domingo, maio 31, 2009

249 - Quando o ambiente é hostil: leituras da cidade brasileira contemporânea - Artigo e sessão de divulgação de livro no LNEC em 8 de Junho de 2009 - Infohabitar 249

Infohabitar, Ano V, n.º 249

Cidade hostil – Lúcia Leitão no Infohabitar e no LNEC
Artigo e palestra de Lúcia Leitão

Hoje é um dia feliz na edição do Infohabitar pois podemos oferecer aos nossos leitores um excelente artigo da Profa. Dra. Arq.ª Lúcia Leitão, associado a uma temática, infelizmente, na ordem do dia, a da violência urbana, mas que, naturalmente, não se esgota nessa matéria, reflectindo sobre a configuração urbanística da cidade brasileira.

A colega Lúcia Leitão integra o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, no Recife, e estará, entre nós, em Lisboa, na Sala 2 do Centro de Congressos do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), às 16h 00m da segunda-feira dia 8 de Junho de 2009 (entrada livre, não implica inscrição, apenas depende da capacidade da sala), numa organização conjunta do Núcleo de Arquitectura e Urbanismo do LNEC e do Grupo Habitar (GH) – constituindo a 15ª Sessão Técnica do GH.

A arquitecta Lúcia Leitão é autora de diversos livros sobre as temáticas do habitar e do urbanismo, destacando-se, por exemplo, um excelente livro organizado em cooperação com Luiz Amorim e intitulado “A casa nossa de cada dia” – editado em 2007 pela Editora Universitária UFPE – e irá apresentar no LNEC o seu último e recente livro intitulado:

"Quando o ambiente é hostil - uma leitura urbanística da violência à luz de Sobrados e Mucambos", cujo sumário e parte do capítulo introdutório são anexados a seguir à edição do artigo realizado pela autora, especialmente, para o nosso Infohabitar.




Fig. 01: capa do novo livro

Estão, desde já todos convidados para o encontro na Sala 2 do LNEC, às 16h 00m da segunda-feira dia 8 de Junho de 2009, e fiquem, agora, com o artigo de Lúcia Leitão: MARCAS IDENTITÁRIAS E CONFIGURAÇÃO ESPACIAL DA CIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
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António Baptista Coelho
Editor do Infohabitar





MARCAS IDENTITÁRIAS E CONFIGURAÇÃO ESPACIAL DA CIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
por Lúcia LeitãoPrograma de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano, Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Recife, Brasil, e-mail: luleitao@hotlink.com.br

Resumo:
O objetivo do texto ora proposto é mostrar como a casa-grande, centro da organização social do Brasil patriarcal, espaço essencialmente privado, repercutiu na configuração urbanística da cidade brasileira. Trabalha-se com a hipótese de que o nascimento desprestigiado da rua —o espaço público por excelência— no Brasil colônia, e mesmo no Império, produziu um ambiente hostil, com repercussões sócio-espaciais ainda pouco consideradas pelo urbanismo brasileiro. As referências teóricas vêm da sociologia gilberteana (Sobrados e Mucambos, 1936) e da psicanálise. Nesta, considera-se o conceito de identificação (Freud, Psicologia das massas e análises do eu, 1920-21) e a idéia de ambiente hostil de Mitscherlich (Psychanalyse et urbanisme, 1970). Sob essas referências, argumenta-se que, edificada em torno do espaço privado — cuja manifestação atual são os shopping centers e os condomínios fechados contra a rua, à semelhança da casa-grande— a cidade brasileira ainda não construiu o seu espaço público, circunstância que favorece a manifestação da violência que assola o país. Conclui-se o texto argumentando que o modo como produzimos e como usufruímos a cidade constitui-se num elemento importante quando se busca enfrentar a questão da violência em suas múltiplas e complexas faces.


Em texto publicado originalmente em 1965, o psicanalista alemão Alexander Mitscherlich escreveu assim: “A maneira como damos forma ao nosso ambiente é a expressão do que somos internamente” (p. 62). Com essas palavras, surpreendentes para a arquitetura, certamente, o autor citado chama a atenção para a dimensão subjetiva do espaço edificado.

É essa ideia, pois, o ponto de partida para as reflexões esboçadas aqui. Ao longo do texto, argumenta-se, ainda que sucintamente, que o espaço edificado na cidade contemporânea brasileira — fechado, segregador e excludente como poucos — reproduz, espacialmente, os valores mais caros da sociedade brasileira, da colônia aos nossos dias.

Para construção do argumento, toma-se como ponto de partida a casa-grande do Brasil patriarcal, o ambiente onde “até hoje melhor se expressou [inclusive espacialmente] o caráter brasileiro” (Freyre, 1933, p. XXXI). Com isso, busca-se fazer ver que menos o medo da violência urbana que assola o Brasil e mais as marcas identitárias constituintes da sociedade brasileira definem a forma hostil que o ambiente construído apresenta no País.

Gilberto Freyre, ao longo de sua vasta obra, chama a atenção para o fato de que a sociedade brasileira se constituiu em torno do privativismo, da domesticidade e do centralismo. É evidente que a discussão dessas categorias sociológicas excede os objetivos e limites deste texto. Assim sendo, explora-se, a seguir, a manifestação desses elementos no ambiente construído que o Brasil apresenta desde o período colonial.

Três elementos basilares na produção do espaço edificado, a meu ver, materializam, nesse espaço, os elementos constitutivos da sociedade brasileira mencionados anteriormente. O primeiro diz respeito à localização do edifício no sítio, o segundo refere-se à forma que a edificação apresenta. Por fim, o terceiro elemento trata da função do edifício na produção do ambiente construído no País.

No que diz respeito à localização, importa lembrar que o espaço de morar, no Brasil, sempre deixou clara a ideia de poder, de distinção, de privilégios, própria do centralismo que caracteriza o modo de viver dos donos do poder no País. Assim, não é à toa, nem fruto apenas das condições topográficas, que a casa-grande patriarcal se localizava no mais alto lugar do sítio. Muito ao contrário, essa localização era em si mesma uma evidência do poder, do comando do senhor patriarcal sobre todos que estavam à sua volta.

É verdade que, do ponto de vista racional, essa localização possibilitava a supervisão, pelo senhor do engenho, da produção que se dava a seus pés. Mas é também verdadeiro que, do ponto de vista dos valores sociais, essas casas sublinhavam o poder e a distinção inerentes aos que habitavam as casas-grandes brasileiras, um fato que não passou despercebido a Louis Vauthier, o perspicaz observador da sociedade local nos tempos idos do Brasil Império. Diz Vauthier:

Se, afastando os olhos da beira-mar, estender a vista além, distinguirá [...] sobre a encosta de alguma colina [...] uma casa branca erguendo-se à altura de muitos degraus acima do nível do chão e situada de modo a permitir a observação fácil de tudo que se passa no interior do vasto pátio da usina. Ele [o viajante] lerá nos traços dessa arquitetura que existem ali senhores [...] (citado por Freyre, 1960, p. 807, destaques meus).

Como se vê, a localização do edifício era um fator essencial ao exercício do mando, próprio da casa-grande patriarcal. Uma escolha situacional em tudo compatível com o centralismo que nela tinha lugar. Afinal, como se sabe, nenhum fato relevante da vida nacional acontecia fora do raio de influência daquele ambiente socioespacial.

No que diz respeito à forma, convém sublinhar que o acesso a essas casas se dava por meio de muitos degraus, como bem anotou Vauthier no texto citado. Assim, era preciso subir para se chegar ao lugar do poder. Era, pois, esse poder, ou esse valor social, que encontrava sua forma no edifício que se erguia muito acima do rés do chão. Uma ideia perfeitamente aprendida pelos escravos que se referiam “respeitosamente” a esse espaço como a casa-grande, ainda de acordo com as anotações do arguto engenheiro francês na obra mencionada.

No sobrado, a forma que a casa-grande assumiu quando se fez urbana, essa marca de distinção própria da configuração espacial no Brasil se mantém. Afinal, habitar o sobrado era símbolo inequívoco de poder e prestígio. Tanto e em tal medida que até as prostitutas da época eram distinguidas pelo espaço que ocupavam: as “aristocráticas” habitavam o sobrado, enquanto a “escória” ocupava o andar térreo, anotou Freyre (1990, p. 159, citando o médico Lassance Cunha).

A opção pela forma vertical para a habitação, o sobrado, como se vê, não se deveu apenas à escassez de terrenos ou a condições topográficas desfavoráveis à construção de edificações horizontais. Essa é apenas a face racional da moeda. A outra face sugere que a busca por status, por assinalar poder e mando — herança do centralismo patriarcal —, é o elemento propulsor desse modo de habitar. Uma evidência disso aparece no fato de que, no sobrado, os espaços térreos jamais eram utilizados pela família patriarcal. Neles, acomodavam-se escravos, produtos que vinham do engenho, viajantes, etc., mas nunca a família patriarcal.

Assim, merece reparo o argumento de que a verticalidade excessiva dos espaços de morar na cidade brasileira contemporânea é pura decorrência do medo de habitar espaços térreos, difundida na afirmativa de que “morar num edifício é mais seguro”. Na verdade, essa opção de morar expressa um valor social, uma marca identitária, que encontra sua expressão formal na medida em que associa verticalidade e distinção, altura e poder. Não é por acaso, pois, tampouco por razões puramente econômicas, que os apartamentos custam mais à medida que se situam nos andares mais altos de cada edifício.

Um outro elemento próprio da arquitetura brasileira, ainda no que se refere à forma, diz respeito ao fato de que o espaço edificado se volta para dentro, fecha-se em si mesmo. Dessa feita, é a domesticidade o elemento a determinar o arranjo formal que o espaço materializa.

Na casa-grande, essa ideia se expressa nos ambientes onde a vida acontece, ou seja, nos espaços realmente utilizados pela família patriarcal, todos eles voltados para dentro, afastados espacialmente do ambiente externo. Mas é no sobrado que essa domesticidade, tida como marca identitária ou como expressão do que somos internamente, conforme queria Mitscherlich, acentua-se.

Dessa vez, a planta baixa é o elemento que deixa à mostra as marcas identitárias da sociedade no modo de produzir o seu espaço edificado. No sobrado brasileiro, a sala de viver, uma denominação por si mesma significativa, o espaço onde a família efetivamente vivia, sobretudo a dona da casa e suas filhas, situava-se no fundo, voltada para o quintal. A sala de visitas, o espaço supostamente voltado para a rua, para o que não é doméstico, familiar, permanecia vazia, subutilizada, inacessível até para as mulheres da casa, como assinala Vauthier no texto já citado.

Ainda no que diz respeito à forma do sobrado brasileiro, chama a atenção o fato de que até mesmo as janelas eram muitas vezes falsas. Compunham a fachada, mas não se abriam para a rua. Assinalavam, desse modo, uma vez mais, a força da domesticidade na sociedade — e na cidade — brasileira de então. No que diz respeito ao urbanismo, Freyre registra o fato de que esses ambientes eram espaços fechados contra a rua (1990) — o espaço público, não doméstico, portanto —, tida como espaço vulgar, destinado ao pobre, ao socialmente bastardo.

Esse modo de morar, na verdade um modo de pensar e de viver, expressão do que somos internamente, como diria Mitscherlich, repita-se, causou espanto a muitos viajantes que por aqui passaram e que estavam acostumados a outros modos de viver. Fechada para a rua, presa à domesticidade, tida como um valor a preservar, a família patriarcal mantinha-se no cárcere privado que, para si mesma, havia edificado. E não por medo, mas, sim, por pretensa fidalguia. Um registro feito pelo médico Lima Santos, publicado pelo Diario de Pernambuco nos anos idos de 1855, não deixa dúvidas quanto a isso:

Verdade é que o grande luxo da terra — um dos sinais de fidalguia, de grandeza e de grande distinção — é o sair à rua o menos possível, ser o menos visto possível e se confundir o menos possível com essa parte da população que os grandes chamam de povo e que tanto abominam (citado por Freyre, 1990, p. 39).

Outra vez, constitui-se apenas como meia verdade a justificativa de que se evita a rua porque a cidade brasileira contemporânea é violenta e insegura. Na verdade, a recusa da “elite” em frequentá-la faz desses ambientes espaços mais e mais violentos, precisamente pelo processo de desertificação que eles vivem (Jacobs, 2000). Nesse ponto particular, muros altos, fechados contra a rua, edificados em excesso na cidade atual são literalmente tiros dados no pé. Não apenas não garantem segurança — como se constata com a divulgação frequente pela mídia de assaltos realizados em prédios seguros, murados, eletrificados e bem guardados, etc. —, como fazem da rua um ambiente mais e mais hostil. Na verdade, esses muros são elementos que mais segregam do que protegem, uma vez que permitem aos moradores “ser o menos visto possível e se confundir o menos possível com essa parte da população que os grandes chamam de povo e que tanto abominam”, essa, sim, sua real função, de onde se tem a hostilidade que expressam.

Destarte, na cena urbanística da cidade do Brasil contemporâneo, o espaço que dá forma à domesticidade se manifesta na escolha por erguer e habitar espaços frequentados apenas pelos iguais, por aqueles que pertencem ao mesmo agrupamento social, a versão atualizada da família patriarcal brasileira.





Fig. 02, casas fechadas contra a rua em bairro “nobre” do Recife contemporâneo; Foto: Diogo Barretto.






Fig. 03, casas fechadas contra a rua em bairro “nobre” do Recife contemporâneo; Foto: Diogo Barretto.


Por fim, chega-se ao derradeiro elemento, a função do espaço edificado. Mais um elemento a explicitar a produção de espaços compatíveis com o que somos internamente. Agora, é o gosto pelo que é privado que parece definir a produção do espaço, ou seja, o privativismo, em linguagem gilbertiana.

A casa-grande patriarcal era um espaço múltiplo, destinado a abrigar todas as funções requeridas pela sociedade de então em um único e mesmo edifício. Freyre registrou isso ao assinalar que essa casa era de fato um “[...] bloco repartido em muitas especializações — residência, igreja, colégio, botica, hospital, hotel, banco” (1990, p. XLVI). Ainda nessa direção, diz Freyre:

[...] lembre-se de que, durante anos, esteve ligada à casa a figura do médico da família. No seu cabriolé, vinha às casas ver doentes [...]. Além do que, quase todo menino nascia em casa [...].Também vinha a casa o cabeleireiro cortar o cabelo e fazer a barba de ioiôs e comodistas. A professora ou o professor particular de piano. A de canto. A de francês. A de inglês. A costureira. [...] A vendedora de renda ou bico. O vendedor de bugingangas: sabonetes, loções, perfumes. O de galinhas. O de verduras. O de vassouras. O de espanadores. O de milho verde. O de melaço. O italiano da macaca: que no portão fazia dançar a sua macaca (Freyre, 1979, p.14-15).

Como se vê, todos os eventos que faziam a vida da família patriarcal tinham lugar num único e mesmo edifício. O uso múltiplo dado a um mesmo edifício cumpria perfeitamente, nesse caso, o papel que esse edifício deveria desempenhar, o de manter a “aristocracia” brasileira bem longe da rua.

Não é difícil, pois, perceber que, associada à forma, a função múltipla da casa brasileira — ou do espaço edificado no Brasil, a versão ampliada dessa casa — também se constitua em um elemento que consolidava espacialmente o centralismo, a domesticidade e o privativismo como marcas identitárias da civilização que se ergueu nos trópicos, como diria Freyre. Inconscientes por definição (Freud, 1929–1930), essas marcas têm perpetuado um mesmo modo de edificar, reproduzido indefinidamente por gerações sucessivas de brasileiros.

Na cidade contemporânea, a reprodução desse caráter definidor do espaço aparece, por exemplo, em dois tipos particulares de edificações: o shopping center e os condomínios residenciais, ambos espaços fechados para a rua, ambos ambientes que encontraram sua forma de ratificar o centralismo, a domesticidade e o privativismo próprios da sociedade brasileira.

O texto a seguir ratifica essa ideia quando comparado com o que anotou Freyre sobre a função da casa-bloco patriarcal, fechada para a rua, registrado antes:

Em um dia comum, a dona de casa Adriana, 39, sai de manhã para a sua aula de ginástica, passa pelo salão de beleza para fazer as unhas, leva o filho ao curso de inglês e compra no mercadinho algum ingrediente que falta para o almoço. Ao fim do dia, ainda acompanha os treinos da filha na quadra de tênis e, se der, assiste a um filme com as amigas. Para fazer todas essas atividades, porém, nem ela nem os filhos precisam colocar um pé que seja para fora do condomínio [...] (Folha de S.Paulo, jun. 19, 2005, destaques meus).

Como se vê, o medo e a insegurança urbana são meros pretextos, socialmente aceitos, para um modo de edificar privativista ao extremo. Afinal, falar em distinção, em status, em privilégios, pode soar “politicamente incorreto”, enquanto o medo pode ser facilmente compreendido e aceito. De fato, continuamos a edificar o ambiente construído brasileiro com a intenção explícita de impedir que os usuários desse ambiente sejam confundidos “com essa parte da população que os grandes chamam de povo e que tanto abominam” e de modo a facilitar a vida daqueles que pensam que “sair à rua o menos possível” é sinal de distinção e de pretensa fidalguia.

À guisa de conclusão
A arquitetura nunca foi neutra. É ingênua a ideia de que a forma espacial resulta do acaso ou de meras circunstâncias conjunturais ou, ainda, a impressão de que a forma edilícia decorre somente da inspiração e do talento pessoais dos desenhadores do espaço. Muito ao contrário: o objeto arquitetônico é marcadamente um fato cultural. Materiais empregados, técnicas construtivas, forma espacial, etc. são definidos de acordo com a época e com os valores mais caros a cada sociedade.

Dessa forma, a produção contínua de “cárceres privados” na cena urbanística brasileira expressa não apenas uma busca legítima por ambientes mais seguros, mas também, e talvez principalmente, o modo como somos internamente, as marcas identitárias que definem a sociedade brasileira — da colônia aos nossos dias.

Erguemos edifícios altos, fechados para a rua, porque temos um profundo desprezo pela rua, o espaço público por excelência. Edificamos muros altos, com guaritas e cercas, não apenas para nos proteger de um ambiente hostil, mas porque somos uma sociedade segregadora como poucas. Fechamos-nos em condomínios e em shopping centers não apenas por comodidade ou porque nos sentimos inseguros em outros espaços, mas antes porque tais ambientes, de longe, anunciam a todos, como diria Vauthier, que são esses os espaços onde estão os senhores que se não querem confundir com a plebe (Leitão, 2009).

Assim, para além da forma a partir da qual o espaço edificado é mais facilmente percebido, nele está inscrito todo um conjunto de valores e enunciações culturalmente definidos, valores subjetivos que nos fazem brasileirinhos da silva, como anotou Freyre.

Referências bibliográficas
FREYRE, Gilberto. [1933]. Casa-grande e senzala: formação da família patriarcal brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Maia & Schmidt, 1933.
FREYRE, Gilberto. [1936]. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990.FREYRE, Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.
FREUD. S. Obras completas de Sigmund Freud. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1973.
JACOBS, J.Morte e vida nas grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LEITÃO, Lúcia. Quando o ambiente é hostil: uma leitura urbanística de Sobrados e Mucambos e outros ensaios gilbertianos. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2009.


Apresentam-se em seguida o sumário e parte do capítulo introdutório do novo livro de Lúcia Leitão, que será apresentado dia 8 de Junho no LNEC e intitulado:
"Quando o ambiente é hostil - uma leitura urbanística da violência à luz de Sobrados e Mucambos"





Fig. 04: capa do novo livro

Sumário
Palavras Introdutórias


1 Da Casa-Grande à Cidade Contemporânea
Anotações preliminares

2 O Reinado da Casa
A casa como obra coletiva
A casa como centro social
Uma casa brasileira

3 A Negação da Rua
O sobrado diz não à rua
Um espaço plebeu

4 Brasileirinha da SilvaUm espaço rejeitado
Mostra-me teu espaço

5 Um Traço Identitário
Anotações finais

Da hostilidade

Para o acolhimento

Referências Bibliográficas




Fig. 05: imagens do novo livro

Vende-se huma preta de bons costumes, muito ágil para todo o serviço de uma casa, tem 16 annos de idade e sempre tem sido criada sem sahir á rua [...] para todo o serviço de uma casa de portas a dentro.
Anúncio publicado no Diario do Rio de Janeiro em 28 de outubro de 1821, reproduzido por FREYRE, G. 1990, p. 47, destaques meus.

Dois pintores brasileiros de hoje podem ser apresentados como poetas [...]. Num, sobrevive principalmente um menino de casa-grande — o de Jundiá — com as lembranças ou relembranças pungentes de carinhos de mãe por filho, de chamegos de primo com primas, de amores de ioiôzinho com negras, de aventuras com animais — tudo dentro de salas, de alcovas, de alpendres, de restos de senzalas. Tudo à sombra da casa. Noutro, sobrevive um menino criado em sobrado de pai rico, comissário de açúcar, residente na Madalena do Recife: casa de azulejo dando para o rio, portão de ferro rendilhado separando o filho mimado da rua, dos perigos da rua, das vulgaridades da rua.
FREYRE, G. 1979, p. 68, destaques meus.





Fig. 06: imagens do novo livro

Palavras Introdutórias
Na introdução de Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre explica as razões que o levaram a debruçar-se sobre o tema que o envolveu durante toda a sua vida. A necessidade de melhor entender a civilização que nascia nos trópicos foi o mote que o fez empreender a aventura intelectual da qual deriva sua obra.

Seguindo-lhe os passos, nesse sentido em particular, chama-se a atenção do leitor, logo de partida, para as razões que fizeram surgir o texto que ora se apresenta. Tal como em Freyre, também uma inquietação está na origem das notas aqui esboçadas. O mote, no entanto, foi dado por uma pergunta feita à queima-roupa a um candidato a prefeito, durante uma das últimas campanhas eleitorais realizadas no Brasil: Por que não há parques públicos na cidade?, quis saber o entrevistador.

A indagação ficou mais instigante quando se atentou para o fato de que a cidade em questão dispõe de diversos parques, mais de duas centenas de áreas oficialmente reconhecidas como espaços públicos, além do sistema viário, naturalmente. A questão era outra, portanto. Na verdade, a pergunta apontava para um não reconhecimento, como tal, do espaço público que a cidade apresenta. Nasciam, desse modo, naquele momento, as primeiras ideias que dariam origem a este ensaio.

A dificuldade do entrevistado, assim como a própria pergunta formulada, apontava para o fato de que a escrita gilbertiana ainda não se havia esgotado, como, aliás, convém aos textos que se tornam clássicos. Tanto é assim que representantes do grupo que se assenta no topo da nossa pirâmide social desconheciam, aparentemente, elementos básicos da cultura que nos faz brasileirinhos da silva. Como consequência, ignoravam, em particular ― como indica tanto a pergunta quanto a tentativa de resposta ―, as implicações espaciais do modo como se deu o desenvolvimento do urbano na vida brasileira.

Este texto decorre, pois, da questão anotada sumariamente acima. Com ele, pretende-se oferecer ― à luz da escrita gilbertiana, e sob o foco do urbanismo e com apoio em alguns conceitos-chave da teoria psicanalítica ― uma contribuição para que se possam melhor compreender as razões que talvez estejam na origem do ambiente claramente hostil que muitas cidades brasileiras apresentam.

Erguida privilegiando o espaço privado, tido como nobre, distinto, vip, a cidade brasileira não pode ainda consolidar o seu espaço público, ou mesmo edificá-lo ― hipótese a partir da qual se constrói o argumento central deste texto. Ao contrário, edificou um ambiente hostil que segrega, que exclui, que separa, com todas as consequências sociourbanísticas decorrentes desse modo de edificar.

Elaborado como uma escrita livre, destinado ao público em geral, este ensaio é um texto eminentemente opinativo. Não se trata, portanto, de uma tese produzida com o rigor conceitual e metodológico que caracteriza esse tipo de produção acadêmica. Aqui não se verá a angústia da prova ― essa palavra carregada de ansiedade, segundo assertiva feliz de Richard Sennet ― mas, sim, uma ideia a compartilhar. É nesse sentido que ele deve ser lido.

As referências teóricas vêm notadamente de Gilberto Freyre e, em menor medida, da teoria psicanalítica. A escolha por Freyre se justifica pela riqueza de detalhes sobre a arquitetura e o urbanismo do Brasil patriarcal ao longo da sua obra, e não por se minimizar a importância de outros autores que se debruçaram, com muito brilho, sobre a formação da sociedade brasileira. Com relação à teoria freudiana, alguns conceitos ajudam a compreender que motivações subjetivas podem ditar o modo como produzimos o ambiente construído.

Cinco capítulos compõem o texto. No primeiro deles, estão as anotações preliminares redigidas com o objetivo de indicar as questões principais que estiveram na origem das reflexões que ora se apresentam ao leitor, as primeiras definições conceituais, bem como os objetivos e limites disciplinares deste ensaio.

No segundo capítulo, apresentam-se três idéias da obra de Gilberto Freyre consideradas fundamentais para que se tenha uma melhor compreensão do modo como se deu o reinado da casa no Brasil patriarcal, ponto de partida para o argumento que se desenvolve neste texto. Em outras palavras, apontam-se as razões que fizeram a sociedade brasileira organizar-se no abrigo do espaço privado ― da colônia aos nossos dias ―, conforme se quer mostrar aqui.

No terceiro, tem-se como objetivo mostrar como e em que medida a paisagem social existente durante o tempo em que se deu o desenvolvimento do urbano ― como se refere Freyre àquele momento da história nacional ― definiu um ambiente urbano usufruído um tanto a contragosto pela sociedade brasileira de então. Um espaço edificado onde essa sociedade expressou, claramente, uma profunda negação da rua, com repercussões importantes na configuração espacial que definiria a cidade brasileira desde então.

Em brasileirinha da silva, expressão gilbertiana que nomeia o quarto capítulo, pretende-se mostrar como as razões que definiram e consolidaram o reinado da casa e, consequentemente, a negação da rua, perduram na sociedade brasileira assim como no espaço que essa sociedade edifica. E como essas mesmas razões, revistas e atualizadas, continuam a determinar, ainda nos dias que correm, o papel menor, secundário, desprestigiado, que o espaço público desempenha ― quer na forma, quer no uso, quer nas funções ― nestas terras tropicais, independentemente dos custos sociais e urbanísticos que se paga por isso.

Em Um traço identitário, apresentam-se as anotações finais, onde estão esboçadas as conclusões a que se chegou com as questões que nortearam o processo reflexivo.

A segunda razão a justificar a publicação que ora vem às mãos do leitor é que as ideias aqui apresentadas na forma de um breve ensaio obteve, em 2006, o prêmio Antônio Carlos Escobar - Construindo alternativas em segurança pública, promovido pelo Instituto Antônio Carlos Escobar – Iace , com sede no Recife. Com sua publicação, em versão ampliada em relação ao texto premiado, cumpre-se o compromisso de divulgação do texto assumido com aquela instituição.

Por fim, uma outra informação relevante é que as ideias ora apresentadas deram origem a uma pesquisa acadêmica, atualmente em curso, aprovada e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, com a qual se pretende aprofundar a investigação das hipóteses formuladas. Essa pesquisa, denominada Da casa à cidade: expressão da subjetividade e configuração espacial, vem sendo desenvolvida no Núcleo de Estudos da Subjetividade na Arquitetura – NusArq, grupo de pesquisa integrante do Laboratório de Estudos Avançados em Arquitetura – lA2, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco.

Notas:
(1) SÁ CARNEIRO, A. e MESQUITA, L. Espaços livres do Recife. Recife: Prefeitura do Recife/UFPE, 2000.

Referências editoriais:Editora Universitária UFPEAv. Acadêmico Hélio Ramos, 20. Cidade UniversitáriaCep.: 50.740-530
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Infohabitar: Lisboa e Encarnação – Olivais Norte
Edição de José Baptista Coelho
1 de Junho de 2009

domingo, maio 24, 2009

248 - SALA DE AULA, ARQUITETURA, CORPO E APRENDIZAGEM - Infohabitar 248

Infohabitar, Ano V, n.º 248

SALA DE AULA, ARQUITETURA, CORPO E APRENDIZAGEM
Marilice Costi

Tal como tinha sido referido numa edição anterior edita-se, em seguida, mais um óptimo artigo de Marilice Costi, neste caso, intitulado SALA DE AULA, ARQUITETURA, CORPO E APRENDIZAGEM; de certa forma um artigo que faz alargar para os vitais espaços da formação e da “aula” a necessidade da humanização e de novas perspectivas que cooperem na dinamização das acções de formação/informação e aprendizagem.

O editor do Infohabitar
António Baptista Coelho

SALA DE AULA, ARQUITETURA, CORPO E APRENDIZAGEM
Marilice Costi (1)

Uma verdadeira viagem de descoberta
não é a de pesquisar novas terras,
mas de ter um novo olhar.

Marcel Proust


Postura e atuação da professora, e a sua importância na sala de aula foram delicadamente tratadas por Sara Pain, em 2005, durante a palestra Corpo, pensamento e aprendizagem (2).
Ela pincelou um pouco sobre o ambiente da sala de aula e como isto se reflete no aprendizado dos alunos.

A complexidade no aprendizado, a que se reflete na relação aluno-professor, também vem sendo estudada por outros profissionais. Antonio Ivan Izquierdo, em 2004, palestrou o tema Memórias e cognição: da biologia molecular à sala de aula, relatando pesquisas dos mecanismos da memória. Afirmou que quanto mais emoção na sala de aula, mais chance de que a memória seja acionada.

No sistema neurológico, o processo químico para que se estabeleçam conexões no cérebro e para que as associações necessárias ocorram, depende de muitas variáveis. O professor desencadeia várias delas, mas existe a individualidade do aluno, a sua maturação, a sua experiência de vida, a sua base de conhecimentos, entre outras. E os “brancos” nas provas, ou os “brancos do professor” ao ensinar? É que os corticóides, quando liberados em excesso devido ao estresse, não permitem as conexões neurológicas necessárias, ocasionando os “brancos” que apavoram qualquer indivíduo. Daí a importância do preparo: um estudo bem feito dá a segurança do saber.

Os temas tratados nas palestras trouxeram muitas das preocupações dos mestres: como ocorre o processo de aprendizagem em aula e de que forma se pode auxiliar os alunos. Crianças demonstram a hierarquia de seus amores nos desenhos e nas redações. Na universidade, os alunos também demonstram seu afeto com o professor: partilhando seu chocolate, dando-lhe uma fruta, trazendo um texto de interesse para a aula, trocando idéias, emprestando-lhe um livro ou até querendo chamar sua atenção com um comportamento indesejado. A professora, que para as crianças tem freqüentemente a força da figura materna (3), é receptora de muitos afetos. Se a relação mãe-filho é complexa, imagine-se a da professora-aluno que, além da imagem de mestra, recebe projeção de sentimentos de muitos outros tipos e projeções desencadeadas por indivíduos muito diferentes entre si, pois cada aluno é único.

Para Antonio Viñao Frago (1998, p.138), “aquilo que se quer transmitir, ensinar ou aprender tem que estar mais ou menos delimitado, demarcado, mas também ordenado e seqüenciado”. Num primeiro momento, o professor é importante porque detém o conhecimento que deve transmitir. Mas para Sara Pain (1999) e Pedro Demo (2000), o importante é sempre problematizar. A tensão, que um problema dado em aula pode provocar, a entonação e o movimento corporal do professor influenciam no interesse e na atenção do aluno. Pode estar aí o estímulo ao seu raciocínio: o professor joga a isca! Acredita que ele tem capacidade para resolver problemas. Abrir as aulas com a problematização, estimulando o pensamento crítico, é essencial para provocar a participação.

O aluno que tem sede de aprender encontra-se inserido no prazer da descoberta. Mas quando não, é preciso retornar a momentos da infância e tratar a pesquisa como o anterior prazer da descoberta, quando tudo era novidade e experimentação. Onde e por que paramos de descobrir de forma prazerosa? Se as descobertas são os motores da civilização, por que o aluno resiste? Acreditamos que a sala de aula é um dos lugares mais importantes para seduzir para o conhecimento e a descoberta. Local de individualidade, de liberdade do pensar e liberdade de errar (4). Local de partilha. Partilha, porque todo professor aprende com seu aluno numa relação sempre biunívoca, onde até o professor pode errar eventualmente.

A escrita, diz Pedro Demo (2000, p. 31) é “como processo, tendo em vista que o pensamento crítico vive de retomadas, de superação de erros e de produção de novos, da aprendizagem permanente.” Ser crítico para crescer é também um longo processo que o professor pode ensinar. Quem diz não ser bom de escrita é porque não desenvolveu sua forma própria de pensar. O ato de escrever exige uso pleno do pensamento. E o que mais se verifica é que o aluno não deseja pensar, a filosofia é chata, “sentimentalizar” é fora de moda. Está tudo pronto! Mastigado nos outdoors e na mídia. Onde a expressão escrita deixou de ser valorizada como uma das mais importantes formas de comunicação? Ser professor é ser um comunicador e, em alguma sala de aula - é bem provável - o aluno ou nunca desenvolveu sua relação com a expressão escrita ou rompeu a ligação com ela.
Para Sara Pain (1999, p. 11), “o corpo funciona fora da consciência. Ele constitui a principal estrutura da aprendizagem propriamente dita, porque, vivendo o aqui e o agora, se desdobra em suas modalidades comportamentais, que são os hábitos da ação e da reação.”

Quando um aluno está irritado e joga o seu trabalho no chão, cheio de raiva, ele está agredindo a si próprio, pois está amassando a sua produção. Foi um insulto, um gesto impensado e corporal que destruiu a própria obra. Deixar o aluno sentir sua emoção e aguardar um outro momento para conversar sobre o fato, resultará na compreensão e no crescimento do aluno em relação aos seus sentimentos: o entendimento de que teria que se esforçar mais, dar mais empenho, aceitar que não estava bom.

A célebre frase - a professora não gosta de mim - é mais uma projeção de si próprio, pois ele amassou seu trabalho, desvalorizou-se perante si e os outros. Onde as raízes daquele sentimento? É preciso mostrar um caminho ao aluno, negar ser recebedor daquela emoção projetada. O professor é recebedor de sentimentos e reações que foram interiorizadas pelo aluno, antes, em algum momento da sua vida, podendo nada ter a ver com o professor (5).

O professor usa a voz o tempo todo, mas mais do que nunca, ele não é só voz, ele é corpo em movimento, um corpo no espaço que uma linguagem própria. Ela é percebida o tempo todo pelos alunos. Por que o professor grita? Pode ser que a escola esteja inserida em área com ruído urbano intenso, pode ser que tenha voz de tenor e precise educá-la, pode ser que a acústica da sala seja ruim e que as paredes sejam de baixo nível de isolamento. O mais comum é porque os alunos conversam e o professor se sente na obrigação de elevar o volume de sua voz para que os alunos que prestam atenção possam escutá-lo (Brum, 2004).

Mas é preciso fazer assim? Quando isto ocorre, é melhor parar. Não só porque o instrumento de trabalho do professor é sua voz, mas porque é preciso achar soluções menos problemáticas do que mandar o aluno para fora da sala como fazem muitos professores de adolescentes sem limites. Estudantes de faculdades particulares perdem a noção do valor das mensalidades. Conversam muito, especialmente, nas sextas-feiras. Parar e passar a sussurrar são possibilidades. Em nossa vivência de docente, perguntava-lhes: Por que é preciso elevar a minha voz? Por que estavam tão dispersos? O assunto era chato? Cansativo? Difícil? Estava ensinando mal? E parávamos para conversar. Estavam cansados, era o final de semana, haviam passado a noite fazendo projetos, tinham tido provas, estavam fazendo estágio, alguém estava doente ou morrendo na família, estavam confusos quanto à profissão, estavam assustados com as despesas, estavam tristes porque teriam que abandonar a faculdade no próximo semestre, tinham brigado com o namorado, estavam apaixonados, estavam com cólicas, com dor de cabeça, com febre, com saudades dos familiares, muitas coisas. Depois de uns minutos de reflexão conjunta sobre a causa da dispersão, retomávamos os conteúdos e podíamos assumir totalmente cada um o seu papel.

Aproximar-se dos alunos facilita na redução do volume da voz.



Fig. 01: aula expositiva


Na universidade, dar uma aula expositiva ou sentar com os alunos para ensinar são movimentos muito diferentes e podem ser interpretados, a nosso ver, de várias formas. O professor para poder cumprir o programa, passa a reproduzir o mesmo modelo autoritário antigo: o de despejar conteúdos e mais conteúdos. E isto impede que ele conheça o aluno e o ajude no seu crescimento de forma mais harmônica. As aulas expositivas não podem ser “fechadas”. Elas precisam suscitar novas descobertas: pesquisa em biblioteca, na internet, em laboratório. Trazer o aluno para o questionamento é possível. Problematizar, criticar, analisar, interpretar até. Mas para que isto ocorra tempo e espaço devem ser suficientes. Se o professor está expondo o conteúdo para turma de muitos alunos (as economicamente corretas, mas didaticamente erradas) - ele detém a autoridade de quem tem o conhecimento – é muito difícil que possa sentar com os alunos, pois não conseguirá dar a mesma chance a todos. Tal tipo de aula impede permuta de conhecimento fundamental numa universidade, e pode se prestar para algumas disciplinas específicas. Mas o aluno precisa reaprender a descobrir por si próprio e com os outros, habilidade que lhe será muito exigida no futuro, e não receber todo o conteúdo já mastigado pelo professor.

Uma das posturas do professor que faz com que o aluno se posicione mais e exerça sua capacidade é a aula tipo de atelier. Como o professor se manifesta ao estar sentado com o aluno? Está trocando, participando junto? Sentar à mesma mesa, mostrar como o conhecimento é construído, ser companheiro e orientador do processo, atuando dentro do espaço pessoal, facilita o vínculo afetivo e a troca mais aprofundada. Demonstrar que cada um tem o compromisso de construir o seu conhecimento, é direcionar o aluno para caminhos de liberdade por onde ele poderá seguir depois, sem o mestre. Além disso, o aluno deve poder fazer escolhas e exercitar sua “liberdade-opção-iniciativa-ação e compromisso-responsabilidade” (Semler, 2004, p.92). Ele deverá assumir a responsabilidade pelo que decidir (6).

E quando o professor se desloca para o quadro? Conforme Sara Pain, para que o ritual provoque a atenção do aluno, deve ser repetido muitas vezes. Estar no quadro pode ser um sinal de conteúdo novo, de que o aluno precisa se posicionar com atenção. Ao deslocar-se para o quadro, o professor pode e deve demonstrar, cenicamente, uma hierarquia e conteúdos novos ou observações importantes podem ser melhor registradas se cumprirem rituais pré-estabelecidos.



Fig. 02

Um professor sai da aula com muitas outras reflexões: será que aprenderam? Consegui ensinar? Também reflete sobre o comportamento, o estresse, a economia, as relações sociais, o sistema educacional, o sistema de trabalho, o desgaste dos alunos de profissões que exigem “plantão” - porque estudantes de arquitetura fazem plantão como residentes da área médica. A diferença é que estes tratam de pessoas estressadas e doentes, e aqueles tratam dos espaços que estas pessoas vão viver, local de todas as atividades e sentimentos, trabalhando de forma criativa, inventiva, projetiva. Não se baseiam apenas em livros e experiência, mas precisam desenvolver seu processo criativo, que nem sempre ocorre devido a bloqueios que possuem. Cobrar do aluno bloqueado resolve? É preciso ajudá-lo a compreender o que está ocorrendo com ele.

A sala de aula é o local de aprendizagem e de afeto que pertence aos alunos e ao professor. Se o professor está próximo dos alunos, estará trocando com eles num mesmo nível, na mesma energia, poderá sentir a energia do aluno e interagir melhor com ele. Em alguns momentos, penetramos ou interpenetramos as “bolhas pessoais”, definidas por Edward Hall em 1977. E esta aproximação, se contiver afeto, vai facilitar a aprendizagem, pois ambos estarão em uma mesma sintonia. Nossa vivência como professora permite que afirmemos que a aproximação entre professores e alunos é muito diferente de tempos atrás. O distanciamento era a marca da autoridade e o domínio do conhecimento – que se poderia dizer pequeno frente à enxurrada de informações que todos recebemos todo o dia. Basta uma noite a mais de vida e em algum lugar do mundo ou muito próximos de nós, alguém ampliará os conhecimentos sobre assuntos que pensamos dominar. Segundo Edgar Morin, precisamos aprender a pensar a complexidade e não nos assustarmos porque ela é inevitável. O mundo “valoriza os ousados, os empreendedores, aqueles que são capazes de aprender sempre e em qualquer lugar, integrados a comunidades de aprendizagem” (Semler, 2004, p.8). Além disso, o conhecimento se constrói em bases solidárias: na partilha de conhecimento que se estabelecerá a passagem para o saber. Por isso que o trabalho em equipe tende a ser cada vez mais estimulado, especialmente, na universidade, porque quem não sabe trabalhar em grupo, não saberá compartilhar em ambientes de trabalho, onde a fragmentação e a complexidade dos conhecimentos terá que ser tratada de forma intra-relacional, enriquecedora e construtiva.

É normal que professores possuam preferências por certos alunos (Pain, 2005) (7) e eles sentem isto. Mas o aluno “não preferido” pode e deve ser um novo amigo. Ele pode ser conquistado. Acreditamos que existem professores que desafiam a si mesmos e vão em busca daquela “ovelha desgarrada”. Se há dificuldades de vinculação professor-aluno, as aulas práticas e/ou vivenciais, ou de atelier são facilitadoras da aproximação. Mas para que isto aconteça, o professor deve gostar do que faz, gostar de pessoas, posicionar-se de forma solidária e “crescer junto” com aquele aluno, descer de seu pedestal do conhecimento para reconhecer que existe um problema e que deverão ambos resolvê-lo. Acreditamos que quanto maior o desafio, maior o empenho do professor e o aluno logo perceberá isto como afeto. Esta abertura de atitude do professor jogará o aluno para a frente.

Freqüentemente, o aluno não gosta da disciplina porque não teve empatia com o professor. Atrás disso, podem estar ocorrendo muitas coisas, inclusive uma forma de dizer que está difícil acompanhar o conteúdo. Ivan Izquierdo afirma que a evocação é altamento modulável por vias nervosas, vinculadas com o alerta, a atenção e a ansiedade, e que é a serotonina, um neurotransmissor que modula a evocação (8). portanto, o professor não pode ser sempre responsável pela aprendizagem do aluno, pois muito é preciso para que o aluno aprenda, pois existe uma fronteira, que se pode atravessar, entre o consciente e o inconsciente. Para que ocorra cognição, muitos aspectos químicos e biológicos precisam se encontrar em boas condições. Daí que o aluno que não aprende não é de responsabilidade do professor, mas cabe ao professor achar caminhos para que ele possa aprender.



Fig. 03

O espaço escolar pode influenciar o comportamento de todos. Na sala de aula, se existe luz refletindo no quadro negro, o aluno evitará sentar-se nas classes que causam este desconforto; se ele sentir muito calor, vai se sentir desconfortável, da mesma forma que o frio excessivo enrijecerá sua mão para escrever. A temperatura altera profundamente nosso comportamento, por isso é tão importante que o projeto de escolas tenha a orientação solar adequada (9).

Quando os alunos conversam muito, a disposição das classes em círculo joga sua atenção para o centro onde o professor é o ponto de fuga do seu olhar. Também é o caso da disposição em “U” que faz com que o aluno possa olhar para todos os colegas e, assim, trocar idéias frente a frente. O aluno que quer prestar atenção percebe logo qual o colega que está dispersivo em aula; é mais difícil um aluno dormir na aula, pois ele sente muitos olhares sobre si, o que nunca ocorre com as classes distribuídas em linhas paralelas. O professor pode auxiliar aquele aluno sonolento ao lhe dizer: vá tomar uma água, um cafezinho, refrescar o rosto. Não é melhor um aluno que saia um pouco e volte mais disposto, do que um aluno sem atenção durante todo o período? Ele vai sentir: que está recebendo cuidados e atenção do professor, e que o professor quer ajudá-lo.



Fig. 04

O formato da disposição das classes em círculo ou em U (quando a aula é expositiva e é necessário o uso do quadro) facilita o intercâmbio com o professor que fica praticamente eqüidistante dos alunos o tempo todo, podendo interagir de forma muito mais eficiente. Por isso, o projeto arquitetônico de interiores de sala de aula é tão importante: a sala deverá ter dimensões suficientes para o número de alunos; as cadeiras e as classes deverão possibilitar movimentos; o quadro não deverá ter reflexos; as janelas deverão possuir sombreamento no exterior pois as cortinas impedem a ventilação; a iluminação deverá ser feita com lâmpadas fluorescentes luz do dia por fornecer uma luz mais uniforme; os ventiladores nunca deverão estar abaixo das luminárias pois a pá – mesmo em movimento – ocasiona o efeito estroboscópico que provoca desconforto por estresse do nervo ótico; equipamentos e luminárias deverão ser silenciosos; as paredes deverão ser de material com bom isolamento acústico para que o ruído de uma sala contígua não interfira na outra. Corredores internos deverão possibilitar a ventilação, mas poderão favorecer a passagem de ruídos para salas próximas. Isto sem falar nas cores (10), no mobiliário e em equipamentos, nas redes elétrica e lógica que possibilitam o uso de computadores, projetores e retroprojetores que, ao proporcionar melhores recursos didáticos ao professor, qualificam a aula. Para Antonio Viñao Frago (1998, p.138), a colocação do mobiliário não deve ser por acaso. A sua distribuição gera segurança, pois o ser humano necessita de precisão e de regularidade, normalização e racionalização, e tais itens “realizam-se mediante dispositivos e engrenagens mecânicas ou organizações maquinais de seres vivos”, seres humanos. Ao alterar o interior ou o exterior, o autor afirma que mudamos a natureza do lugar. Isto significa que se deve “abrir o espaço escolar e construí-lo como lugar de modo tal que não restrinja a diversidade de usos ou sua adaptação a circunstâncias diferentes”(Frago, 1998, p.139). É importante dar liberdade ao professor no processo de configuração de espaços. A sala de aula é um espaço dinâmico. Deve ser um ambiente que possibilita.

Conhecer o aluno é escutá-lo, na maioria das vezes, por poucos minutos, mas escutá-lo com o coração. Acreditamos ser esta a ponte para a aprendizagem: corpo, afetividade, solidariedade, problematização, pesquisa e experimentação num ambiente arquitetonicamente adequado configuram o ideal para que a aprendizagem ocorra satisfatoriamente, pois a sala de aula é um “espaço vivido e um elemento determinante na conformação da personalidade e mentalidade dos indivíduos e dos grupos.” É um tipo especial de território, que tem “uma realidade psicológica viva” (Frago, 1998, p. 63) (11), território e lugar grupalmente construídos: portanto a sala de aula nunca será um espaço neutro. Carrega símbolos, signos e vestígios da condição e das relações sociais. As relações interpessoais - distâncias, território pessoal, contatos, comunicação, conflitos de poder, ritos sociais, liturgia, simbologia na distribuição dos objetos e dos corpos (sua localização e postura) - dependem da hierarquia e suas relações, variáveis em cada cultura, portanto os projetos de salas de aula precisam atender às necessidades dos indivíduos que as utilizam.


NOTAS:

(1) Marilice Costi é professora universitária, mestre em Arquitetura na área de Economia e Habitabilidade, pesquisadora autônoma, pós-graduada em Arteterapia, escritora, oficineira, poetisa, criadora da Oficina de Poesia: A linguagem do poeta e a síntese interior. Diversos prêmios em literatura, livros publicados, membro da Academia Literária Feminina do RS, colaboradora (Info-IAB-RS e CONSUMIDOR-RS). http://www.sanaarquitetura.cjb.net/ - e-mail: maricosti@terra.com.br

(2) No Salão de Atos da UFRGS, superlotado, dia 29 de abril de 2005.

(3) Acreditamos que universitários também podem ter o mesmo funcionamento: o professor/pai e a professora/mãe.

(4) Vale a pena repensar as avaliações que, a nosso ver, devem ampliar a capacidade crítica do aluno. Está na escola para aprender, onde pode errar. Avaliar o sistema de avaliação para não utilizar a nota para bloquear, mas para indicar caminhos ao aluno: uma forma de estimular a crítica para o crescimento do aluno.

(5) Experiência que tivemos em sala de aula.

(6) Em 2003, os alunos da disciplina Avaliação Pós-Ocupação, decidiram o que pesquisar em sala de aula e trabalhamos em uma única equipe. A pesquisa sobre o Terminal Parobé foi feita usando instrumentos de medição e aplicando questionário. Os dados coletados foram tabulados e interpretados em sala de aula. A participação de cada um foi de acordo com suas habilidades e interesses. O resultado está no site www.iabrj.org.br/anais/arquivo/mostra.pdf do XVII Congresso Brasileiro de Arquitetos Rio de Janeiro 2003 – vide Catálogo da 1ª Mostra Multimídia de Arquitetura, Urbanismo e Patrimônio – CD Rom e Websites, p. 13.

(7) Palestra dia 29/04/2005.

(8) Chamar de algum lugar. Trazer à lembrança, à imaginação. Do lat.Evocare (DIC. AURÉLIO ELETRÕNICO,1999)

(9) A orientação deve ser estudada de acordo a região geográfica: entorno e sobreamentos naturais existentes, para depois projetar sombreamentos arquitetônicos (pergolados, marquises, etc.), talvez com o uso de vegetação.

(10) O conteúdo dado pelo professor não pode competir visualmente com as cores de superfícies grandes e fixas. (Opinião da autora) apesar de existirem autores que afirmam que as cores vibrantes auxiliam as crianças devido à sua agitação natural. Cores vibrantes vêm sendo consideradas estimulantes e estressantes para classes mais avançadas. Cores pastéis e suaves são as que menos interferem, portanto as mais adequadas para altos níveis de concentração.

(11) Apud MESMIN, Georges. L´enfant, l´arquitecture et l´espace. Tournai: Casterman, 1973, p. 16.


REFERÊNCIAS

BRUM, Débora Meurer. A voz do professor merece cuidados. Revista Textual, maio 2004, v. 1, n.4 p.14-18.

DEMO, Pedro. Conhecer e aprender: sabedoria dos limites e desafios. Porto Alegre: Artmed, 2000.

FRAGO, Antonio Viñao Frago; ESCOLANO, Agustín. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

HALL, Edward. A dimensão oculta. Rio: Francisco Alves, 1977.

MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. ALMEIDA, Maria da Conceição de; CARVALHO, Edgard de Assis (orgs.). São Paulo: Cortez, 2002.

PAIN, Sara. Corpo, pensamento e aprendizagem. Porto Alegre: GEEMPA, 1999.
SEMLER, Ricardo; DIMENSTEIN, Gilberto; COSTA, Antonio Carlos Gomes da. Escola sem sala de aula. São Paulo: Papirus, 2004.

Figuras: fotos de palestra de Robert Sommer; in del Rio, Vicente; Duarte, Cristiane &Rheingantz, Paulo (2002) "Projeto do Lugar - A Colaboração entre a Psicologia ea Arquitetura e Urbanismo". Rio de Janeiro: PROARQ-FAU-UFRJ / Editora ContraCapa.

segunda-feira, maio 18, 2009

247 - "Maus" bairros, "bons" bairros: aprofundar as boas práticas de habitação social - Infohabitar 247

Infohabitar, Ano V, n.º 247

"Maus" bairros, "bons" bairros: aprofundar as boas práticas de habitação social
António Baptista Coelho


Nota prévia geral: o artigo da colega Marilice Costi, programado para a presente semana, e que tratará alguns aspectos da arquitectura dos espaços pedagógicos será editado na semana que vem, aqui, no Infohabitar.
Nota prévia ao artigo: entende-se, e é sugerido ao longo e no final do artigo, que, naturalmente, não será de um excelente desenho urbano e habitacional que decorrerá a solução dos mais variados problemas sociais; acredita-se, no entanto, que o “desenho” da cidade e do habitar, ou da habitação, pode ajudar, e muito, na melhoria desses problemas; o texto que se segue é desenvolvido nesta perspectiva.


Fig. 01

Introdução

A propósito do que aconteceu, há poucos dias, na Bela Vista, em Setúbal, e do que aconteceu, muito recentemente e novamente, em Chelas, Lisboa, lembram-se alguns aspectos que caracterizaram o que de melhor se fez, em Portugal, nos últimos decénios, em “habitação de interesse social”, comentando-se que poucos desses aspectos estarão presentes na Bela Vista, em Chelas e em outros dos nossos bairros e agrupamentos hoje considerados críticos.

Termina-se com alguns comentários, muito breves, sobre o futuro destas matérias; comentários estes em que se incluem alguns parágrafos de um artigo editado no Infohabitar em 9 de Março de 2005, também a propósito de um problema desta natureza; o que dará para reflectir sobre a possibilidade de podermos vir ainda aqui a “repetir” esta temática daqui a mais alguns anos – espera-se que assim não aconteça.

Para “contrastar” e porque se acredita, inteiramente, numa via de se aprender com os bons exemplos que, entre nós, já existem, em quantidade e qualidade, a ilustração é toda ela referida, a título de exemplo, a um excelente agrupamento de habitação de realojamento na Guarda, Bairro do Pinheiro, promovido pelo município da Guarda em 1995, portanto já há quase 15 anos, com projecto do Arq. Aires Gomes de Almeida e GAT da Guarda, para 53 famílias e alguns equipamentos de proximidade, e que foi visitado e fotografado há poucos dias; e a ideia é, naturalmente, apontar que neste caso, praticamente, tudo o que se irá referir como aspectos de qualidade a implementar em habitação de interesse social se cumpriu, e o resultado está à vista, numa intervenção que cooperou no fazer de mais um pouco de cidade humanizada – e sublinha-se que este é apenas um exemplo de muitos que é possível visitar e estudar, no local, em Portugal, e de replicar nos seus aspectos de estruturais de processo de projecto, obra e gestão local continuada.


Fig. 02

Linhas de concepção e acção que marcam os nossos melhores exemplos de habitação de interesse social

São as seguintes as linhas de concepção e acção que marcam os nossos melhores exemplos de habitação de interesse social

Integração social e adequação aos habitantes
É essencial a integração social no habitar e a sua adequação aos habitantes, através de uma crucial mistura social, pela introdução de pequenos grupos de realojamento, e desenvolvendo-se uma cuidada diversificação de soluções habitacionais.
Depois há que garantir a relação com a intervenção social e a gestão de proximidade e avaliar, sistematicamente, na prática muito o que se fez, tirando daí ensinamentos que vão das tipologias aos processos de gestão utilizados; acabando, de vez, com as repetições de concentrações sociais, com a discriminação e o isolamento na localização dos conjuntos, e com o desenvolvimento de misturas sociais que nada têm a ver com a diversificada composição social da cidade.

Relação mútua, efectiva e afectiva, entre interior e exterior residencial

Um dos aspectos é a relação mútua, efectiva e afectiva, entre interior e exterior residencial, um tema que fica bem evidenciado nos aspectos de crítico inacabamento dos espaços exteriores, que ainda se verificam em alguns “bairros sociais”.

O espaço exterior também é para ser vivido e para isso tem de estar condignamente acabado e equipado, e ser bem relacionado com os espaços públicos de uma cidade viva e coesa que lhes assegure uma estimulante continuidade.

Diversidade tipológica e a pequena escala urbana das intervenções residenciais
Outro aspecto sublinha a importância da diversidade tipológica e da pequena escala urbana das intervenções residenciais de interesse social; e se a esta característica juntarmos o privilegiar de pequenas intervenções residenciais bem integradas, temos provavelmente o maior contributo deste quarto de século para a história da habitação de interesse social portuguesa, pois diversidade e pequena escala favorecem: a participação dos habitantes, a identidade local, o desenvolvimento comunitário, e a gestão local; o equilíbrio ecológico de cada conjunto e a introdução do verde urbano; a introdução de espaços para os peões e promotores do convívio natural; a diversidade de soluções de edifícios habitacionais e mistos (habitação e equipamentos); o desenvolvimento de pequenos conjuntos urbanos de requalificação local; e o desenvolvimento de conjuntos residenciais sem qualquer estigma de pobreza e de falta de atractividade.

Diversidade de promoções e adequada gestão local de proximidade
Um outro aspecto sublinha a relação entre a diversidade de soluções e tipologias e diversidade dos respectivos promotores, uma condição que é muito positiva nas misturas sociais disponibilizadas; uma diversidade que encontra na promoção cooperativa um aliado capaz de assegurar excelentes condições iniciais de enquadramento participativo das intervenções, depois prolongadas por muito eficazes acções de gestão de proximidade.

Apoio a “novas” formas de habitar a casa e a cidade
Outro aspecto evidencia o interesse e a oportunidade de substituir a “velha” oferta de soluções habitacionais únicas, pela oferta de um leque de novas formas de habitar, uma oferta tão importante para uma fundamental adequação aos diversos modos de vida e às necessidades habitacionais específicas, como para a criação de uma estimulante diversidade de relações entre habitações e vizinhanças, em vez de monótonas e repetidas soluções de proximidade, com as quais ninguém terá vontade de se identificar.

Uma diversidade e variabilidade que vai dos multifamiliares aos unifamiliares, passando pelas soluções de transição tipológica e pelas afirmadas soluções colectivas, todas elas soluções extremamente úteis e dúcteis na construção de uma cidade que, de certa forma, cresça numa densidade convivial e decresça naquela densidade que nos faz mal, a do ruído, da confusão, do excesso de veículos, e da ausência de identidade, apropriação e espaços de acalmia.

Adequação à cidade e à paisagem e estimulante preenchimento urbano
Outro aspecto refere-se ao privilegiar de intervenções residenciais bem desenhadas, bem integradas na cidade e caracterizadas pela escala humana, que cooperam, activamente, na (re)estruturação da sua zona de intervenção e que dialogam bem com a fundamental continuidade urbana e com a paisagem.

Procura-se uma densificação estratégica, com uma arquitectura amigável e cívica, através de um desenho bem integrado com as paisagens urbanas e naturais preexistentes, que favoreça a criação de vizinhanças conviviais e bem embebidas nas respectivas envolventes, proporcionando aos novos habitantes boas condições para uma rápida integração física e social e numa opção que joga forte na ampliação do habitar para o espaço exterior circunvizinho; de certa forma esquecendo-se tudo aquilo que se liga a espaços menos apropriados ou apropriáveis.

Desenho pormenorizado da habitação
Ainda outro aspecto tem a ver com o desenvolvimento de excelentes soluções-base de fogos, em termos de zonas funcionais e de adaptabilidade a diversos modos de habitar, onde se equilibram espaciosidades conviviais, por exemplo entre sala e cozinha, e onde, por vezes, se criam espaços domésticos bem caracterizados. Sobre a questão das áreas há caminhos a fazer no sentido de se favorecerem melhores condições, mais funcionais, mais humanizadas, mais integradas e mais versáteis; e melhores espaços não são, necessariamente, maiores espaços, pois podem enriquecer-se com condições especiais de caracterização ambiental, escala humana e atractividade.

Qualidade e pormenorização do desenho de arquitectura – do interior doméstico ao exterior público
Nesta matéria tem de ficar claro que viver numa obra de boa arquitectura residencial é realmente uma experiência muito positiva, pois, tal como disse há poucos anos o presidente do Royal Institute of British Architects (na altura o Arq. George Ferguson): “uma escola melhor desenhada leva a um melhor ensino, e uma casa e um escritório melhor desenhados resultam em pessoas mais felizes” (Rita Jordão SILVA, «Inauguração da nova galeria do Victoria and Albert Museum» in Público, 29.11.2004).

Todos estaremos, porventura, de acordo que, se assim for, e considerando, especificamente, conjuntos habitacionais dedicados a pessoas socialmente desfavorecidas, fica claro que a promoção de habitação de interesse social, apoiada pelo Estado, pode e deve assumir um papel de relevo como ferramenta de apoio ao desenvolvimento pessoal, familiar e social dos habitantes e das respectivas vizinhanças e comunidades locais numa cidade redimida da falta de desenho e de outras qualidades que se vivem realmente, mas que tanto andaram esquecidas.


Fig. 03

Dos bairros do crime ao verdadeiro problema da habitação (título de um "velho" artigo no Infohabitar)
Relativamente aos nossos “maus” bairros sociais eles continuam a existir (escreveu-se aqui sobre eles há mais de quatro anos, num artigo sobre “os bairros do crime”), e volta aqui a apontar-se, com as mesmas palavras então usadas, que seria muito acertado realizar um estudo prático deste universo da nossa vergonha urbana e para ele tentar e aplicar, de forma expedita, as melhores receitas para lhes aumentar urgentemente a qualidade de vida e naturalmente lhes reduzir a insegurança e a intolerância. Tal estudo também ajudaria a não repetir os erros; e fica ainda uma reflexão urgente sobre quantos desses conjuntos têm dimensão excessiva, tipos de edifícios pouco adequados aos seus moradores, espaços públicos pouco acabados ou mesmo quase inexistentes, e deficientes condições de ligação à cidade, seja por reduzida continuidade urbana, seja por reduzido serviço de transportes públicos.

Sublinha-se, finalmente, e na sequência do que foi aqui apontado, que os caminhos do presente e do futuro na habitação de interesse social portuguesa se ligam a uma arquitectura das vizinhanças e das continuidades urbanas, centrada nos agrupamentos e quarteirões, em soluções que não têm condicionantes significativas em termos de custos, mas que têm, sim, claras exigências de qualidade arquitectónica, que dependem de um amplo aprofundamento tipológico que tem de garantir uma cidade coesa, variada e estimulante.


Fig. 04

Há que privilegiar, assim, soluções residenciais e urbanas que possam contribuir, quer para uma cidade melhor habitada, mais misturada e integrada de diferentes pessoas e actividades, e mais amigável, quer para uma habitação que sendo adequada e multifacetada seja também um pouco de cidade e uma habitação viva, que se estenda pelos exteriores e pelos outros espaços de uma cidade viva.

Talvez que o tema comum numa cidade mais viva e numa habitação com verdadeiro interesse social, e, portanto mais urbana e coesa, mas que não perca o sentido básico do abrigo, do sossego e da apropriação, e da convivialidade entre vários grupos socioculturais, seja uma caracterização humanizada do habitar, um habitar à pequena escala, um habitar das vizinhanças bem conjugadas, um habitar que tanto embebe a escala humana e bem amigável desse sossego, dessa protecção e dessa apropriação, como está disponível, mercê de simples e diversificadas associações, para participar activamente na construção das escalas maiores das vizinhanças mais alargadas, dos bairros e das partes de cidade.

E conclui-se com duas frases bem oportunas do arq. Luís Fernandez-Galiano: “o problema da habitação tornou-se o problema da cidade”; e “a habitação... é um problema urbano, da civitas ou da polis, isto quer dizer, de cidadania e político.”



Fig. 05


Edição Infohabitar
Editado por José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 17 de Maio de 2009