projeto de intervenção fundado em 2013, por Maria Paula Elvas (advogada) e tendo como paixão as crianças e os animais, os seres mais vulneráveis. Objetivo? Contribuir para a felicidade… A felicidade diferente dos que nasceram diferentes ou que se tornaram diferentes! A felicidade dos que têm a felicidade suspensa… A felicidade da liberdade adiada… E a felicidade de proteger o olhar terno de um burro… Ou de outros olhares em extinção… Este é o sonho da QZ! Mas como os sonhos têm a capacidade de nos alertar para as necessidades dos outros e de se multiplicarem, este sonho metamorfoseou-se numa espécie de polvo: mas o polvo tem força suficiente para lutar com um tubarão! O meu sonho também tem força para lutar contra os tubarões. Os polvos usam também os seus vários membros, e a QZ tem muitos membros para a emancipação da esperança, da proteção dos mais débeis e vulneráveis à exposição a todas as formas de violência. Não há sonho que não privilegie a alma e o coração. Os animais têm coração. Os animais têm alma, como os espaços têm memória. E as crianças todos os sonhos do mundo, e o futuro todo pela frente!
A QZ não é uma receita milagrosa para todos os males, mas é uma possibilidade de intervir. De sonhar e de continuar a pensar que as soluções (muitas vezes) são simples, não são necessariamente holísticas nem podem servir para tudo, mas requerem (sempre) vontade e confiança. Mesmo problemas que parecem demasiado complexos, e que nunca encontrarão uma reposta definitiva (como as alterações climáticas ou a violência, que se integram dentro do que tem sido designado como wicked problems, problemas que dificilmente se poderão dar como inteiramente controlados ou mitigados), apelam a soluções progressivas, pequenos passos e decisões que multiplicam exemplos positivos. É assim a receita da QZ! Na defesa de soluções que passam por pequenos-grandes compromissos e por utilizar certos ingredientes ao nosso alcance. 
Passa por misturar, por exemplo, animais e os animais de grande porte (de raças autóctones em vias de extinção) com pessoas vulneráveis. Afinal, misturam-se as vulnerabilidades dos ecossistemas e as comunidades locais – sob uma evolução dos territórios que levou à migração para as grandes cidades e o definhamento das lides tradicionais, em contacto direto com a terra e os animais de quinta, isolando ainda mais as vulnerabilidades dos seres mais frágeis, especialmente crianças vítimas de abusos sexuais e de todas as formas de violência doméstica.
As vulnerabilidades dos ecossistemas e comunidades locais refletem, pois, o abandono de práticas agrícolas tradicionais e a falência de culturas rurais de pequenos e médios agricultores, num tempo já recuado em que as crianças tinham, desde cedo, contacto com os animais que também integravam a economia doméstica. A casa, como unidade doméstica de habitação, muitas vezes com uma divisão para os animais (que também aqueciam a casa e lhe dava mais conforto no inverno), confundia-se com a unidade de produção: a casa, e a sua envolvente, constituiam, pois, um mundo inteiro na relação com os animais, os vizinhos, e as gentes da vila que se encontravam no mercado ou na igreja. Era uma sociedade de interconhecimento, como dizem os antropólogos, onde toda a gente se conhece!
Não se trata, no entanto, de voltar a tempos passados, nem de defender uma sociedade ruralizada, muitas vezes (também) fechada sobre si própria, e escondendo igualmente muitas formas de violência e de discriminação (desde logo, da mulher, nos trabalhos agrícolas e no salário, mas também das crianças – tantas vezes privadas de ir à escola – e mesmo dos animais que, contudo, podiam ser bem acarinhados enquanto disponham de boa saúde... e eram úteis para a economia familiar e as tarefas dos campos!).
Não, trata-se de um regresso ao futuro, por uma sociedade mais justa, ecologicamente equilibrada, uma ecologia social realizada nesse comunalismo libertário (de que falava Murray Bookchin)... Um municipalismo emancipado no envolvimento das populações e das instâncias judiciais e políticas, no desenvolvimento de compromissos que tenham em conta a interdependência entre os sistemas sociais e os sistemas ambientais.
No limite, trata-se de um novo tipo de Contrato Social que integre novos valores de sustentabilidade e de relação entre seres humanos e não-humanos, a sociedade e a natureza. O Contrato Social descrito por Jean-Jacques Rousseau apela, assim, tonificando a sua matriz de co-responsabilidade, a um Contrato Natural (Michel Serres) com a Terra e os outros animais: pois não importa se os outros animais pensam (e certamente que pensam), mas se são capazes de sentir dor e prazer. Este carácter senciente, já reivindicado há séculos pelo Utilitarismo enquanto corrente filosófica, precisa ser plenamente reconhecido: em cada ser vivo.
Porquê defender as raças autóctones portuguesas?
Como a QZ defende, as raças autóctones representam um património genético muito valioso. As diferentes raças autóctones de bovinos, ovinos, caprinos, suínos e equinos são o resultado da evolução dos animais, de determinadas espécies, no sentido de se adaptarem aos ambientes que suportaram a sua existência – especialmente na relação com os humanos.
Quando uma população vive, durante muitas gerações, sob as mesmas condições ambientais consegue um elevado grau de adaptação e uniformidade, desenvolvendo-se melhor nestas condições que outras raças que provenham de outras regiões. Estes animais podem ser originários das regiões onde se inserem ou terem mudado para esses mesmos locais por migração, consequência de alterações fisiográficas ou por necessidade dos humanos e das suas atividades.
Dada a evolução social e territorial (embora apenas em finais do século XX a população residente em Portugal passasse a ser maioritariamente urbana), muitos destes animais, que durante várias gerações foram úteis à sociedade, perderam o seu estatuto rural de bestas de trabalho ou de animais de guarda e companhia. A QZ procura promover ações de intervenção local que proteja este património genético, sendo urgente encontrar novas valências nas relações de convivialidade e de proximidade entre as populações e os animais.
Estas valências passam pelo conhecimento das características das raças autóctones, da sua história e dos seus constrangimentos vários, mas também pela sua utilização em terapias assistidas para pessoas diminuídas nas suas capacidades motoras ou cognitivas. A mais-valia dos animais prende-se com essa troca de energia e emoções, no sentido de que todos fazemos parte da mesma vida e do mesmo planeta. Mas, ainda, a utilização de animais (sobretudo de cães, ou mesmo de qualquer outro animal doméstico de estimação) adquire um significado muito especial quando se trata de fazer companhia a crianças vítimas de abusos sexuais ou outras vítimas de maus tratos e de violência doméstica.
Recomendações recentes da União Europeia apelam, precisamente, à audição judicial de crianças fora do meio constrangedor dos tribunais, onde também, não raras vezes, se cruzam com os potenciais agressores.
Porquê ouvir, fora dos tribunais, as crianças vítimas de abusos sexuais e de maus tratos?
Como referido, novos enquadramentos legais e institucionais, sobre a violência doméstica e formas de abuso sexual envolvendo menores, espelham uma nova possibilidade jurídica e sensibilidade social. A doutrina e jurisprudência apontam para melhores condições de audição, na proteção da infância, invocando-se a Convenção dos Direitos da Criança.
Portugal tem, aliás, acolhido algumas destas recomendações europeias, salientando-se a inovação concretizada na Audição e Participação Obrigatória dos menores (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo e, ainda, Regime Geral do Processo Tutelar Cível). Refira-se, a propósito, que o número de crianças vítimas tem sido significativo (941 em 2018, com idade média de 11 anos), sendo superior ao número de idosos vítimas.
A União Europeia tem ultimamente, com efeito, requerido a criação de condições de audição de menores, salientando a necessidade de a audição ser efetuada fora dos Tribunais, em condições logísticas e dignas para a recolha testemunhal. Nomeadamente, o Parecer 9 da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2019) defende que os Estados-Membros devem assegurar que as audições sejam conduzidas em instalações adaptadas às crianças, de preferência fora do ambiente do tribunal.
O nosso país não tem ensaiado soluções arquitetónicas nem condições logísticas para a audição de menores, fora do espaço constrangedor de uma sala de Tribunal. É urgente pensar no contexto dessas audições, no setting onde se realizam e nos aspetos facilitadores e adequados à presença de menores, associando o espaço a uma função que dignifique também a dimensão jurídica e a recolha de um testemunho (Figura 1).



Fig. 1. O SETTING DA AUDIÇÃO DE MENORES
A caraterização de um contexto físico que seja verdadeiramente amigável para a audição de menores deverá ser cuidadosamente estudada e mesmo, se possível, ensaiada ou visualizada nos seus aspetos de pormenorização, apontando-se, desde já e apenas a título de exemplos, os seguintes aspetos: desenvolvimento de uma entrada convidativa; existência de janelas baixas e largas, transparecendo vegetação exterior; criação de um “canto de brincar” com escala rebaixada e bem equipado; janelas com peitoris baixos, possibilitando o sentar informal e a integração de vasos com plantas; existência de pequenas coleções de brinquedos bem à vista e à mão das crianças.

A QZ pensa associar esta possibilidade à criação de espaços especialmente vocacionados quer para a audição de crianças quer, também (e pensando na envolvente e nas amenidades ambientais), para o desenvolvimento de contactos com outros animais e a proteção das raças autóctones nacionais. Juntando-se vulnerabilidades não se obtém uma vulnerabilidade maior, mas uma resposta integrada que atenda a vários constrangimentos.
Contudo, o problema da audição de menores necessita de compromissos e de respostas por parte de agentes políticos, judiciários e agentes de desenvolvimento local. Pode-se desenhar soluções com recurso eventual a construções amovíveis e emprego de materiais não convencionais em Engenharia ou pensar na adaptação de espaços pré-existentes em edifícios municipais e Comarcas. A solução ideal tem que ser pensada, contudo, de raiz como um novo Equipamento Social, embora outras soluções adaptativas possam concorrer para responder às exigências jurídicas e ao acolhimento de menores como testemunhas ou vitimas de atos de crime (como se ilustra na Figura 2).

Fig. 2: A SEGURANÇA E A CONFIANÇA DE UMA AUDIÇÃO EM ESPAÇO ADAPTADO
Defende-se, portanto, uma recriação de ambientes em que se harmonizem condições adequadas para a audição de menores, seja em termos funcionais e de sobriedade ou dignidade do ambiente envolvente, seja através de uma expressiva humanização do mesmo contexto (setting), por exemplo, através da cuidadosa introdução de: “padrões domésticos”; escalas físicas rebaixadas; diversos focos de luz ambiente; condições visualmente informais de reunião (ex., em sofás pequenos e em mesas redondas); um amplo e apurado leque de elementos de apropriação (por ex., marcado por alguns grandes brinquedos, por livros e plantas); ...

O Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) dispõe, aliás, de um acervo de intervenção valiossísimo sobre soluções construtivas e ensaios à escala piloto ou desenho de novos Equipamentos Sociais e recomendações técnicas, na relação entre o edificado e os seus usos, nas dimensões materiais, funcionais e sociais. É o caso dos estudos anteriormente desenvolvidos pelo LNEC para a elaboração de recomendações técnicas para Equipamentos Sociais (RTES, 2009) de Lares e Creches, ou dos estudos sobre recomendações técnicas para instalações das Forças de Segurança (RTIFS, 2007), em que os aspetos comportamentais e funcionais estão em relação com as instalações materiais e os seus usos e formas de ocupação humanas.
A QZ procura parcerias para esse levantamento de soluções e repostas integradas inovadoras, com o LNEC, com Câmaras Municipais interessadas, com o Ministério da Justiça ou os agentes judiciários. Trata-se, assim, se uma solução pensada de raiz de um novo tipo de Equipamento Social que responda  às exigências requeridas para a audição de crianças fora dos Tribunais. Mais tarde ou mais cedo, a sociedade portuguesa terá que pensar em soluções para este problema da audição judicial fora dos Tribunais, respeitando os superiores interesses da criança e proporcionando condições para a sua audição em termos de dignidade, confiança e segurança.
O LNEC, certamente, é uma das mais prestigiadas instituições nacionais na ordem da engenharia e encontro de soluções que resultam em novos Equipamentos Sociais, bem como tem sido uma instituição de recurso, muitas vezes, para a verificação da segurança e eficiência de infraestruturas ou a reabilitação de edifícios, mas é também um agente de mudança e de inovação em engenharia como em ciências sociais e humanas, dispondo de quadros técnicos e de cientistas formados em vários domínios disciplinares. Contudo, é também necessário, no caso da audição de menores, pensar numa dimensão jurídica e nas suas naturais resistências à inovação.
Numa dimensão prática, e pensando na inércia para o desenvolvimento e acolhimento de ideias inovadoras, inércia que muitas vezes inibe o combate a situações de emergência pelo conformismo de deixa(r) tudo como está até que haja obrigação de fazer diferente, não seria de descurar a hipótese de experimentar soluções novas, desde que devidamente integradas por agentes políticos locais e agentes judiciários. Estas soluções podem envolver a promoção de soluções integradas junto de áreas ou parques naturais ou na gestão de Quintas pedagógicas. A Assembleia Municipal de Cascais, por iniciativa política do PAN (Pessoas Animais Natureza), e com o consenso maioritário de outras forças partidárias do Município, está atualmente a estudar o encontro de soluções integradas, devendo requerer a auscultação de diversas entidades, entre as quais o LNEC e a QZ.
Assim, os Municípios portugueses e, igualmente, as entidades intermunicipais ao nível metropolitano devem responder a esta nova exigência de audição de menores (adaptando espaços já pré-existentes ou procurando soluções de raíz inteiramente novas) assim como devem defender a sua identidade e especificidades regionais face à transformação dos territórios e impactes na defesa também das suas espécies da flora e fauna autóctones. Se não protegemos os seres mais vulneráveis, o que vamos proteger? Vivemos num modo de vida urbano que tudo sacrifica em função do lucro, do estatuto de alguns, do lugar de chefias ou de cargos de prestígio, e tudo isso contribui também para o assanhamento paranóico da competição ente colegas e subalternos. Mas este modo de vida competitivo esconde um elevado potencial de violência disruptiva, que se abate especialmente sobre os seres mais frágeis. Expostos na sua vulnerabilidade e remetidos aos silêncio.

Maria Paula Elvas (QZ), João Lutas Craveiro (LNEC), Teresa Nogueira (QZ)

Ilustrações de António Baptista Coelho (LNEC)

Dez. 2019

Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?
– Partimos. Vamos. Somos.

(poema de SABASTIÃO DA GAMA)

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos autores dos artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos mesmos artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é, igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que deverão referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.


Infohabitar, Ano XVI, n.º 721

A questão da audição jurídica de crianças fora dos Tribunais e outros aspetos interventivos ao nível do território e defesa de humanos, e não-humanos, mais vulneráveis:

pelo sonho é que vamos! – o projeto da Quinta do Zurro (QZ)


Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Arquitecto/ESBAL, doutor em Arquitectura/FAUP – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Investigador Principal com Habilitação em Arquitectura e Urbanismo no
Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) –, em Lisboa



Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).

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