domingo, janeiro 31, 2010

283 - Sobre a casa-pátio: elementos de enquadramento - Infohabitar 283

Infohabitar, Ano VI, n.º 283
Sobre a casa-pátio: elementos de enquadramento
António Baptista Coelho

Nota inicial: o texto que baseia-se nos elementos desenvolvidos pelo autor para o livro "Habitação Humanizada", realizado e editado no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) e disponível na Livraria do LNEC.

O homem moderno terá, “apenas”, entre 100.000 e 50.000 anos, o pensamento artístico terá sido desenvolvido há cerca de 25.000 anos, antecipando a invenção, primeiro, dos pequenos espaços urbanos constituídos por orgânicos aglomerados de casas, sem ruas (a circulação seria feita pelas coberturas e utilizando escadas, recolhidas em caso de perigo), depois do sistema de casas ligado e separado por ruas e outros espaços de invenção do sentido cívico, sentido este que terá levado, finalmente, à racionalização dos traçados, à criação de espaços públicos específicos, funcionais e representativos, muito provavelmente com pátios públicos e consequentemente à criação dos espaços domésticos mais privatizados e frequentemente também estruturados por pátios.

E em tudo isto a casa-pátio tem um papel protagonista, provavelmente marcando a passagem da consideração do habitar super-individualizado para o habitar agregado que conformou povoações e cidades.




Fig. 01

Aquela que se pode considerar a aldeia mais antiga até agora identificada é Ohalo, habitada há cerca de 20.000 anos e situada no leito seco do Mar da Galileia.

E as primeiras povoações com um carácter mais citadino surgem há cerca de 10.000 a 9.000 anos, em simultaneidade com a agricultura e a pastorícia mais sistematizadas; sendo as primeiras que se conhecem Jericó, com cerca de 5ha, habitada por mais de 2.000 pessoas, e Çatal Höyük, perto de Konya, na actual Turquia, esta um pouco mais tardia mas que parece ter atingido uma muito significativa dimensão urbana, reflectida tanto em área ocupada como em número de habitantes – cerca de 15ha para 8.000 habitantes -, numa soluçao urbana que funcionou sem interrupções durante pelo menos 800 anos e que devia ser construída e ampliada em conjunto, e não admitia acréscimos individuais.

Temos, portanto, cerca de 10.000 anos de urbanidade, e nestes cerca de 60%, portanto 6.000 anos foram marcados pela casa-pátio ou “casa urbana oriental”, como lhe chama Schoenauer (1), que lhe sublinha o seu carácter introvertido com um ou mais pátios privados e o seu uso em quatro antigas civilizações e nas cidades da Grécia Clássica e de Roma e salienta-se que “esta casa é ainda, hoje em dia, a forma tradicional de habitar em muitas cidades da Ásia, África e América do Sul, sendo, tal como sublinha Schoenauer, “uma forma de habitar que perdurou durante mais de 200 gerações”.

Na mesma obra Schoenauer indica que “a mais importante das suas características é o pátio ajardinado, espaço privado central e aberto. o pátio é o coração da casa urbana oriental e não existe em nenhuma outra língua uma expressão mais poética do que a chinesa para definir o pátio, «oferenda do céu», fonte que proporciona luz, ar e água da chuva à habitação… outra característica da casa-pátio é que esta introversão proporciona privacidade visual e acústica não só relativamente à rua, mas também relativamente aos vizinhos." (p.237)

Complementarmente, Schoenauer salienta, ainda no mesmo livro, a flexibilidade do interior destas casas orientais como outra sua importante característica, com a maioria dos seus compartimentos caracterizados como espaços multiusos (p.240); e escreve ainda que ”além de tudo isto há uma natural civilidade ou urbanidade na casa-pátio na qual se fugia da ostentação de uma altura elevada também por recomendações religiosas, com idênticos reflexos na modéstia das fachadas – uma lição de urbanismo, que, ao nível do bairro se associou ao desenvolvimento de comunidades que não têm níveis homogéneos de rendimento”, gerando-se e consolidando-se, assim, uma importante regra de integração social e económica (p.240).

Continuando com Schoenauer (2) este salienta que “o conceito de casa-pátio foi redescoberto por alguns arquitectos modernos”, constituindo um “exemplo a seguir tanto no uso do solo como na conservação da energia e na definição hierárquica das ruas, pois proporciona identificação mais íntima com a comunidade residente, e é um modelo urbano compacto que não desperdiça espaço resultando em distâncias pedonais razoáveis e numa densidade adequada a um eficaz sistema de transportes”. (p.241)

E Schoenauer sublinha ainda, no final da sua extraordinária obra, que “as civilizações orientais, milhares de anos mais antigas do que as ocidentais, evoluíram, através de um longo processo de ensaio e erro, até algumas soluções de desenho habitacional urbano que deram resultados positivos ao longo de muito tempo. Soluções que podem ser adoptadas no cenário urbano ocidental, com a garantia de terem sido viáveis durante pelo menos 6000 anos” (p.369); e a isto podemos acrescentar ter-se hoje a noção clara de que muitos dos modelos de edifícios culturalmente incoerentes ainda mais o são relativamente aos actuais e essenciais critérios de eficácia energética e de poupança de recursos.


Fig. 02

Salienta-se que as influências orientais da casas-pátio ditaram a forma da clássica casa grega e romana e, na Idade Média, o conceito continuou a usar-se em mosteiros e conventos.

A casa-pátio, nas suas mais diversas versões e configuraçõe, foi e é ainda um elemento importante da boa relação entre privacidade habitacional e cidade pública.

E, a propósito, lembro o ambiente de uma domus citada por Ariès e Duby (3), ... “a residência é antes de mais um largo espaço vazio que se adivinha assim que se penetra no coração do edifício, e por vezes apenas no seu limiar, uma fileira não de salas fechadas mas de espaços: pátio coberto, claustro, jardim com os seus jogos de água; são mais os vazios do que os cheios ... À volta deste vazio estão claramente dispostos pequenos quartos cuja pequenez surpreende; cada um se retira para a sua cela para ler ou dormir, mas vive-se nos vazios centrais, sobre os quais se abrem, a todo o seu comprimento, salas de jantar, como caixas a que faltaria um dos seus quatro lados... Seja na residência rica ou não, uma decoração de cores vivas recobre o chão, as paredes os tectos de mosaicos, de estuques, de pinturas decorativas ou mitológicas … aqui reina a imaginação não a pompa. O espaço inútil era outro luxo e a arquitectura tinha sabido combinar a amplidão do conjunto com a possibilidade de retiro nos pequenos quartos … o espaço central permite o afastamento... Um modesto burguês em Paestum numa casa de cerca de 100m2 com cozinha e três pequenos quartos recortados na margem por um largo pátio”.

Para quem viva, intensamente, as matérias do habitar esta descrição tem extraordinário interesse e faz pensar que a casa-pátio tem uma dupla virtude: a de se agregar com alguma facilidade e interesse volumétrico para fazer cidade contínua, protectora e estimulante em termos de imagens e sequências urbanas, de certa forma como que numa relativa qualificação mais “doméstica” ou intimista do espaço público; e a virtude de dar a partes específicas e estratégicas do próprio espaço doméstico valência agradavelmente mutantes ou diversificadas, como que num mitigado e bem controlado prolongamento do espaço público. E esta dupla virtude é muito útil e no (re)desenvolvimento de velhas e novas tipologias do habitar a cidade e a casa.

E lembra-se que a capacidade de compactação urbana e de agregação das habitações desenvolvidas em torno de pátios parece ser uma arma, bem actual e interessante no aprofundamento de uma estratégica densificação urbana, tratando-se de um caminho que não sacrifica as fundamentais privacidades domésticas, e sendo também um caminho claramente associável ao desenvolvimento de tipologias habitacionais intermediárias, entre o unifamiliar e o multifamiliar, numa estimulante transfiguração da ideia da casa-pátio, para soluções de casas-pátio e casa-terraço mutuamente sobrepostas e diversificadamente imbricadas.



Fig. 03

Desenvolve-se, um pouco mais, esta referência ao chamado “habitat intermediário”, com algumas palavras de Monique Eleb e Anne Marie Chatelet: “há três grandes categorias habitacionais: o habitat colectivo, o habitat individual e o habitat intermediário, que tal como o nome indica se liga aos dois precedentes (imóvel colectivo mas com acessos individualizados e superfícies exteriores significativas tais como terraços)” (4). E as autoras, numa referência a F. Lamarre, especificam que “os terraços sobrepostos, entradas e caixas de escada desmultiplicadas conferem ao habitat uma escala intermediária, a meio caminho entre o individual e o colectivo.”

E uma prova teórico-prática desta capacidade urbana agregadora da tipologia-base “casa-pátio” foi dada, já há muitas dezenas de anos, num excelente livro de Serge Chermayeff e Christopher Alexander (5), intitulado “Community and privacy, toward a new architecture of humanism”, no qual os autores demonstram a enorme diversidade de densidades – algumas bem elevadas –, que são possíveis apenas com recurso a edifícios unifamiliares de diversos tipos e em diferentes configurações e agrupamentos, articulados por pátios privativos e comuns. E é preciso sublinhar que se trata de uma obra fundamental para todos aqueles que se dedicam ao estudo da fundamental relação entre continuidade urbana e privacidade doméstica.

E, porque se julga oportuno, fazem-se, em seguida, duas citações desse livro, que se consideram estruturantes destas temáticas: (6)

“Acima de todos os outros um elemento precioso da vida de outrora está em risco de extinção: a intimidade, essa maravilhosa combinação de afastamento, confiança em si próprio, solidão, calma, contemplação e concentração” (p. 23)... Uma forma urbana que tomasse em conta correctamente todas as condicionantes e tensões da nossa época seria capaz de manter uma vida equilibrada, que eliminaria grande parte do desejo de evasão” (p. 35).

No que toca ao interior do habitar (edifício e fogo), provavelmente a grande aposta está no (re)inventar de novas tipologias, adequadas às novas famílias e designadamente às cada vez mais numerosas pessoas sós e aos idosos sós; e a casa-pátio num único piso e na qual o pátio configura um verdadeiro compartimento é provavelmente uma das mais adequadas tipologias para idosos; e lembremos aqui bem a propósito as soluções de Jörn Utzon: as suas casas organizadas em redor de pátios, em Fredenborg (1959-62), cujas raizes o projectista encontrou nas suas viagens mas também na própria Dinamarca e que misturam referências das quintas tradicionais dinamarquesas e chinesas e da arquitectura islâmica ... uma espécie de programa-quadro para o habitar individual, e refere Isabel Salema que é uma arquitectura que "vai ao encontro das necessidades modernas maravilhosamente, e contudo Fredensborg quase podia ter sido construído há mil anos.” (7)

Para rematar este texto é preciso sublinhar que nunca será excessivo referir o urgente reforço da perspectiva histórica nos estudos do habitar. O que não faz qualquer sentido é actuar como se nada para trás existisse em termos de experiência acumulada e debatida, e como se um dado edifício de habitação pouco mais fosse do que um conjunto de elementos de construção e de dispositivos mais ou menos elaborados.

E, afinal, a casa-pátio é uma tipologia que, tal como refere Anton Capitel (8), se identifica com a própria arquitectura ao longo de largos períodos da história do habitar.

Notas:(1) Norbert Schoenauer, “6.000 años de hábitat – de los poblados primitivos a la vivienda urbana en las culturas de oriente y occidente”, 1884 (1981).
(2) Norbert Schoenauer, “6.000 años de hábitat – de los poblados primitivos a la vivienda urbana en las culturas de oriente y occidente”, 1884 (1981).
(3) Ariès e Duby, "História da Vida Privada I", 1991, pp.303 e 304.
(4) Monique Eleb, Anne Marie Chatelet, "Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui", 1997, p.18.
(5) Serge Chermayeff e Christopher Alexander, “Intimité et Vie Communautaire – vers un nouvel humanisme architectural“, 1972 (1963), pp. 191 a 197.
(6) Serge Chermayeff e Christopher Alexander, “ Intimité et Vie Communautaire – vers un nouvel humanisme architectural “, 1972 (1963).
(7) Isabel Salema, “Jorn Utzon para além da Ópera de Sidney”, Público, 19 Abril 2003.
(8) Anton Capitel, “La arquitectura del pátio”, 2005.

Infohabitar, Ano VI, n.º 283
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte, 31 de Janeiro de 2010

domingo, janeiro 24, 2010

282 - Cidades amigas, cidades seguras - Parte II - Infohabitar 282

Infohabitar, Ano VI, n.º 282

O Infohabitar divulga:
Exmo/a leitor/a do Infohabitar
O 2º Congresso da Luz vai ter lugar no próximo dia 5 de Fevereiro.

O LNEC e o Centro Português de Iluminação apoiam o desenvolvimento desde Congresso e o Grupo Habitar tem todo o gosto em proporcionar a sua maior divulgação; e atenção à data pois está muito próxima, mas é ainda possível a inscrição.

E o GH não pode deixar de salientar ser esta uma iniciativa à qual está ligado um dos seus elementos fundadores, o Dr. António Santos, um excelente colega do LNEC actualmente a concluir a sua tese de doutoramento e com o qual realizámos e realizaremos excelentes sessões técnicas; além de termos previstos interessantes desenvolvimentos no âmbito da ligação entre o habitar, a iluminação e a Arquitectura.
E tendo-o referido não posso deixar de comentar que a luz natural, como elemento básico e essencial de projecto e a luz artificial como elemento fundamental do mesmo projecto, são aspectos verdadeiramente estruturadores de uma verdadeira qualidade do habitar - habitar num verdadeiro sentido amplo que engloba a habitação e muitas outras actividades humanas.
E está para ser devidamente salientada a importância crucial que adequadas, ou, melhor, que excelentes condições de luz natural sempre têm numa afirmada satisfação no uso de espaços comuns e espaços privativos do habitar; múltiplos estudos têm confirmado e evidenciado esta situação, mas, na prática, estamos ainda muito longe de a termos interiorizado, adequadamente. Só quando habitamos, ou trabalhamos, em sítios escuros e sem vistas, ou quando passamos semanas sob tempo encoberto e cinzento, entendemos, realmente, que precisamos de boa luz natural e, também, de adequada luz artificial, praticamente como quem precisa de alimento. E então se aliarmos este aspectos básicos às oportunas e bem actuais considerações de poupança energética, vamos ter um resultado final que bem evidencia a importância fundamental da iluminação na construção e reconstrução do nosso habitar, num sentido completo e amplo.
Por isso o Grupo Habitar se associa aos organizadores do 2º Congresso da Luz, que vai ter lugar no próximo dia 5 de Fevereiro, na sua bem merecida divulgação; e por isso se anexa um pdf com o Folheto de divulgação/inscrição no Congresso e se acrescenta, em seguida, uma breve introdução ao evento. E salienta-se que depois encontrará o habitual link para o artigo semanal do nosso Infohabitar.
António Baptista Coelho
Editor do Infohabitar, Presidente da Direcção do Grupo Habitar

II CONGRESSO DA LUZ - "Luz com Emoção"

O II Congresso da Luz vem consagrar o CPI com a sua Missão: «promoção e divulgação das boas práticas de Iluminação», contribuindo assim para que os seus objectivos se cumpram a par da evolução e desenvolvimento das novas Tecnologias e Técnicas de Iluminação.
O reconhecimento da importância da Especialidade – Luminotecnia e dos técnicos especializados que, cada vez mais, necessitam de um elevado conhecimento da arte de iluminar, na procura da excelência das boas práticas com soluções sustentáveis e o crescente envolvimento de várias sensibilidades (Arquitectura, Design, Engenharia e Marketing) são sinais claros de que a Iluminação faz parte de um conjunto de especialidades que, no futuro, terão uma contribuição muito importante para a implementação dos novos conceitos e/ou critérios de construção, baseados na sustentabilidade e protecção do meio ambiente.

As «Novas Tendências», A «Arquitectura da Luz», A «Iluminação e a Sustentabilidade» e a «Regulamentação/Normalização e Boas Práticas» são temas que, certamente, irão despertar um especial interesse pela comunidade interessada na Qualidade da Iluminação em Portugal.
A sua presença será um grande contributo para a discussão sobre os grandes desafios do futuro da Iluminação.

Contamos consigo !


Cidades amigas, cidades seguras - Parte IIAntónio Baptista Coelho

Notas introdutórias
Este texto foi desenvolvido para basear uma intervenção realizada em 20 de Janeiro de 2010 no âmbito do Seminário intitulado "Comunidades Seguras em territórios urbanos", promovido pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana e pela Iniciativa "Bairros Críticos", no Auditório do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna. Regista-se, ainda, que este texto está na continuidade de um outro maior incluído no capítulo intitulado "Habitar cidades amigas – projecto 3", integrado na Parte III, "Linhas/projectos de desenvolvimento para uma habitação humanizada", do estudo que realizei e que foi editado no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, com o título "Habitação Humanizada" (LNEC, TPI N.º 46, 2007).

A intervenção urbana sempre visou tornar a cidade acolhedora, e esta qualidade tem a ver com o viver em conjunto, que é o assunto urbano fundamental.

É fundamental que o urbanismo vise a construção ou a reconstrução de uma cidade acolhedora, que seja expressivamente amiga das pessoas e designadamente daquelas mais sensíveis e desprotegidas. Temos de fazer tudo para que as nossas cidades sejam amigas dos seus habitantes. Amigas no sentido da protecção e do apoio a quem nelas habita, e entre estes, privilegiando-se, naturalmente, os grupos sociais mais sensíveis e mais significativos.

Na sequência do artigo editado na semana passada no Infohabitar, relativo a estas matérias de uma "cidade convivial e fisicamente acolhedora", são abordadas, em seguida, de forma breve, algumas facetas que se julga serem também essenciais para a recuperação e para a redescoberta, por todos nós, do que pode ser uma cidade amiga, uma cidade que inspire confiança a quem a habita; são elas: (II) sobre o bom projecto urbano, (III) as questões de acessibilidade; (IV) a cidade da criança e do idoso, que é afinal, a cidade de todos; (V) a importância dos aspectos de gestão local; (VI) a relação entre reabilitação urbana e segurança pública; e, para rematar, (VII) a relação entre bom urbanismo e policiamento de proximidade ou comunidade.


(II) Sobre o bom projecto urbano

Em primeiro lugar, fazer um bom urbanismo é, também, desenvolver boas condições de segurança urbana e não é fácil fazer um bom urbanismo, com cidade viva, participada por uma grande diversidade de grupos socioculturais, sem misturas sociais disparatadas, e sem criação de guetos onde se concentrem grandes números de pessoas socialmente desfavorecidas.

Em segundo lugar, não é fácil fazer um bom urbanismo tratando-se ao pormenor o espaço disponível, pois quando se tem muito espaço e quando o projecto urbano tem deficiências ou não é adequado aos seus habitantes, começa, frequentemente, a sobrar espaço; mas o espaço urbano não pode sobrar, deve ter limites, deve ter controlo, e não pode haver espaços esquecidos, que são espaços de inseguros!

De certa forma há aqui, frequentemente, uma contradição no caso da habitação de interesse social: interiormente o espaço doméstico é gerido com enorme rigor, enquanto, exteriormente, o espaço público é, frequentemente, tratado de forma residual, equipado deficientemente ou mesmo não equipado e, por vezes, deixado ao abandono, com todas as más influências daí decorrentes.




Fig. 09


Em terceiro lugar há regras básicas do bom urbanismo que são igualmente regras básicas da segurança, designadamente: a continuidade urbana a todo o custo, a ausência daquelas situações em que o espaço se escapa pelas esquinas, e entre blocos com grande sempenas cegas, a previsão de uma visibilidade estratégica e contínua ao longo do espaço público e sobre este espaço a partir dos edifícios envolventes, o combate sem tréguas à desorientação urbana, considerando especificamente as pessoas mais sensíveis, a criação de um espaço público com uma vivência pelo menos mínimas empre que possível máxima, a responsabilização e manutenção de cada metro quadrado de espaço urbano e o seu adequado equipamento em termos de espaços e elementos extremamente duráveis, e a adequada previsão do cenário nocturno, em termos funcionais, de segurança e de atractividade.

E é fundamental que tudo isto se articule com a gestão local, visando-se um desígnio essencial de criação de condições óptimas para se desenvolver uma elevada estima dos habitantes relativamente ao seu espaço de habitar, às suas vizinhanças e aos seus espaços públicos. É fundamental criar estas relações fortes de apropriação e de satisfação para com as soluções urbanas e de habitar e tratá-las muito bem em termos de limpeza, manutenção e arranjo de pormenor, pois espaços mal amados, sujos e abandonados são espaços mal usados, e se alguns destes espaços estiverem fora da vista e do uso dos habitantes, então são sítios naturais de delinquência.

E é importante ter presente que as pessoas defendem melhor os espaços que consideram como seus e neles exigem melhor qualidade de manutenção e neles estão mais prontos a reagirem contra usos menos adequados; o que não acontece quando as soluções urbanas e habitacionais são pouco adequadas e frias; e nestas matérias é importante ligar, mais fortemente, a habitação à vida urbana, não interpondo entre uma e outra extensos e frequentemente inseguros espaços comuns.



Fig. 10


O espaço urbano seguro é, como se tem defendido o espaço vivo e acolhedor, e é sempre o espaço da continuidade urbana, naturalmente visível e apropriado pela comunidade ou por cada pessoa ou família. E quando pertença da comunidade este espaço tem de ser uma espécie de sala de estar da vizinhança ou mesmo da cidade, e sendo-o , é um espaço com o qual se deve interagir naturalmente a partir das janelas que o rodeiam, desenvolvendo-se um controlo do espaço público muito natural, pela continuidade do espaço que é criada e pelas atraentes referências urbanas de orientação que povoam esta continuidade urbana, e que são elas próprias estratégicos e vitais elementos de segurança urbana, como é o caso dos acessos às habitações e às lojas.

Outro aspecto importantíssimo, que já foi aqui referido, é a questão da altura dos edifícios. Uma pessoa a partir do 5º, ou 6º andar, isola-se do que se passa no espaço público, é como se este deixasse de existir para ela, porque deixa de haver uma relação directa, deixa de haver a relação da voz, deixa de haver a possibilidade de a pessoa falar com alguém, na rua, a partir da sua janela.

Isto não quer dizer que não devam existir construções mais altas para pessoas que queiram viver mais isoladas. Mas, "por regra", obrigar boa parte das pessoas a viver isoladas do espaço público, não pode ser. Pois a altura excessiva dos edifícios, além de reduzir a escala humana da cidade, aumenta a descontinuidade urbana, pois os edifícios mais altos têm de estar mais afastados entre eles, havendo espaços públicos mais extensos, e reduz drasticamente a capacidade de interacção entre as habitações e o espaço público, abrindo-se caminho à insegurança urbana.



Fig. 11


E então quando pessoas que viviam precariamente em casas abarracadas de um único piso são realojadas nesses edifícios altos estão a juntar-se os problemas que acabaram de ser apontados, com o problemas da inadequação entre o tipo de realojamento proporcionado e os modos de vida adquiridos, ligados à terra e à vizinhança; e o resultado será mau e ainda pior quando se opta por fortes concentrações de pessoas dos mesmos grupos socioculturais desfavorecidos.

E importa ainda referir a barreira crítica que os edifícios altos constituem, frequentemente, para o uso do espaço público por idosos e crianças - que deixam de poder ir à rua sozinhas.


(III) As acessibilidades e o "eterno" conflito peão-veículo

Passando, agora, muito brevemente, às questões da acessibilidade e embora não seja esta uma reflexão sobre os conflitos entre o veículo e o peão, há que sublinhar que as matérias de insegurança urbana também se ligam a uma certa nova velocidade de vivência da cidade pouco humana e tantas vezes perigosa, que tornou o espaço público citadino muito pouco acolhedor para o peão, cujo espaço tem recuado frente ao do veículo, perdendo-se parte das funções de estadia e de diversas actividades antes aí desempenhadas.



Fig. 12


E hoje há vias citadinas que são apenas estradas, há ruas que foram totalmente conquistadas pelos veículos, há até passeios, antes espaçosos, e que estão converidos em estacionamento de veículos e, recentemente, em circuitos para bicicletas; e não podemos ter quaisquer dúvidas que este tipo de condições são e serão aproveitadas por aqueles que encaram os peões como vítimas potenciais.

Não se encare esta posição como qualquer tipo de fundamentalismo, pois as zonas exclusivamente pedonais têm riscos específicos em termos de segurança urbana, apenas como esclarecimento de que a cidade que assim se faz pouco tem a ver com um espaço urbano acolhedor, agradável em termos de conforto ambiental e globalmente amigável.

Do recreio livre e do desporto citadino, ao andar a pé como conceito essencial de deslocação e de bem-estar físico, os peões têm de recuperar, urgentemente, o seu direito de cidade, que não deverá ser exercido, especificamente, contra o automóvel privado, mas apenas e exclusivamente contra tudo aquilo que afecta negativamente o seu conforto urbano em termos de deslocações e de estada e contra a bem conhecida persistência de cenários urbanos visual, ambiental e funcionalmente agressivos e insustentáveis; afinal os territórios que nos repelem e que, portanto, ficam ao abandono, transformando-se em zonas de insegurança.

E em Lisboa Chelas é um bom exemplo deste tipo de território, pois, tal como refere o Arqº Manuel Tainha (2000) (13), é “uma zona sombria” e “um território dilacerado”, onde "as pessoas vivem nos interstícios das grandes vias e o automóvel é soberano na cidade. As áreas residenciais são áreas residuais entre os sistemas de circulação.”



Fig. 13

E nestas matérias da acessibilidade há que salientar as situações gravíssimas em que vizinhanças e mesmo pequenos bairros estão isolados fisicamente da cidade e, além disto, estão extremamente mal servidos de transportes públicos, criando-se um isolamento crítico, que além de aspecto essencial da ausência de qualidade no habitar, é também factor directo de desenvolvimento da insegurança urbana.


(III) Acidade da criança e do idoso, que é afinal, a cidade de todos

Mas, naturalmente, numa perspectiva de uma cidade mais acolhedora há que salientar as necessidades específicas de apoio físico, de vizinhança e de orientação para os os idosos e as crianças. E uma cidade mais amigável para idosos e jovens, afinal, aqueles que mais a usam, irá dinamizar mais o uso dos seus espaços públicos por estes grupos etários e também pelos outros, tornando-se, consequentemente, uma cidade mais convivial e mais segura.

Não se irá desenvolver aqui este tema, que merece abordagem específica, mas aponta-se , apenas, que o bem-estar residencial e urbano dos idosos e crianças depende, muito especificamente, de boas condições de estruturação e orientação urbana com continuidade, que estimulem o conhecimento da envolvente urbana, de conforto nas deslocações e na estadia no exterior, de proximidade a transportes colectivos e equipamentos comerciais, de protecção relativamente a veículos e de adequada integração urbana das respectivas habitações.

Sinteticamente os idosos e as crianças precisam de um ambiente urbano especialmente acolhedor e seguro, nas diversas facetas da segurança; e se esse ambiente existir eles estarão na rua, a habitar a rua e a cooperar para que a rua seja mais viva e segura - no caso contrário por vezes nem podem sair de casa, ou não vale a pena sairem de casa, com os resultados que são evidentes para a sua saúde física e mental e não podemos esquecer que, hoje em dia, são inúmeras as pessoas idosas que vivem auto-encarceradas em suas casas e, mesmo assim, numa constante inquietação por poderem ser assaltadas” (14); isto quando se geram círculos viciosos de pouco uso e de insegurança no espaço púiblico.



Fig. 14

(IV) Uma gestão de proximidade eficaz

Naturalmente, há que sublinhar que tudo isto, todos este bons e maus exemplos, são fortemente influenciados e mesmo determinados pela existência ou ausência de uma gestão de proximidade eficaz, exercida em cada metro quadrado de espaço edificado e exterior; e aqui, se entendem bem, novamente, quer os benefícios de se poder trabalhar com espaços bem definidos, claramente apropriados e delimitados, onde são visíveis as diversas zonas de responsabilidade, o que acontece na cidade com continuidade urbana, quer os malefícios de se trabalhar nos tais espaços em mancha de óleo, pouco definidos e mesmo muitas vezes perigosamente ambíguos em termos de usos aí recomendados ou permitidos - por exemplo em termos de misturas entre tráfegos de peões e veículos - em termos das essenciais acções de limpeza e manutenção.

Devido ao perfil desta intervenção, essencialmente nas matérias urbanísticas, não se desenvolverá mais esta faceta da gestão de proximidade, que se considera, no entanto, vital na relação entre urbanismo e segurança, e não quero deixar de comentar que considerao que mesmo com policiamento de proximidade, igualmente estruturante nestas matérias, me parece poder funcionar quase como um parceiro directo e fortemente integrado nesta gestão local de proximidade; julgo que com resultados finais claramente potenciados, isto até porque julgo que certas funções da gestão local urbana se podem articular muito positivamente com fortemente com essa fundamental modalidade de policiamento.


(V) Reabilitação urbana e segurança pública, um breve comentário

Quanto às matérias de ligação entre a reabilitação urbana e a segurança pública elas podem ser sintetizadas referindo-se que os aspectos urbanos mal desenvolvidos ou não desenvolvidos, como a excessiva concentração de grupos sociais sensíveis, a utilização de mega-edifícios impossíveis de gerir, o uso de tipologias habitacionais inadequadas, a ausência de equipamentos de vizinhança e conviviais, a deficiente ou ausente continuidade urbana, as acessibilidades citadinas deficientes e a ausência de vizinhanças e espaços exteriores úteis e amigáveis, são aspectos que terão de ser abordados e resolvidos, caso a caso, com especial sensibilidade humana, social e urbana, em sede de um projecto regeneração urbana com especial qualidade, feito por arquitectos, e informado e acompanhado por um amplo leque de outros técnicos, entre os quais especialistas em segurança pública.


Fig. 15


(VI) Entre bom urbanismo e policiamento de comunidade

Para terminar aponta-se que tal como refere Jane Jacobs (1961) (15), “a primeira coisa que deve ficar clara é que a ordem pública não é mantida basicamente pela polícia, sem com isso negar a sua necessidade. É mantida fundamentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos… a segunda coisa é que o problema da insegurança não pode ser solucionado pela dispersão das pessoas... Numa rua movimentada consegue-se garantir a segurança; numa rua deserta não… Deve ser nítida a separação entre o espaço público e o espaço privado…; devem existir olhos para a rua…; a calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, para induzir olhos atentos na rua assim como observação da rua a partir dos edifícios..."

Mas a ordem pública também precisa da polícia e aqui considera-se ser fundamental a dinamização do policiamento de proximidade, pois fica evidente que a “polícia orientada para a comunidade” está na continuidade natural das preocupações e das ideias que têm vindo aqui a ser expressas, designadamente, em termos de espaços residenciais vitalizados, “defensáveis”, responsabilizados, e associados a uma gestão local eficaz.

Uma acção deste tipo estrutura-se em torno de um agente que apoia em múltiplas pequenas ocorrências, habitualmente, de muito pouca gravidade, e um agente que, provavelmente, em pouco tempo conhece muitos dos outros agentes privilegiados da vida e da gestão diária dos sítios que lhe estão atribuídos; e “vemos” este agente a pé! Nas tais zonas urbanas mais amigáveis, vitalizadas e bem estruturadas. Mas para tal há que ter meios humanos numericamente adequados e depois há que considerar o resto do problema e no resto está também a criminalidade cada vez mais organizada e com meios mais perigosos e para esta tem também de haver respostas eficazes.

E esta verdadeira “polícia de comunidade” tem de ser orientada para a defesa e o desenvolvimento de uma verdadeira qualidade de vida, tal como é defendido por William Bratton e William Andrews (2000), que referem que “o policiamento da qualidade de vida é importante por três razões. Em primeiro lugar, porque a maioria dos cidadãos é mais sensível a situações como a prostituição, o pequeno comércio de droga, os excessos de ruído, o alcoolismo juvenil e outros delitos menores do que ao grande crime… Em segundo lugar … os ambientes convulsos atraem o crime e provocam o medo. Em terceiro lugar, porque os autores de crimes graves também cometem muitas vezes outros tipos de pequenos delitos; o policiamento da qualidade de vida permite aos agentes da polícia intervir junto destes grupos e por vezes impedir a ocorrência de crimes sérios.” (16)

Notas:

(13) “O artista é o mais frio dos homens – entrevista com Manuel Tainha”, Arquitectura e Vida, 2000.
(14) Monteiro de Barros, “O imobiliário : 100 anos da vida de um imóvel – Jornadas de reflexão, Lisboa,” 2004, p.175.
(15) JACOBS, Jane, “Morte e vida das grandes cidades”, trad. Carlos Mendes Rosa, 2001 (1961), pp. 32, 35, 36 e 41.
(16) William Bratton e William Andrews, no livro organizado por Myron Magnet, Paradigma urbano – as cidades no novo milénio (The Millennial City), 2001 (2000), p.112.

Infohabitar, Ano VI, n.º 282
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte, 24 de Janeiro de 2010

domingo, janeiro 17, 2010

281 - Cidades amigas, cidades seguras - Parte I - Infohabitar 281

Infohabitar, Ano VI, n.º 281
Cidades amigas, cidades seguras - Parte I

António Baptista Coelho


Notas introdutórias
Este texto foi desenvolvido para basear uma intervenção realizada em 20 de Janeiro de 2010 no âmbito do Seminário intitulado "Comunidades Seguras em territórios urbanos", promovido pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana e pela Iniciativa "Bairros Críticos", no Auditório do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna. Regista-se, ainda, que este texto está na continuidade de um outro maior incluído no capítulo intitulado "Habitar cidades amigas – projecto 3", integrado na Parte III, "Linhas/projectos de desenvolvimento para uma habitação humanizada", do estudo que realizei e que foi editado no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, com o título "Habitação Humanizada" (LNEC, TPI N.º 46, 2007).


Fig. 01

A ideia de uma cidade acolhedora
Quando penso em segurança urbana penso, imediatamente, num espaço agradável onde me sinta seguro, onde me sinta em paz; e, de certa forma, associo esta paz ao bem-estar. Integro, assim, como arquitecto e como habitante, a segurança e o bem-estar. Acho que o bem-estar urbano sem segurança não existe. E a segurança só por si pode até criar espaços excessivamente controlados.

A intervenção urbana deve visar a criação ou a reconstituição de uma cidade acolhedora, e esta qualidade tem a ver com o viver em conjunto, que é o assunto urbano fundamental.

E sobre estas matérias escreveu Gonçalo Byrne:

“A grande diferença da cidade para o edifício é que a cidade é uma obra que gera espaços compartilhados onde as pessoas estão condenadas a encontrar-se; é o espaço público. O facto de ser compartilhada justifica a gestão democrática, ou seja, a gestão que não exclui.” (1)

É fundamental que o urbanismo vise a construção ou a reconstrução de uma cidade acolhedora, que seja expressivamente amiga das pessoas e designadamente daquelas mais sensíveis e desprotegidas. Temos de fazer tudo para que as nossas cidades sejam amigas dos seus habitantes. Amigas no sentido da protecção e do apoio a quem nelas habita, e entre estes, privilegiando-se, naturalmente, os grupos sociais mais sensíveis e mais significativos, que são as crianças e o idosos.

Junta-se, em seguida, uma citação do pediatra Mário Cordeiro e do arquitecto Tiago Queiroz, que integra um excelente texto integrado no n.º 4 dos Cadernos Edifícios do LNEC (2), e que sintetiza bem os riscos e os benefícios da cidade, numa perspectiva que visa exactamente uma cidade humanizada e vitalizada, e uma cidade amiga dos habitantes mais sensíveis.

“O aparecimento e desenvolvimento das cidades representou um salto qualitativo na história da Humanidade, proporcionando, pela primeira vez ao ser humano, um espaço de tempo, tranquilidade, calma e «folga», associado à possibilidade de conservação de alimentos e de água, bem como de melhor defesa contra inimigos, predadores e catástrofes naturais.

O melhor ambiente vivido nas cidades teve um impacto muito positivo na saúde das populações, e a passagem de uma sociedade de «sobrevivência diária» para uma sociedade de relativa abundância trouxe com ela as profissões especializadas, as trocas comerciais, o intercâmbio de géneros, culturas e pessoas, a escolarização, as artes e ofícios e os pensadores, filósofos e políticos. As crianças, que anteriormente passavam imediatamente da infância à adultícia, ganharam, entre muitas outras coisas, o direito à adolescência.




Fig. 02

Actualmente, o conceito de cidade e a sua prática sofreram algumas disrupções, distorções e desvios, criando novos e intensos problemas, no cerne do qual estão os sistemas de transportes, a poluição, a perda de identidades e de sentimentos de pertença, e a descaracterização do espaço público, designadamente a «perda da rua» enquanto espaço lúdico, relacional e estético. As crianças e jovens são os primeiros, a par dos idosos, a sofrer com isso. Não se creia, contudo, que a culpa está nas cidades, mas sim na forma como por vezes estão a ser planeadas e geridas. As cidades são, para a população pediátrica, uma janela de oportunidade, e têm largos benefícios em termos culturais, sociais e de saúde.

Assim, o que há a fazer é rever criteriosamente, de uma forma transdisciplinar, quais são as necessidades do ser humano e de que modo as estruturas existentes lhes podem responder, sem recorrer a soluções tão demagógicas como ineficazes, do tipo «implodir para refazer de novo.»





Fig. 03

Redimensionar os espaços de habitação, a sua articulação e a multiculturalidade e carácter transgeracional, redimensionar os espaço comercial, lúdico e laboral, e fazer cada vez mais da cidade um aglomerado de «pequenas aldeias» (bairros), como ainda existem em tantas delas, em que as grandes deslocações sejam muito mais limitadas e os percursos a pé sejam privilegiados, em que as hipóteses de encontro de pessoas da família, amigos, vizinhos seja maior, em que os serviços de educação, saúde, sociais, etc, possam articular-se mais facilmente, poderá ser um desafio à nossa capacidade, mas ao mesmo tempo um desafio intelectualmente estimulante, com efeitos práticos de grande mais-valia, e que beneficiará as crianças e adolescentes de uma forma indelével. Há que reconhecer, evidentemente, o que está mal, mas condenar as cidades sem entender onde está o cerne da questão, poderá ser destruir uma das mais maravilhosas construções sociais que a Humanidade alguma vez produziu.”E Mário Cordeiro sublinha, assim, a importância da construção e reconstrução de vizinhanças de proximidade bem definidas e agradáveis, tornando-se a cidade um espaço estrategicamente mais compartimentado, apropriado, diversificado e atraente; um desígnio hoje urgente, tanto devido a aspectos de melhor identificação e controlo dos espaços que se habitam, como por aspectos essenciais ligados à vital melhoria da paisagem urbana.

É de grande importância considerar as cidades como espaços amigáveis relativamente aos seus habitantes. Por um lado é essencial que cada um, na sua vizinhança e no seu bairro se sinta rodeado por um espaço globalmente seguro, amigável e afectuoso, que se desenvolva em continuidade. Por outro lado é essencial que o critério de amigabilidade do espaço citadino habitável seja respeitador daqueles mais sensíveis a meios urbanos agrestes e perigosos. Logo, fica bem claro que os espaços urbanos e residenciais têm de ser desenvolvidos considerando-se os grupos sociais que mais carecem de protecção e de enquadramento, e nestes as crianças e os idosos sobressaem claramente.

Serão, assim, abordadas, em seguida, de forma breve, algumas facetas que se julga serem essenciais para a recuperação e para a redescoberta, por todos nós, do que pode ser uma cidade amiga, uma cidade que inspire confiança a quem a habita; são elas: (I) a cidade convivial e fisicamente acolhedora; (II) sobre o bom projecto urbano, (III) as questões de acessibilidade; (IV) a cidade da criança e do idoso, que é afinal, a cidade de todos; (V) a importância dos aspectos de gestão local; (VI) a relação entre reabilitação urbana e segurança pública; e, para rematar, (VII) a relação entre bom urbanismo e policiamento de proximidade ou comunidade.




Fig. 04

(I) Uma cidade convivial e fisicamente acolhedora

Joaquín Arnau (2000) (3) refere que “cidade deriva de civitas, que por sua vez deriva de civis: cidadão. Para os romanos, o cidadão chama-se assim porque a sua razão de ser é andar em grupo/companhia: coeso. O cidadão constitui a cidade: não o contrário “( p.24) … “Os homens coabitam porque convivem: vivem em comum. E colaboram: trabalham juntos” (p. 28)…

Mas, na verdade, e tal como lembra Eduardo Prado Coelho (2005) (4), “há cidades onde os dias morrem... Procuro um jornal num domingo em Lisboa. Nos domingos as ruas estão vazias... A cidade é uma cidade morta. Cada hora de uma cidade morta é uma hora morta. Cada minuto de uma cidade morta é um minuto que morre como um insecto à nossa frente... Há dias em que a cidade está adormecida e vai morrendo lentamente.”É fundamental desenvolver a vida e a afectividade nas cidades, que não podem ser apenas estruturas funcionais, têm de se humanizar, têm de ser sítios onde haja tempo e disponibilidades físicas que propiciem a estada e o convívio, só assim serão cidade efectivas e afectivas, tal como apontam Dusapin e Leclercq numa obra recente (2004) (5). E para se desenvolver uma efectiva afectividade citadina e residencial, o que constitui mais um aspecto crucial da humanização do habitar, é importante favorecer, como defende Larry Ford (2000) (6), “uma cidade com fachadas permeáveis e com grande variedade de acessos ao nível da rua, que é muito mais dinamizadora da vida cívica do que uma cidade caracterizada por estruturas do tipo fortalezas com paredes cegas e portas invisíveis”, porque “a vida nas ruas é definida e guiada pelas características dos edifícios envolventes.”Nestas matérias há que diagnosticar adequadamente os problemas, entre os quais se destacam: a congestão de tráfego; o crescimento urbano caótico; a decadência física; a existência de muitas pessoas desocupadas; o colapso institucional; e o aumento do crime.



Fig. 05

Alain Cluzet (2003) (7) defende a urgência de se reconquistarem as cidades como espaços humanizados e de vida, tanto no que se refere aos usos e morfologias, como nas próprias relações sociais. Mas para uma tal reconquista as cidades devem (re)qualificar-se como espaços devidamente cuidados e humanizados, aos mais diversos níveis, evidenciando-se aqui a grande importância dos aspectos básicos ligados, designadamente, ao conforto ambiental, com algum destaque para o conforto acústico (ausência de ruído incomodativo), ao mobiliário urbano adequado e à oferta de evidenciadas condições de limpeza, aspectos estes, que se podem considerar como de primeira linha na melhoria de uma qualidade urbana global e que são apontados num livro coordenado por Myron Magnet (2000) (8), que integra variadas temáticas e entre as quais se salienta, por exemplo: que : “o ruído elevado não é apenas um trauma, pode também provocar danos físicos irreversíveis” (Julia Vitullo-Martin, p.479); que “o facto de a cidade ser limpa dá ... um sentimento de que as coisas funcionam, de que a sociedade não está condenada, e de que existe ordem” (David Lowe, p. 418); e que “quando tivermos interiorizado a natureza profunda dos equipamentos da via pública como símbolos da ordem permanente instituída ao longo dos tempos, perceberemos como é importante a sua forma externa” (Roger Scruton, p. 415).”

E não tenhamos dúvidas que sítios ruidosos, sujos e vandalizados cooperam activamente no círculo vicioso da insegurança urbana.

Uma insegurança urbana que será reduzida, naturalmente, na medida em que mais pessoas usem com intensidade a vizinhança e o bairro.

Mas para isso o bairro tem de ter uma continuidade física, que actua como cenário protector, e uma intensidade de usos, que actue como verdadeira extensão da habitação de cada um, em sequências urbanas de proximidade marcados por equipamentos que estimulem o convívio: o café da esquina, a livraria, o bar, etc.; equipamentos estes - o inspirado “terceiro sítio”, ponderado por Ray Oldenburg (9) - que simultanemamente com este papel convivial proporcionam mais segurança pública, seja devido a essa mesma vitalidade urbana induzida, seja pela vigilância natural que desenvolvem nos espaços públicos contíguos.

Mas, como sabemos, muitos conjuntos residenciais não têm tais equipamentos, estando o piso térreo vazio de uma tal presença viva e protectora.

Aqui é necessário referir que a rua urbana com natural continuidade constitui o melhor cenário de integração para estes equipamentos, assegurando-lhes dinamização mútua, ritmo e concentração estratégicas e um alongado potencial de ligação com muitas vizinhanças residenciais.

E a rua equipada e estruturadora de um tecido urbano com continuidade serve também de ponto de encontro de diversos tipos de habitar e gostos de habitar, dinamizando proximidades entre diversos grupos sociais e etários, o que é condição acrescida de animação e, naturalmente, de segurança urbana.




Fig. 06

Mas a rua, como sabemos, teve ultimamente muitas das suas funções menorizadas, e muitas vezes quase desapareceu em soluções sem ruas, sem espaços de rua alongados, bem definidos e naturalmente bem controláveis por quem usa a rua; há mesmom um livro que coloca no seu título a questão: “O que aconteceu à Rua Principal?” (10)

O que aconteceu, frequentemente, foi a disseminação de blocos habitacionais em espaços exteriores mal definidos, que em vez das velhas esquinas urbanas ocupadas por lojas, têm muitas passagens entre edifícios e por baixo de edifícios, amplas extensões exteriores com usos pouco definidos e por vezes caracterizadas por péssimas condições de manutenção, grandes empenas sem janelas, que proporcionam sítios sem visibilidade sobre o que se passa na rua e, além de tudo isto, substituindo a escala da rua em que era possível mandar recados para as janelas das habitações, temos frequentemente blocos de grande altura, onde a partir de cerca do 6.º andar praticamente ninguém quer saber do que se passa lá fora.

Não seria necessário sublinhá-lo, mas tudo isto, que tem a ver com diversas soluções de urbanismo e, sublinho, de mau urbanismo, tem também a ver com a questão da segurança e insegurança urbana; ou por outras palavras com a questão essencial de nos sentirmos, ou não a habitar, verdadeiramente, com agrado e à-vontade a cidade onde moramos.

E nem há justificações económicas válidas para uma tal situação, pois também é possível fazer cidade densa e bem estruturada por ruas e outras soluções dinamizadoras do convívio, com edifícios mais baixos e mutuamente bem conjugados; acontece que esta possibilidade depende de uma melhor qualidade arquitectónica pois é mai difícil fazer cidade bem habitada do que um edifício isolado.




Fig. 07

E há, assim, todo um amplo catálogo de soluções arquitecturas densas, conviviais, bem habitáveis e naturalmente seguras, devido às relações visuais que proporcionam sobre os espaços públicos que rodeiam e aos quais dão forma e carácter; e este catálogo de pequenas ruas, de passagens e impasses, de pátios residenciais, de pracetas e praças urbanas e de variadas misturas de equipamentos e de tipos de edifícios de habitação, estão aí para serem usados, sem ser preciso aplicar, sistematicamente, as soluções de condomínios privados, até porque estas geram envolventes urbanas sem vida e portanto desagradáveis e potencialmente menos seguras.

Afinal, tal como escreveu António Pinto Ribeiro (2004) (11), “as praças são a razão de uma cultura democrática e a sua frequência é sintoma claro de democracia ... O condomínio (fechado)... representa uma cultura do ressentimento ... responsável pela exclusão da comunicação cultural com o outro...”



Fig. 08

E ainda nestas matérias importa sublinhar que a partir de uma estratégica mistura de ligações entre equipamentos e habitação - desde simples lojas a equipamentos maiores - e de misturas entre diversos tipos de edifícios com acessos privativos e directos ao exterior público, com acessos comuns amplos e bem situados e com pequenos quintais e pátios privativos bem marcados e visíveis ou com espaços públicos bem ligados à habitação, é possível fazer viver boa parte da envolvente do espaço edificado, tornando grande parte do respectivo exterior público que lhe é contíguo, um espaço também mais vivo e, e naturalmente mais acolhedor e mais seguro.

Mas, repete-se, se os edifícios de habitação estiverem isolados e forem tão altos que pouco têm a ver com o que se possa passar à sua volta, se os espaços exteriores não tiverem "princípio meio e fim", escapando-se como manchas de óleo entre esses edifícios, e se os próprios equipamentos funcionarem como elementos que, em vez de darem coesão à cidade, contribuem para a descontinuidade urbana: então não teremos cidade viva e as pessoas vão ficar protegidas nos seus apartamentos, entrando para eles directamente pelas garagens e ligando muito pouco ao que se passe lá fora.

A partir destas bases de análise, e citando especificamente Oscar Newman, já em 1984, Luís Soczka (12) sintetizava algumas condições que contribuem para o desenvolvimento de espaços habitacionais "defensáveis" e apropriáveis:

• capacidade do ambiente físico criar zonas de influência territorial, como tal claramente percepcionadas pelos residentes;
• capacidade do ambiente físico proporcionar a natural acção vigilante dos residentes;
• capacidade do ambiente físico influenciar a percepção da identidade colectiva dos residentes;
• e desenvolvimento de uma justaposição de "zonas de segurança" na área abrangida pelo respectivo conjunto urbano.

As partes (II) a (VII) serão editadas na próxima semana, integrando a segunda e última parte deste artigo.
Notas:(1) Inês Moreira dos Santos e Rui Barreiros Duarte (entrevistadores), “Estruturas de mudança - entrevista com Gonçalo Byrne”, Arquitectura e Vida, n.º 49, 2004, p. 51.
(2) Mário Cordeiro e Tiago Queiroz, “A cidade, a criança e a saúde, contributos para uma mudança de paradigmas”, Lisboa e LNEC, Cadernos Edifícios n.º4, “Humanização e vitalização dos espaços público”, Março de 2006.
(3) Joaquín Arnau, “72 Voces para un Diccionario de Arquitectura Teórica”, 2000.
(4) Eduardo Prado Coelho, “Dias mortos”, Público – O fio do horizonte, 25 Janeiro 2005.
(5) Dusapin, F. Leclercq., “Villes affectives, villes effectives“, 2004.
(6) Larry Ford, “The Spaces between Buildings”, 2000.
(7) Alain Cluzet, “Au bonheur des villes“, 2003.
(8) Myron Magnet (org.), “Paradigma urbano – as cidades no novo milénio (The Millennial City)”, 2001 (2000), pp. 479 e 415.
(9) Ray Oldenburg, “The Great Good Place : Cafes, coffee shops, bookstores, bars, hair salons and other hangouts at the heart of a community”, 1999 (1989).
(10) Kennedy Smith, “What Happened to Main Sreet?”, in Historic Cities and Sacred Cities – Cultural Roots for Urban Futures”.
(11) António Pinto Ribeiro, “Abrigos: condições das cidades e energia das culturas”, 2004, p.17.
(12) Luís Soczka, "Espaço Urbano e Comportamentos Agressivos – da Etologia à Psicologia Ambiental", 1984.


Infohabitar, Ano VI, n.º 281
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte, 17 de Janeiro de 2010

domingo, janeiro 10, 2010

280 - Uma cidade de vizinhanças conviviais - Infohabitar 280

artigo de António Baptista Coelho
Infohabitar, Ano VI, n.º 280
Nota: a ilustração deste artigo foi circunscrita a alguns exemplos de habitação de interesse social portuguesa que se candidataram ao Prémio IHRU 2008 de construção e reabilitação.
Série habitar e viver melhor, VIII:
"Uma cidade de vizinhanças conviviais"


Kevin Lynch defende que "qualquer boa cidade é um tecido contínuo e não um tecido celular; e, sendo assim, é possível eleger os seus próprios amigos e serviços e mudar de residência livremente...".

Há que comentar que esta é provavelmente, uma fundamental vantagem da cidade, e o mesmo autor, consequentemente, considera ser pouco adequado organizar a cidade, por exemplo, em torno de escolas básicas, pois os citadinos, muito frequentemente, fazem as suas compras num sítio, usam as escolas de outro, vão ao café noutro, etc. (1).

Mas, neste caso, dá vontade de comentar que há um sentimento especial de paz e de identificação que nos é dada por uma organização urbana estruturada, por exemplo, nesses moldes, nos “velhos” moldes das unidade de vizinhança, em que a vida parece poder-se fazer, calmamente, em torno a determinados estabelecimentos de ensino básico, em torno a determinados jardins e outros espaços de vizinhança próxima, e isto sem obrigatoriedades, pois será sempre possível a quem não os queira usar, usar outros noutros sítios da cidade. E e em situação inversa, quando não há uma indicação de vizinhanças funcionais, sociais e de lazer, então é que mais dificilmente será possível construir positivas relações de vizinhança, pois afinal não há uma estrutura física afirmada de uma vizinhança desenvolvida em torno desse(s) equipamentos(s) locais, de proximidade e mesmo de potencial convívio, e/ou abrigada e conformada por uma dada configuração, frequentemente côncava, do respectivo conunto de edifícios integradores dessa vizinhança.

Como afirmei, há alguns anos, num estudo realizado e publicado no LNEC (2), pode ser que a nossa vontade seja habitar/pernoitar apenas, ou habitar sem marcar não nos ligando, afectivamente, ao desenvolvimento de uma qualquer unidade bem caracterizada e afirmada feita entre edifícios e espaços exteriores contíguos de “vizinhança próxima” ou de proximidade, e é, naturalmente, importante que a solução de arquitectura urbana responda bem a esse legítimo gosto de razoável anonimato, que não obriga a convivências obrigatórias e que não impõe, nem até sugere, um qualquer protagonismo urbano, marcado por um qualquer destaque pessoal basicamente indesejado. Mas esta vontade de anonimato urbano não parece ser regra, enquanto muitas pessoas se ressentem, exactamente, do contrário, da ausência de possibilidades de estar e actuar afirmadamente fora de casa, mas junto dela, fora do edifício, mas estrategicamente perto dele, em espaços não excessivamente públicos, bem identificáveis, abrigados e globalmente bem apropriados. E é perfeitamente possível conciliar a frequente vontade de ter tais espaços de vizinhança com o desejo de viver em habitações que, estando fisicamente integradas nessas proximidades activa e afectivas, proporcionam, no entanto, grande e estratégica autonomia no seu uso e mesmo na sua imagem exterior; e podemos até referir que tais misturas são extremamente urbanas na diversidade de usos e de imagens que produzem.

Mas há que sublinhar que, tal como se apontou no referido estudo, que na altura relançou o conceito de “vizinhança próxima” – que tinha, anteriormente, apurado em estudos de engenharia de tráfego –, muitos de nós ou quase todos nós sentimos realmente necessidade de um espaço de transição entre o espaço predominantemente comum e encerrado do edifício que habitamos, espaço este muito ligado ao espaço privado do nosso fogo, e o espaço urbano vincadamente público. Quase todos precisamos desse equilíbrio transitório, dessa gradação bem caracterizada, dessa relação tantas vezes compensatória de insatisfações urbanas ou domésticas.

E precisamos desse espaço de Vizinhança Próxima, não muito público nem muito comum e delimitado, de uma forma alternativa, natural e assumidamente voluntária, protegendo as vontades de autonomia e anonimato, enquanto se estimulam com idêntica força e intenção as vontades de convívio, participação e mesmo de comunidade.


Fig. 01: conjunto de 21 habitações nas Fontainhas, Porto, promovidas pela C. M. do Porto, com projectos dos arquitectos Helder Ribeiro e Amândio Cupido (2007).

Nestas matérias é ainda fundamental evidenciar que certos grupos etários e socioculturais são extremamente sensíveis às potencialidades da “vizinhança próxima” ou da “vizinhança de proximidade”, tanto nos aspectos de grande autonomia como nos de forte convívio local e territorializado, basta lembrar as crianças e os jovens, por um lado, os idosos, por outro, e ainda todos aqueles que em casa encontram graves barreiras geracionais ou relacionadas com a diversidade das formações pessoais e culturais, problemas estes muitas vezes acentuados por condições espaciais e funcionais domésticas pouco desafogadas e adequadas.

E tal como tenho tido a possibilidade de sentir ao longo de mais de duas dezenas de anos de visitas a conjuntos habitacionais, é aqui, ao nível da “vizinhança de proximidade”, que mais se sente a presença ou a ausência de um exterior que também seja verdadeiramente espaço de habitar: um espaço exterior que possa ser habitável e que convide mesmo a ser habitado. E isto acontece, porque "à porta de casa" é possível fazer muita coisa, considerando-se desde as crianças mais pequenas aos mais idosos; e, globalmente, o nosso clima muito ajuda e estimula essa diversidade de actividades.

Importa ainda referir um outro novelo e aspectos nesta matéria, que se refere ao exterior de proximidade poder assegurar uma verdadeira ampliação do habitar doméstico sobre o exterior com uso público, com o natural enriquecimento global da qualidade do habitar que é assim proporcionada. E a importância de um tal enriquecimento não se circunscreve à disponibilização de mais espaços, de mais equipamentos, de mais alternativas funcionais e de mais possibilidades de convívio e mesmo de privacidade (pois é possível, desejável e excelente estar "sozinho no espaço público") e à natural "descompressão" que assim se proporciona, em termos funcionais e de privacidade. em habitações com áreas controladas.

Naturalmente que uma tal complementaridade de espaços habitacionais é extremamente valiosa, designadamente no caso de habitações espacialmente pouco folgadas, mas a oferta clara de uma rica dimensão de um exterior habitável ou de um rico habitar exterior á habitação e dela bem próximo - pensa-se aqui tanto nos exteriores como nos equipamentos de vizinhança - qualifica muito positivamente o sítio que se habita e de certa forma contribui, muito decisivamente, para a sua vitalização urbana e para a construção da sua identidade como sítio urbano onde se vive.

Nesta matéria há que ponderar que esta caracterização de vizinhança exterior bem identificada, viva e aliada das habitações e dos equipamentos de proximidade que nela se integram, também depende da existência de uma adequada continuidade urbana com o resto da cidade - continuidade directa/pedonal e através de transportes públicos pelo menos minimamente eficazes e confortáveis -, pois de outra forma a riqueza urbana das vizinhanças será sempre mais difícil de obter e de sustentar, obrigando a outros tipos de cálculos onde se entra com a possibilidade de se conseguir uma vida de vizinhança ou de bairro com alguma autonomia.
Na altura em que se desenvolveu o referido estudo (“Do bairro e da vizinhança à habitação”, ITA n.º 2, LNEC, 1998) em que proponho uma viagem comentada e sistemática no amplo “jogo da glória” diário que liga o nosso percurso entre o centro das cidades e os seus e nossos bairros e vizinhanças, um estudo em que se integram e divulgam opiniões técnicas de um muito amplo leque de estudiosos e projectistas, tinha acabado de realizar uma ampla viagem teórico-prática pela caracterização da qualidade arquitectónica residencial (“Qualidade arquitectónica residencial”, LNEC, ITA nº 8, 2000) e não tinha ainda desenvolvido o estudo das matérias ligadas à humanização do habitar. Actualmente, depois deste aprofundamento temático e de um número significativo de visitas a bairros e conjuntos habitacionais conseguimos ter uma noção mais real da grande importância de uma positiva qualificação das nossas “vizinhanças de proximidade”, os sítios que habitamos dentro e fora de casa; e, designadamente da importância que têm tais sítios e matérias para a criação de espaços urbanos e residenciais que contribuam, claramente, para uma nossa vida diária verdadeiramente mais funcional, agradável e estimulante.


Fig. 02: pormenor de uma das vizinhanças do Bairro da Boa Esperança, Beja, promovido pela empresa Hagen, com projecto do atelier de arquitectura Saraiva & Associados (2007).

Porque importa deixar, sempre, algumas pistas sobre a “fórmula mágica” que ajudará na criação de uma adequada vizinhança residencial de proximidade apontam-se, em seguida, diversas opiniões técnicas sobre o assunto, que tiveram por base a pesquisa que realizei para a elaboração do livro intitulado “Do bairro e da vizinhança à habitação” (ITA n.º 2, LNEC, 1998):
Chistopher Alexander indica que para as pessoas pertencerem a unidades espaciais identificáveis, baseadas no reconhecimento mútuo, na domesticidade/bom acolhimento ambiental, na segurança, no sossego e na identificação com o sítio (3), são necessárias vizinhanças com um máximo de cerca de 300m de largura/diâmetro e integrando não mais de 400/500 habitantes (4) (cerca de 100 fogos). Nestas vizinhanças Alexander defende que só deve existir tráfego local.

Kevin Lynch defende que as verdadeiras vizinhanças devem construir-se por grupos de fogos que encorajem as pessoa a serem mutuamente amigáveis, em parte porque vivem próximas; tais vizinhanças, defende este autor, devem ser muito mais da escala dos 10 aos 40 fogos do que as convencionais "unidades" na casa dos milhares.

Kevin Lynch defende, ainda, que os arranjos físicos podem ajudar na formação da vizinhança, especialmente se a população for socialmente homogénea, mas salienta que os factores de personalidade e de pertença a um dado grupo sociocultural são os mais influentes; e Lynch considera que as verdadeiras comunidades só existem quando os residentes compartilham interesses comuns e vitais de trabalho, crença ou comunidade familiar e/ou étnica: então, tal como indica este autor, a expressão física da comunidade tem sentido e a unidade espacial deve ser muito mais profundamente integrada do que numa vizinhança convencional (5).

Segundo Chirtopher Alexander, a análise estatística prova que são necessárias 54 crianças para que qualquer uma delas tenha grandes possibilidades (cerca de 95%) de contactar com outras cinco, que possam ser potenciais companheiros de brincadeiras (idades semelhantes e grupo desejável de "companheiros"); 54x4=216 habitantes : 3.4 habitantes/fogo = 64 fogos (número mínimo). Este número pode corresponder a unidades de vizinhança ou grupos de edifícios, que podem estar ligados, entre si, por terrenos comuns, caminhos e jardins e que, por sua vez, se componham de subgrupos residenciais mais íntimos (ex., 10 a 12 fogos), conjugados em torno de bolsas de terreno de jogos, livres do tráfego de veículos (6).


Fig. 03: conjunto de 64 habitações no Areal, Santa Maria da Feira, promovidas pela empresa Efimóveis em cooperação com a C.M. de S.M. da Feira, e com projecto do arquitecto J. J. Silva Garcia (2007).

Segundo Claude Lamure, "ao nível do edifício colectivo ou do conjunto de edifícios unifamiliares poderíamos ao menos reter as unidades de 10 a 20 famílias. A capacidade do homem para se localizar/reconhecer em grupos de 10 a 15 pessoas é citada pelos etologistas como geneticamente determinada ..., o homem caçador pré-histórico é também o jogador de futebol ou de rugby. Observámos realmente que nos imóveis com 10 a 20 alojamentos as relações de vizinhança são mais frequentes do que nas grandes torres. No entanto estes conjuntos de relações dentro de um grupo podem depender também da posição do sub-grupo num conjunto mais vasto" (7).

Com algumas opiniões do Eng.º Matos Cardoso (8) remata-se, agora, este conjunto de indicações, num sentido contrário, partindo da célula familiar como base e visando o desenvolvimento de contactos sociais entre as famílias, este especialista considera 3 grupos residenciais distintos: o pequeno agrupamento de habitações, 10 a 20 no máximo, onde as famílias constituintes devem ter interesses e níveis sociais e económicos semelhantes, que deverá possuir o seu espaço livre comum e situar-se preferencialmente numa rua de pequena extensão ou num recinto aconchegado; o grupo intermédio de 40 a 100 habitações, que ainda não admite misturas sociais, e que é o elemento básico de promoção da homogeneidade social, mediante a promoção de contactos frequentes, nomeadamente, em zonas comuns de reunião e convívio; é ainda de referir que este grupo deve caracterizar-se por um aspecto exterior uniforme; e o terceiro grupo constitui-se por integração dos anteriores e dá forma ao bairro composto por 400 a 500 famílias, admitindo, já, alguma heterogeneidade social e económica e é a base da unidade de vizinhança.
Naturalmente, que não se trata de aplicar quaisquer “fórmulas mágicas” que assegurem vizinhanças de proximidade verdadeiramente consistentes e motivadoras em termos sociais e individuais, mas o assunto tem tal importância para a criação de soluções residenciais mais satisfatórias, que importa ter em conta opiniões que, como estas, resultam de vidas dedicadas ao estudo destas matérias.
Nota editorial: embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.

Notas
(1) Kevin Lynch, "La Buena Forma de la Ciudad", p. 278.
(2) “Do bairro e da vizinhança à habitação”, ITA n.º 2, LNEC, 1998.
(3) Alexander refere o comentário de um habitante: "A vida da rua não se mete em casa...só entra a alegria da rua...tenho a sensação que a minha casa se estende a todo o quarteirão".
(4) Christopher Alexander; Sara Ishikawa; Murray Silverstein; et al, "A Pattern Language/Un Lenguaje de Patrones", pp. 95 a 98.
(5) Kevin Lynch, "Site Planning", p. 321.
(6) Christopher Alexander; Sara Ishikawa; Murray Silverstein; et al, "A Pattern Language/Un Lenguaje de Patrones", pp. 317 a 321.
(7) Claude Lamure, "Adaptation du Logement à la Vie Familiale", p. 74.
(8) Matos Cardoso, in "Colóquio sobre Urbanismo", Ministério das Obras Públicas, Direcção Geral dos Serviços de Urbanização, pp. 91 e 92.
Infohabitar, Ano VI, n.º 280
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte, 9 de Janeiro de 2010