segunda-feira, outubro 26, 2009

269 - Uma cidade atraente feita de densidades e imagens estimulantes - Infohabitar 269

artigo de António Baptista Coelho

Infohabitar, Ano V, n.º 269
Série habitar e viver melhor, VII:
Uma cidade atraente feita de densidades e imagens vitalizadoras


Nota inicial à presente edição deste artigo: o artigo que se segue corresponde a uma edição revista, comentada e significativamente complementada e re-ilustrada, de um artigo anteriormente publicado no Infohabitar, e que aqui é integrado na Série "habitar e viver melhor"; a ilustração é, no entanto, ainda genérica e indicativa, podendo vir a ser, posteriormente, realizada, em novas edições,numa opção mais desenvolvida e sistemática, que inclua um número significativo de figuras comentadas.

Segundo Christian Norberg-Schulz, o encontro implica proximidade e densidade em termos espaciais, e este autor defende, também, que o encontro - podemos dizer a convivialidade - decorre também da variedade, afirmações estas que muito longe nos levarão quando nos lembramos dos grandes conjuntos habitacionais repetidos até à náusea. E Norberg-Schulz sublinha que uma tal exigência de variedade obrigará, simultaneamente, a um cuidar específico da unidade e da caracterização, isto para que se garanta salvaguarde a, sempre fundamental, criação de uma totalidade, um lugar.

Há, assim, que aprofundar proximidade, densidade e diversidade na arquitectura urbana pormenorizada quando se pretende um espaço residencial e citadino convivial, um objectivo fundamental numa qualquer solução de habitar, mas vital quando as relações de sociabilidade e vitalidade nas vizinhanças próximas são dos principais meios que os habitantes dispõem para prosseguirem uma vida diária mais estimulante, como acontece quando estas pessoas têm poucos meios para procurarem tais condições longe dessas suas vizinhanças de proximidade; condição esta que de forma alguma põe em causa o papel estruturante destas vizinhanças próximas quando se trata de outros grupos sociais mais favorecidos.





Fig. 01: Realojamento da CM de Lisboa na Travessa do Sargento Abílio, Arq. Paulo Tormenta Pinto (2001, 91 habitações).

E, tal como se aponta acima, há que perseguir e aprofundar tais condições de densifificação e de diversidade urbano-residencial num quadro de cuidadosa unificação e estimulante caracterização das respectivas imagens urbanas de proximidade. E engana-se quem imagina que são objectivos opostos tais condições de diversidade e de unidade de imagens, ainda cumulativamente no tal quadro de uma densificação estratégica - porque muito cuidadosa e ao serviço de determinados e variáveis objectivos humanos e urbanos -, e estão aí muitas malhas citadinas coesas e estimulante e harmoniosamente diversificadas para provar que tais condições se podem aliar; mas aqui e como em muitas outras situações muito depende da qualidade e do avisado controlo de qualidade do projecto de arquitectura urbana pormenorizada, e uma qualidade que está muito mais além da "simples" qualidade quantitativa e "material".




Fig. 02: parte do grande, recente e bem vitalizado conjunto cooperativo do Vale Formoso de Cima em Lisboa, urbanismo de António Piano e Eduardo Campelo (2006).

É ainda Christian Norberg-Schulz que defende que a densidade não chega, naturalmente, para a criação dessa totalidade, sendo necessária uma afirmada continuidade urbana, uma continuidade marcada e enriquecida nas suas imagens urbanas ppelas referidas condições estratégicas de densidade e de diversidade; e, afinal, è nesta perspectiva que, tal como sublinha Norberg-Schulz, uma experiência urbana é muito frequentemente descrita com termos como: dentro, entre, sob, sobre, à frente, atrás, perto de; termos que indicam uma organização espacial variada, mas integrada (1).

A densidade está na ordem do dia: começou a estar na mente de muitos, há alguns anos, por razões talvez mais formais, ou talvez mais sociais, consoante a formação de quem sobre ela reflectia; e hoje em dia as razões ligadas à desvitalização urbana de tantos centros desertificados e de tantas periferias inacabadas e desterradas e ao evidente e sempre presente potencial de forte crescimento dos preços dos combustíveis, vão trazendo a densidade para a primeira linha das preocupações relativas a uma melhor cidade, mais agradável e mais sustentável, tantos em termos ambientais, como de qualidade de uma vivência mais intensa e funcional e formalmente mais rica.

É interessante pensar que o redescobrir da densidade aconteceu numa altura em que a www estava a marcar a nossa vida e as nossas redes de relações, possibilitando, exactamente, o "reinocastelo" ou o "aquário" individual de cada um (situações estas bem diversas de: reino ou de quaário/prisão), longe de quase todos os outros, fisicamente, entenda-se! Será que não foi uma certa nostalgia desse contacto físico e uma nostalgia que nunca o foi, verdadeiramente, num pequeno grupo de arquitectos urbanitas que terá feito renascer essa fome de densidade física e de verdadeiro espectáculo urbano, ainda antes dele ser funcional e economicamente necessário?

Estas questões da densidade têm muito a ver com toda a matéria da imagem urbana - matéria esta sempre menorizada na sua essencial importância (que merece urgentes e aprofundadas reflexões práticas) -, que, por sua vez, tem tudo a ver com uma verdadeira qualidade arquitectónica aplicada, cuidadosamente, ao desenho urbano de pormenor. O que significa que será, provavelmente, possível densificar mais do que o correntemente previsto, com ganhos habitacionais evidentes, em termos de proximidade a zonas centrais e vitalização e convivialidade na cidade, e também com ganhos para uma imagem da cidade mais rica, mais diversificada e estimulante. Mas para tal, e tal como já se defendeu nesta reflexão, não basta "um qualquer desenho de arquitecto", pois este patamar de resultados só será possível com a intervenção de uma Arquitectura muito bem qualificada e, simultaneamente, com exigentes e estratégicos controlos dessa mesma qualidade arquitectónica.



Fig. 03: conjunto de habitação de interesse social bem integrado no casco antigo de Barcelona, de Josep Llinàs Carmona (1995).

Naturalmente, todo um processo como este não é compatível com quaisquer tipos de soluções pré-feitas e repetidas de outros sítios, para outros sítios e para outros habitantes. Estas intervenções têm de ser "fatos" bem à medida e fatos de grandes alfaiates, é o mínimo que se pode exigir para acções que vão marcar e, desejavelmente, revitalizar e enriquecer, culturalmente, partes estratégicas da cidade central e periférica, e só assim se entenderá que em tais sítios, com tais tipos de objectivos e com um muito elevado e enquadrado patamar qualitativo, de perfil muito amplo, sejam eventual e "pontualmente" aceites aumentos das densidades correntemente aceites.

Todas estas condicionantes têm a ver com a exigência de que tais soluções redensificadas, terão de ter a arte e o engenho para, mesmo com mais densidade, não transigirem nos aspectos fundamentais de segurança, privacidade, acessibilidade, conforto ambiental no exterior e relação com a escala humana e serem mesmo elementos postivamente influenciadores de uma afirmada convivialidade e de um quadro de imagems urbanas atraente e coracterizador; e será até possível dizer que tais soluções de densificação devem ser, em boa parte, baseadas, exactamente, na necessidade de melhoria deste mesmo amplo e exigente leque de condições, por exemplo no que se refere a melhores condições de conforto ambiental e de segurança no uso dos espaços exteriores.

Passemos então, sinteticamente, em revista estes tipos de condições, que se considera poderem ser associadas a intervenções com densidades significativas.

Sendo este o caminho que é urgente seguir no fazer melhor cidade e melhor habitação, mais de que limites impostos pelo afastamento entre edifícios os aspectos a ter em conta devem privilegiar as condições mais adequadas de relacionamento entre a vida doméstica e a vida urbana, no espaço público, e nesta matéria uma importante limitação está na situação de as crianças perderem a percepção da proximidade do solo, desde que estando acima de seis pisos e Sidónio Pardal sublinha que, a partir desta altura, "diminui, de algum modo, a percepção telúrica da casa" (2); ora, perder-se esta percepção de ligação com a terra e com o espaço público deveria ser um elemento condicionador de uma equilibrada, mas afirmada, densificação da cidade.




Fig. 04, a Unidade Residencial João Barbeiro, Beja, de Raúl Hestnes Ferreira e Manuel Miranda (1984, 48 habitações).

Este enfoque no facilitar do uso das vizinhanças urbanas pelas crianças é fundamental pois liga-se a aspectos de melhor formação e socialização dos futuros cidadãos - uma condição que seria só ela merecedora de apurados cuidados de concepção residencial -, porque proporciona, através de uma tal possibilidade, um significativo potencial de conhecimento e de convívio natural entre os familiares dessas crianças (quando as acompamham e quando se visitam nas suas habitações), porque se associa a fundamentais aspectos de visibilidade e proximidade de segurança, a partir das habitações, relativamente aos espaços exteriores onde brincam as crianças, porque as condições mais adequadas para um uso intenso do exterior pelas crianças são, em boa parte, também responsáveis pela dinamização desse uso pelo amplo grupo dos cidadãos "seniores", e, finalmente, porque, considerando tudo isto assim se potenciam condições gçobais que estimulam o uso mais intenso dos exteriores residenciais e urbanos e o desenvolvimento de boas condições de segurança pública nas respectivas vizinhanças. Sinteticamente, zonas urbanas e residenciais mais densas, mais baixas e com afirmadas condições de continuidade e de identidade urbana serão, tendencialmente, zonas mais usadas, porque mais agradáveis, mais apropriáveis e mais seguras.



Fig. 05: o renovado conjunto portuense da Bouça de Siza Vieira e António Madureira; renovado e completado pela inicativa cooperativa (2006).

Há assim o renovar dos caminhos que nos levam para soluções urbanas não muito altas, mas que atinjam uma muito significativa densidade habitacional através de um desenho ele próprio denso e arquitectonicamente bem trabalhado. E nesta perspectiva há que sublinhar que uma zona com alta densidade e baixa altura proporciona um carácter urbano intenso e contínuo, com edifícios bem próximos uns dos outros (3), desde que não se prejudicando aspectos essenciais de conforto em termos de luz natural, ventilação e relativo sossego acústico. E é até possível referir que uma malha deste tipo será, potencialmente, muito agradável em termos de conforto ambiental, sendo, por exemplo, climaticamente muito adequada durante o Verão, através de sombras frescas porque tendencialmente contínuas e densas, podendo não ser a densidade sentida como excessiva em termos formais, porque se entenderá, directamente, a justificação climática dessas ricas e orgânicas densidades.

Os exemplos da arquitectura tradicional citadina portuguesa oferecem, naturalmente, um manancial praticamente inesgotável de soluções com este tipo de condições, mas atenção que não se está a fazer, aqui, nenhum manifesto revivalista, pois é possível e desejável fazer novo com tais objectivos específicos.



Fig. 06: a Baixa de Coimbra


Continuando a aprofundar esta ideia de mais densidade sem altura excessiva e visando-se o objectivo do desenvolvimento de espaços urbanos vivos e plenamente satisfatórios consideram-se, em seguida, alguns aspectos de imagem urbana e residencial de pormenor, muito influenciados por estudos ingleses nestas matérias (4).

A densificação deve suportar, fisicamente, uma condição de equilibrado e muito reduzido atravessamento de cada núcleo urbano, proporcionando-se um certo sentido de protecção física e psicológica de quem ali vive relativamente ao exterior urbano. Não se defende aqui a criação de ilhas, mas sim de espaços de vizinhança urbana cujas ligações privilegiadas à cidade sejam essencialmente dominadas pelos seus residentes, onde os veículos da envolvente não dominem e onde os estranhos possam ser naturalmente identificados e visualmente acompanhados, condições estas óptimas para um uso da rua intenso por crianças e idosos; e nesta matéria são óptimas as soluções muito densificadas e com grande número de vãos domésticos e até de espaços exteriores privados (pátios, quintais e eventuais acessos directos ao espaço público) bem relacionados com o nível da rua.

Há um conjunto de aspectos que sempre marcam soluções urbanas e residenciais que harmonizam densidade, identidade positiva, funcionalidade, vitalidade urbana, sentido de vizinhança e um conjunto de qualidades diversificado que podemos sintetizar na ideia de agradabilidade residencial (ex., sossego, equilíbrio de temperaturas, privacidade, segurança, boa gestão local, etc.); entre tais aspectos lembram-se, desenvolvem-se e e comentam-se, em seguida, aqueles que referi num estudo editado no LNEC em 1998 (5):

. Evitar o atravessamento integral da “nossa” zona residencial, tanto por veículos a ela estranhos (ruído, insegurança, poluição, incómodo nocturno devido aos faróis), como por caminhos pedonais com grande continuidade urbana (evitar contactos entre crianças e estranhos à área de residências); evitando-se, até, evidenciar as ligações ao “exterior” da “nossa” zona.

. Onde haja intenso movimento pedonal, a aproximação final a cada grupo de fogos (até cerca de 20), deve ser feita para servi-los exclusivamente; construindo-se, assim, um sentimento de pertença e de identidade que poderá ajudar a equilibrar alguns aspectos, eventualmente, menos positivos da densificação.

. As distâncias entre veículos e entrada do edifício habitacional devem ser cuidadosamente consideradas, harmonizando-se as desvantagens ambientais com as vantagens funcionais; e atenção que a densificação implica um potencial de uso rodoviário muito intenso e que só será possível privilegiar o peão, com êxito, se o estacionamento e o tráfegos de veículos estiver adequadamente resolvido.

. Os grupos de estacionamentos publicamente visíveis não devem exceder um determinado número de unidades em cada localização; caso contrário a paisagem urbana perde boa parte da sua qualidade.

. O recreio de crianças em espaços públicos deve merecer toda a atenção, constituindo-se, mesmo, em um dos elementos urbanos estruturadores das soluções; e atenção que em zonas densificadas esta questão tem de ser objecto de cuidados reforçados – e quem visite as “células sociais” de Alvalade, em Lisboa, com os recreios das suas Escolas Primárias e os seus jardins de vizinhança bem rodeados de habitação e sem tráfego de atravessamento entende como é bem possível respeitar esta condição.

. Desenvolvimento de espaços mistos (peões e veículos) agradáveis e atraentes ("amenity open spaces"), conjugando caminhos e acessos de veículos, áreas pavimentadas e ajardinadas, caracterizadamente multifuncionais e em favor do recreio livre e seguro das crianças. De certa forma e sinteticamente trata-se de fazer o espaço público residencial de vizinhança do habitar, no respeito dos seus condicionalismos próprios de durabilidade e de equilíbrio ambiental e paisagístico, mas caracterizados por uma amenidade e uma atractividade que estejam, claramente, ao serviço de um habitar o exterior, em segurança e com agrado, por todos os habitantes, sendo que as crianças são os habitantes mais exigentes. E atenção que a densificação obriga a cuidados específicos em termos de tipos de arranjos, durabilidade e gestão.

Referi no citado estudo do LNEC que o agrupamento de fogos sem ser em blocos contínuos e uniformes tem vantagens para a privacidade, para a redução do número de utentes por zona exterior equipada e para o consequente aumento da identificação com o sítio de residência.




Fig. 07: a Baixa de Coimbra


Mantenho esta ideia, mas clarifico-a sublinhando que a referência a “blocos contínuos e uniformes” corresponde às soluções em que se projectam edifícios repetidos e desligados dos seus sítios de implantação, enquanto, pelo contrário, é fundamental que a continuidade do edificado e a respectiva continuidade de espaços exteriores sejam projectadas em total integração. «Nada de mais, é assim que se deve fazer sempre!» - poderão comentar sobre este assunto; mas bem sabemos que entre o que se deve e o que se faz há grandes diferenças, e devemos ter a certeza que em qualquer caso e, muito mais, quando se pretende densificar um determinado conjunto, é essencial um projecto desenvolvido pormenorizadamente a três dimensões, que tanto configure, atraentemente, o edificado como formalize, adequada e amavelavelmente, os espaços livres que lhes são contíguos, uma opção que, por sinal, é também fundamental para se criarem espaços interiores e exteriores com melhores condições ambientais (insolação, ventilação, luz natural, resguardo acústico).

Finalmente, quando se densifica é essencial salvaguardar as questões de privacidade e, nestas, as relações com zonas pedonais são, habitualmente, críticas, devendo ser objecto de um cuidadoso projecto que assegure distâncias mínimas a vãos domésticos e a respectiva protecção, em termos de interposição de barreiras e de elementos de bloqueio da intrusão visual exterior.

Nestas questões de densidade é de grande importância considerar, por um lado, os aspectos de conforto ambiental e de microclima e, por outro lado, as questões ligadas à distância inter-pessoal, estudadas por Claude Lamure (6), pois muito de uma boa solução de densificação, ou muitos dos possíveis problemas com a densidade, têm a ver com uma dupla adequação: climática/ambiental, e social.

Para concluir, para já, esta breve reflexão sobre os aspectos de densificação urbana lembramos um interessante estudo de Bartolomeu Costa Cabral (7) onde este projectista verificou que a percentagem de ocupação da construção (8) é determinante para a definição do número de pisos. E este arquitecto, ao comparar as percentagens utilizadas em diversos empreendimentos realizados pela Federação das Caixas de Previdência durante os anos 60 com as que podem ser calculadas em zonas antigas, obteve valores muito diversos: 12 a 13% para as primeiras e 50 a 60% para as segundas.



Fig. 08, um pormenor do denso, agradavelmente contínuo e apropriável Bairro de Alvalade, Lisboa, urbanismo de Faria da Costa

Tomando isto em conta, Bartolomeu Costa Cabral continua o seu raciocínio considerando que todo o terreno livre tem de ter um destino definido e, assim, implica um custo que incide também sobre os fogos desenvolvidos; e conclui que um conjunto residencial será tanto mais económico quanto maior for o número de fogos e a sua percentagem de ocupação, valor este que, como refere Bartolomeu Costa Cabral, “tem de ser compatível com todas as necessidades de espaço livre”.

Um pouco mais à frente, no mesmo estudo (9), o autor aponta, referindo estudos ingleses, que “entrando apenas com certos «standards» de afastamento, as formas de maior «rendimento» são as de tipo páteo, seguindo-se as de tipo banda e por último a forma pontual, dado que permitem regressivamente maior percentagem de ocupação de solo.” E, logo a seguir, Bartolomeu Costa Cabral refere como aspectos limitativos da densificação as questões de estacionamento superficial, jogos e logradouro, “independentes das formas de agrupamento”.

Se nos lembramos que, na altura, havia uma forte limitação em todo este processo, por quase ausência de desenvolvimento de garagens subterrâneas de estacionamento, somos levados a concluir que há, hoje em dia, uma clara potencialidade de desenvolvimento de soluções densificadas, desde que aproveitando, e bem, os espaços e os equipamentos da cidade consolidada, cerzindo o espaço urbano e desde que tais soluções sejam feitas com uma qualidade arquitectónica verdadeiramente garantida, caso contrário nem vale a pena pensar em densificar pois os resultados podem ser verdadeiramente catastróficos; e o leitor acredite que não tenho quaisquer dúvidas nos benefícios potenciais d e uma cuidadosa densificação seja para uma cidade mais feliz seja para habitantes mais felizes, mas não podemos ter, neste caso, quaisquer dúvidas em termos da qualidade das intervenções pois há “em jogo” o bem-estar e mesmo a segurança de muitos habitantes e a viabilidade de partes estratégicas da cidade.

Para rematar, para já, esta matéria e lembrando a indicação de Bartolomeu Costa Cabral relativamente a soluções de agrupamentos residenciais densificados e com um significativo somatório de espaços de implantação de edifícios e de exteriores comuns ou privatizados, podemos afirmar que soluções deste tipo, para além de permitirem alturas baixas nos edifícios, com as vantagens acima apontadas, tornam praticamente obrigatório o tratamento dos exteriores (10), pois, afinal, acaba por sobrar “pouco” para o espaço público, e sendo pouco ele será quase obrigatoriamente bem tratado.

(1) Christian Norberg-Schulz, "Habiter", p. 55.
(2) Sidónio Pardal; P. Correia; M. Costa Lobo, "Normas Urbanísticas, Vol. II", p. 69.
(3) National Board of Urban Planning, "Bostadens Grannskap (Housing Environment), Recomendations for Planning".
(4) Greater London Council, "Low Rise High Density Housing Study".
(5) “Do bairro e da vizinhança à habitação”, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, ITA n.º 2.
(6) Claude Lamure ("Adaptation du Logement à la Vie Familiale", pp. 56 e 57) considera a seguinte tabela de distâncias interpessoais: íntima, de 0 a 0.50m; pessoal, de 0.50 a 1.25m, considerando-se que abaixo de 0.75m é possível agarrar alguém, simplesmente, estendendo-se os braços e que até 1.25m é sempre possível o apertar de mãos (cumprimento formal); social, de 1.25 a 3.50m, considerando-se que até 2.10m se situa a distância da conversa informal e da clara visibilidade da fisionomia dos parceiros de conversa, enquanto entre 2.10 e 3.50m de distância entre pessoas, as conversas tornam-se formais e a atenção abarca toda a silhueta humana e não especificamente a cara; e pública, acima de 3.50m; mas devendo, sempre, respeitar-se os limiares básicos de 1.25m (possibilidade de apertar mãos) e de 1.50m (2x0.75m), que é o limite de segurança mútua relativamente ao acto de agarrar o outro, estendendo os braços.
(7) Bartolomeu Costa Cabral, "Formas de Agrupamento de Habitação", pp. 18 a 20.
(8) Id. Ibid, p. 18 - “Percentagem de ocupação da construção: ou seja uma relação entre a soma das áreas de implantação dos diferentes edifícios e a área do terreno considerado.”
(9) Id. Ibid., pp.19 e 20.
(10) Claire e Michel Duplay, "Methode Ilustrée de Création Architecturale", p. 134.

Nota editorial: embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.



Infohabitar, Ano V, n.º 269
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte,
26 de Outubro de 2009Edição de José Baptista Coelho

Label: habitação, habitação humanizada, cidade humanizada

domingo, outubro 18, 2009

268 - Vivências e vivendas III - Notas sobre casas e quem as sonha - Infohabitar 268

artigo de António Baptista Coelho
Infohabitar, Ano V, n.º 268

Como foi referido no primeiro artigo desta série a ideia de escrever sobre "a vivenda", em termos gerais, mas essencialmente sobre os aspectos de humanização do habitar suscitados pela ideia de "vivenda", decorreu, directamente, de um óptimo artigo de Miguel Esteves Cardoso, intitulado “Vivenda Boa Esperança” e que foi editado no jornal Público. (1)

Lembrei-me, depois, de associar às palavras a editar sobre este assunto, algumas ideias com as quais abri, há poucos anos, um estudo realizado, publicado e disponível no LNEC sobre o título “habitação humanizada” (2), para o qual se poderão dirigir aqueles que queiram aprofundar estas temáticas.
E foi assim que, ao longo de três artigos, se apontaram algumas notas numa primeira aproximação um pouco mais "solta" sobre estas matérias do que aquela que se apresenta no referido estudo.

Estamos, hoje em dia, confrontados com uma serena, mas profunda, revolução das formas de habitar e dos conteúdos vivenciáveis, que estão a marcar e irão estruturar este novo século das cidades; e isto enquanto ainda nos debatemos com problemas críticos em termos de falta de qualidade de vida e especificamente de uma vida urbana que ligue, como tem de ser, uma habitação e uma cidade que sejam positiva e intensamente habitadas.

E assim, enquanto confrontados com a impossibilidade de habitarmos a ficção ou a realidade virtual, aqueles que continuam a insistir em viver a cidade e as diversas cidades que nela se integram, têm a responsabilidade de resgatar, "reabilitar" e aprofundar, estrategicamente, a importância dos sonhos do habitar - e a referência à estratégia liga-se ao habitar a cidade; isto embora tais sonhos sejam bem difíceis, face à destruição que continua a desenvolver-se das paisagens urbanas e rurais.

Mas atenção que tais sonhos habitáveis têm, obrigatoriamente, de transbordar dos nossos mundos domésticos e chegarem e marcarem, positivamente, a cidade habitada das vizinhanças e dos eixos urbanos, só assim tais sonhos serão viáveis.


Fig. 01

E, tal como fica bem expresso no seguinte texto de Manuel Blanco, mesmo o novo reino tecnológico continua, felizmente, a conviver com testemunhos fortes de um habitar expressivamente humanizado.

“Uma construção simples numa aldeia francesa permitiu a Herzog & de Meuron destilar a essência da arquitectura doméstica (Casa Rudin, Leymen), … E uma prenda em forma de casa pequena do norteamericano Robert Venturi para a sua mãe converteu-se na imagem mais reproduzida das últimas décadas no mundo da arquitectura (Casa Vanna Venturi, Philadelphia)…

No mundo doméstico apreciamos mais a intimidade e voltamos, uma e outra vez, à imagem da casa dos nossos sonhos. Nos anos sessenta, Robert Venturi ... um telhado de duas águas, uma grande chaminé e uma entrada como se tivera sido desenhada por uma criança marcava um dos ícones culturais mais significativos da segunda metade deste século...

Nas águas convulsas do final do milénio, Herzog & de Meuron voltam a destilá-la simples e completa, e o arquétipo reaparece na Casa Rudin, de Leymen. Parece que procuramos a segurança do conhecido...

Mas em paralelo voltamos a ter o excesso, de novo, herdeiro de S. Simeon de Hearst, magistralmente retratado por Orson Wells em Citizen Kane. O poderio da Microsoft reflecte-se na nova casa (ou palácio?) do seu dono, que responde à nossa voz e aos nossos mais pequenos desejos como se fora a gruta de Ali Babá e o génio da lâmpada de qualquer conto encantado... reconhece os convidados, recorda as suas preferências, temperaturas favoritas e as suas vidas ou transporta-os navegando nos seus grandes écrans aos limites do hiperespaço. É uma casa que se ocupa das nossas necessidades, levando ao limite o conceito de edifício inteligente, onde o importante não é a sua arquitectura...

A possibilidade de um isolamento conectado pode modificar de forma importante a ocupação do território na nossa sociedade. O teletrabalho, o teleshopping, os acessos rápidos a produtos culturais ou de diversão e escapa e a necessidade de espaço – cada vez mais caro e restrito nas nossas cidades – podem produzir uma retorno a meios naturais e a uma arquitectura dispersa. Et in Arcadia ego (e eu na Arcádia) ... Uma versão idílica de um mundo feliz onde a arquitectura e o espectáculo se misturaram com os nossos sonhos, onde o poder dos meios de comunicação criou novas estrelas que vão transformando, com outros monumentos, a nossa paisagem quotidiana.” (3)

Temos, assim, múltiplas ferramentas e embora elas estejam por todo o lado, e tenham inegável utilidade, voltamos, julgo que, felizmente, "uma e outra vez, à imagem da casa dos nossos sonhos"; haverá, assim, ainda, esperança para esse sonho e para tudo aquilo que ele nos proporciona de uma qualidade de habitar muito para lá da simples satisfação funcional.



Fig. 02
E sobre este vital caminho do aprofundar doméstico e urbano dos desejáveis sonhos de habitar, é oportuno reflectir sobre duas frases de Josep Muntañola, a seguir transcritas de um excelente livro deste autor (4), e onde se apontam a potencialidade da poesia e o ponto focal estratégico do habitar como meio privilegiado de pensar a Arquitectura:

Diz Muntañola que, “tal como indica e muito bem Ch. Norberg-Schulz citando Heidegger, é justamente através da interelação entre o construir, o habitar e o pensar que a arquitectura pode ser poética... «A poesia é aquilo que primeiro liga o homem à terra e assim o introduz no habitar», assinala Heidegger a partir de uma poesia de Hölderlin.”

E Muntañola sublinha, ainda, que, segundo Heidegger, “a poesia estrutura a natureza do habitar... Poeticamente o homem habita... Mas a capacidade poética só é possível se o homem se apropria enquanto homem afável, com «coração» (afectivamente), e reconciliado com o seu próprio habitar (kindness em inglês, charis em grego).”

Teremos assim um objectivo de criação de um melhor habitar, mais humanizado, através de caminhos específicos de poesia/afectividade, apropriação e provavelmente empatia de quem habita relativamente a um espaço habitado e desejavelmente sonhado, seja directamente, seja através dos especialistas desse sonho e da procura e identificação dessas empatias. E este processo tem de ser muito especialmente positivo, "dialogante", mas relativamente "passivo", quer nos aspectos de adequação a cada habitante e família habitante, o que nos leva naturalmente para fundamentais características de adaptabilidade, seja nos aspectos ligados à atractividade e ao sentido urbano e cívico, também necessárias nas estruturas do habitar.

Sobre esta matéria que trata de harmonias muito difíceis, mas essenciais, entre um habitar doméstico e urbano positivamente humanizado e sonhado, por cada um, mas igualmente bem marcado pelo sentido cívico apontam-se mais algumas palavras de Norberg-Schulz, que nos ajudarão a encontrar os melhores caminhos nesta essencial plataforma entre qualidade arquitectónica e satisfação profunda de quem habita casa e cidade, uma plataforma em que é necessário encontrarmos uma Arquitectura que sonhe alto, mas com os pés bem na terra, que marque bons desenhos para as gerações futuras terem testemunhos efectivos do seu passado, mas que, nas casas que faz e nas cidades que compõe, seja, também, verdadeiramente amável, compreensiva e amiga dos sonhos dos habitantes, pois só assim a habitação e a cidade habitada cumprirão o seu fundamental interesse social.




Fig. 03

Escreveu, então, Norberg-Schulz:

“Tentei demonstrar que a existência do homem depende do estabelecimento de uma imagem ambiental significativa e coerente do “espaço existencial”. Também assinalei que tais imagens pressupõem a existência de certas estruturas ambientais(ou arquitectónicas) concretas, recusando admitir que esses princípios perdem significado por causa da televisão e demais meios de comunicação rápida.

Que devemos então pedir ao espaço arquitectónico para que o homem possa continuar a designar-se como humano? Em primeiro lugar devemos pedir uma estrutura representável que ofereça abundantes possibilidades de identificação.

A tarefa do arquitecto é ajudar o homem a encontrar um sítio existencial onde firmar-se, concretizando as suas imaginações e fantasias sonhadas. Os conceitos de casa, cidade e país são ainda válidos. Dão um estrutura ao novo entorno «aberto» e tornam possível que possamos ser cidadãos do mundo.” (5)

E afinal parece que tudo isto tem muito a ver com "o arquitecto", que deve "ajudar o homem a encontrar um sítio existencial onde firmar-se, concretizando as suas imaginações e fantasias sonhadas!"

E ficamos com uma magistral definição de arquitecto:

"O arquitecto é um ser que caminha sobre a espuma das paisagens
e vive encantado pelas sombras que sobrevivem à flor da relva exactamente
no lugar onde as outras pessoas nunca passam
perguntam os mestres no cruzamento das traves onde
descansa o arquitecto curiosamente maravilhados pelo silêncio
que se desprende das paredes
consumindo a casa toda a partir do traço exacto
que descai do tecto
em direcção ao corpo
da terra
...
eis o arquitecto debruçado sobre a mesa com a aflição
dos guerreiros
...
o arquitecto é o abismo que atormenta o sonho"

Foram palavras do poeta José António Gonçalves.
Notas:

(1) Miguel Esteves Cardoso, “Vivenda Boa Esperança”, Jornal Público, 16 de Setembro, 2009.
(2) António Baptista Coelho, Habitação Humanizada – TPI 46, LNEC, Lisboa, Julho de 2006, 577 p., 121 fig; e Habitação Humanizada: Uma apresentação geral – Memória 836, LNEC, Lisboa, 2007, 40 p., 19 fig.
(3) Manuel Blanco, “Arquitectura fin de siglo – El mayor espectáculo del mundo”, GEO, Esp. , n.º 162, 2000.
(4) Josep Muntañola, Poética y arquitectura, Barcelona, Editorial Anagrama, 1981, pp. 59 e 60.
(5) Christian Norberg-Schulz, Existencia, Espacio y Arquitectura, Barcelona, Editorial Blume, trad. Adrian Margarit, 1975, p. 135.


Nota editorial: embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.

Infohabitar Ano V, n.º 268
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte
18 de Outubro de 2009
Edição de José Baptista Coelho

Label: habitação, habitação humanizada, arquitectura e satisfação habitacional

sábado, outubro 10, 2009

267 - Aplicações do Sistema Estrutural Tipo Árvore – SETA em programas funcionais com viés de interesse social - Infohabitar 267

Aplicações do Sistema Estrutural Tipo Árvore – SETA em programas funcionais com viés de interesse social: ocupação sustentável do uso em terrenos de difícil topografia

Artigo de Décio Gonçalves

Infohabitar, Ano V, n.º 267

Apresenta-se nesta edição do Infohabitar o artigo de um nosso novo colaborador da nossa revista o Doutor Décio Gonçalves que nos apresenta um tema inovador na concepção habitacional numa perspectiva de grande ligação entre os aspectos de concepção espacial e construtiva e com um impacto ambiental minimizado.

Damos as boas-vindas a este novo colega do Infohabitar, graduado em Engenharia mecânica e civil, Mestre e doutor em Arquitectura e Urbanismo, e esperamos que a temática por ele abordada possa ajudar no "velho" caminho do Grupo habitar, que sempre foi o de tornar a nossa revista, quer num espaço de divulgação plural, relativamente às muitas maneiras desejáveis no (re)pensar as temáticas da habitação e do habitar, quer num fórum cada vez mais alargado de encontro e discussão por parte dos muitos colegas do espaço da lusofonia, e neste caso, numa contribuição directamente enquadrada pela excelente FAUUSP.

Décio Gonçalves, é doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAUUSP, São Paulo – São Paulo, e-mail: dg@usp.br

No final do artigo anexa-se uma breve resenha curricular.

O editor do Infohabitar
António Baptista Coelho
Aplicações do Sistema Estrutural Tipo Árvore – SETA em programas funcionais com viés de interesse social: ocupação sustentável do uso em terrenos de difícil topografia

Artigo de Décio Gonçalves


Resumo
As Habitações de Interesse Social – HIS quando consideradas de forma conceitual e objetiva são destinadas às camadas da população de baixo poder aquisitivo. Lamentavelmente, nas grandes cidades brasileiras prevalece a improvisação, convivendo com um certo descaso da sociedade como um todo. O tema deve envolver e ser permeado por uma nova aproximação conceitual que privilegie uma cultura de valores voltada para conciliar avanço tecnológico e exercício da cidadania, ou seja, todo cidadão tem o direito a morar e viver com dignidade.

Este é o propósito do SETA, chamar a atenção para o tema, e de forma concreta, sugerir uma alternativa singular de concepção projetual e construtiva. O SETA tem esta pretensão, pondo à discussão uma resolução possível para se pensar e construir artefatos arquitetônicos com características diferenciadas, empregando material madeira, legal e certificada, de forma ecológica e sustentável. Este sistema estrutural modular e pré-fabricado necessita de apenas três pontos de apoio no solo, causando um mínimo impacto ao ambiente, requerendo exíguo espaço para canteiro de obras, reduzido número de equipamento e pessoal para o sistema de montagem, sendo que o prazo estimado para sua implantação é de 90 a 120 dias.


Abstract
Social Interest Housings - SIH, just thought in objective and conceptual contexts, are destined for the low-income people. Unfortunately, in the big Brazilian cities, prevails the improvisation of thinking about it, in a whole sense. The central theme has to involve and to be permeated with a new conceptual approach that privileges a valuable culture having the concern to put together technological advance and citizenship exercise, in other words, each citizen has the right to dwell and live in dignity. This is the purpose of the structural system, named SETA, to pay attention to the SIH issues, and in concrete way, to suggest a singular alternative of projetual and construction conceptions.
SETA has this intention as well, to put it right at possible resolution to think and construct architectonic artifacts with differential characteristics, using the legal and certificated wood material, in ecological and sustainable ways. This modular and prefabricated structural system needs only three support points on the soil, causing minimal impact to the environment, requires short space for the working area, reduced number of equipments and tools for the assembly system and the estimated time for its implementation is 90 to 120 days approximately.
Keywords: magazine, wood, architecture, engineering, structural system, social interest housings, citizenship exercise, hard topography lands.


1. Introdução

A realidade da ocupação urbana no Brasil, no que se refere às Habitações de Interesse Social – HIS reflete a tendência acentuada de localizar-se no entorno das grandes cidades em terrenos considerados difíceis (região de morros).
Sua característica predominante é alojar uma população de menor poder aquisitivo e carente de informações para reivindicar seus próprios direitos. Histórica e culturalmente resta a esta população os piores terrenos, devido aos seus parcos recursos financeiros e técnicos para construção de moradias.

Ainda que, a criação do Estatuto da Cidade em 2001 no Brasil tenha dado um alento à questão, constata-se que a maior parte dos empreendimentos para HIS carece de mínimas qualidades projetuais aceitáveis, nos seus mais variados aspectos, tais como: interferência no ambiente inadequada, flexibilidade e personalização projetual inexistentes, total falta de sintonia com os anseios e necessidades dos usuários.

Estas edificações são constituídas basicamente por três tipos de habitações: 1) simples barracos em favelas alocados nas encostas, em áreas invadidas sujeitas à desocupação judicial; 2) casas humildes desprovidas de um mínimo conforto, executadas pelo processo de autoconstrução, nos loteamentos ditos populares; 3) habitações uni ou multifamiliares construídas através de programas habitacionais com a participação do Estado. Via de regra, neste último tipo, de forma exemplar, os projetos arquitetônicos, pensados para implantações em terraplanos, são reutilizados ipse literis em terrenos ditos difíceis, acarretando desastres de grandes proporções, ocasionando prejuízos financeiros, além de irreparáveis perdas humanas.






Figura 1 – Desastre em encosta – Fonte: Farah (2003) (1)

Dentro deste panorama, seria redundante relatar o número crescente e alarmante de acidentes gerados a partir deste procedimento, causando, entre outros: 1) desastres nas encostas; 2) presença de solos erodidos, resultando assoreamento de fundos de vales e várzeas, criando assim, condições favoráveis de inundações nas baixadas.

A “entrega das chaves” passou a ser um simples ato sem nenhum comprometimento com as obrigações inerentes em relação aos usuários destas habitações. Esta “entrega” deve ser precedida pela interação de uma equipe multidisciplinar de suporte aos usuários, como: médicos (as), assistentes sociais, psicólogos (as), sanitaristas, técnicos (as) em construção e manutenção do artefato arquitetônico, entre outros. Além do mais, deve ser seguido de acompanhamento técnico através de avaliação da pós-ocupação – APO, eficiente e constante, tudo isto, visando às questões essenciais e primordiais, ou seja, a segurança e o bem estar destes usuários.
Este artigo propõe, como um objetivo geral, uma abordagem alternativa para este tema, que leva em consideração a concepção projetual de um programa funcional para HIS, que ausculte a necessidade, a vontade e o desejo do usuário; feita através da proposição do emprego de um sistema estrutural que utiliza um material renovável, como a madeira legal e certificada, portanto extraída de modo sustentável.

2. Metodologia

Definido o tema do SETA (sistema estrutural tipo árvore), foram iniciados experimentos no laboratório do LAME/FAUUSP para a resolução da questão proposta, através da elaboração de uma maquete inicial (sem preocupações dimensionais, apenas tendo o foco da configuração espacial que atendesse hipóteses e condicionantes colocadas). Concluída esta fase, partiu-se para a análise inicial do projeto estrutural, onde foram determinadas as dimensões dos elementos estruturais relevantes, como também verificada a estabilidade geral do sistema estrutural, e em seguida, elaboradas as respectivas representações gráficas.

Estabelecidas as dimensões básicas, foi confeccionada uma maquete final (baseada na inicial que já havia definida a configuração espacial do sistema estrutural) na escala 1:50, com varetas de plástico de quatro milímetros de diâmetro - que se aproximou da realidade dos cálculos estruturais estabelecidos nesta análise inicial: quatorze centímetros para a primeira laje e quinze para as demais lajes, inclusive a da cobertura (fig. 5).
A seguir, foram elaboradas maquetes específicas de elementos estruturais relevantes como o módulo, onde aparece o pilar, dito “diamante” de apoio [DA], a treliça espacial [TE] e demais elementos (fig. 3), bem como uma maquete na escala 1:25 de uma Residência unifamiliar (fig. 4)
.


Também, foi executada uma ligação metálica [LM], em plástico, na escala 1:10 para se ter uma ideia espacial da resolução de um elemento estrutural essencial ao sistema, onde são alojadas vinte e quatro barras em uma só ligação (as dimensões das [LM]s e os demais elementos constituintes faltantes, serão definidas na análise final) (fig. 6).

Estão previstos testes de laboratório com maquetes já com o material madeira e suas ligações metálicas em escalas convenientes, tomando-se como pressupostos teóricos, o texto do Professor Lobo Carneiro (1993) (2) da UFRJ, que trata da “análise dimensional e da teoria da semelhança e dos modelos físicos”. Neste estágio, prevê-se que os cálculos estruturais estejam concluídos em nível de análise final.

Para a realização destes eventos, estão sendo mantidos contatos com a Escola Politécnica da USP – EPUSP/LEM e Agência de Inovação da USP, pensando-se em um possível Pós-Doutorado, assim como, a construção de um protótipo através da parceria privada e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, via Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica - PITE.
3. Características do seta: especificidades que potencializam o seu uso para HIS



Figura 2 – Concepção dos pilares: Obra: Sagrada Família – Fonte: INSTITUTO TOMIE OHTAKE (2004) (3)

3.1Concepção projetual

O projeto do SETA foi pensado segundo abordagem que privilegiou uma Arquitetura que tivesse sérias preocupações com a Natureza, sua preservação e que causasse o mínimo impacto ao ambiente. Para tal, tornou-se fundamental a escolha de um sistema construtivo que atendesse tais requisitos, a começar por ter poucos pontos de contato com o solo, fosse um sistema modular, pré-fabricado, dotado de racionalidade construtiva, e empregasse um material renovável no seu elemento constituinte mais relevante (a estrutura), e também, confortável ao tato. Ao mesmo tempo, exigisse o menor dispêndio de energia para o seu processamento, recaindo a escolha na madeira legal e certificada (entendida como de origem legal e com certificação pelo IBAMA, através de selo verde, atendendo as normas do FSC – Conselho de Manejo Florestal).

Colocadas todas estas hipóteses e condicionantes, além de outras, o sistema estrutural ideal escolhido foi o que remeteu a imagem metafórica da árvore, fazendo-se alusão à obra do Arquiteto catalão Antoni Gaudí, na obra Sagrada Família, em Barcelona na Espanha.

Outra característica projetual relevante é a questão dos aspectos bioclimáticos envolvidos na concepção deste sistema estrutural, entre outros, a aeração natural, que em função das características específicas (vazios) do sistema estrutural projetado. Este sistema é composto por planos de laje [PL] com envergaduras superiores a 30 m (fig. 5), sustentados por três pilares, “diamantes” de apoio [DA], caracterizando as três treliças espaciais [TE], que ligam estes “diamantes”, resultando assim a aeração natural, tanto no aspecto da ventilação cruzada [1], quanto do efeito “chaminé” [2] (fig. 3).




Figura 3 – Módulo do SETA na escala 1:25 – Foto do LAMEM/FAUUSP – (setembro de 2007)


3.2 Caracterização da Tecnologia

Função da Tecnologia

O SETA é uma estrutura espacial que possui um design diferenciado das estruturas normalmente utilizadas. Ela tem por principais características ser modularizada, ser feita em madeira e poder ser implantada em terrenos de declividade variada.

O fato de a estrutura ser modular possibilita a otimização do processo de montagem de mega-estruturas, pois requer espaços exíguos no canteiro de obras, redução da mão de obra não especializada e não há a necessidade de uso de equipamentos pesados. O desenho desse sistema estrutural é singelo por possuir estruturas de sustentação e nós (I) particulares, além de possibilitar a aplicação da estrutura em terrenos de alturas variadas, já que as colunas ajustam-se em função de diferentes declividades do solo, como mostrado na fig. 4.




Figura 4 – Detalhes de modelo de construção utilizando SETA – Fonte: foto do autor (2007)

Figura 5 – Maquete na escala 1:50 da concepção do sistema estrutural – Fonte: foto do autor (2009)



Figura 6 – Maquete de uma ligação metálica na escala 1:10 – Fonte: foto do autor (dezembro de 2007)



Figura 7 – Maquete digitalizada pelo Engenheiro Marcos Monteiro, autor do projeto estrutural, em nível de análise inicial (2005)

As ligações metálicas [LM] (fig. 6) transladam os esforços nas barras, de maneira a simular, as fibras dos componentes de uma árvore (no caso da árvore, nós rígidos, enquanto que, nas treliças espaciais, nós articulados). Desta forma, possibilitam que estes esforços sejam contínuos ao longo da estrutura, resultando em reduções das dimensões das peças, trazendo como conseqüência, uma esbelteza das formas da estrutura (os comprimentos das peças de madeira são no máximo de quatro metros, para compatibilizar com os comprimentos das carrocerias usuais de caminhões).


Estas ligações apresentam-se como um dos elementos constituintes do SETA de maior relevância na função desta tecnologia, pois tornam possível uma configuração espacial do sistema estrutural agradável ao olhar e essencialmente lógica.

Esta constatação pode ser notada na fig. 7, uma maquete digitalizada deste sistema estrutural, resultado de um pensar sob o enfoque da aparência orgânica da árvore, de forma metafórica, apresentando nuanças plásticas das mais variadas de: leveza, fluidez e ritmo, isto graças a sua concepção, permeada de racionalidade e simplicidade projetual e construtiva.


3.3 Maquetes físicas e modelos reduzidos
As maquetes físicas (ou simplesmente maquetes, a menos que se refira neste artigo às digitalizadas) e os modelos reduzidos foram desenvolvidos em escalas convenientes, com dimensões já definidas em projeto estrutural, em nível de análise inicial, resultando a estabilização geral do sistema. As dimensões dos elementos principais da estrutura foram calculadas pelo Engenheiro e Professor da E. E. MAUÁ/SP, e titular da firma PLANEAR ENGENHARIA, Marcos Monteiro, através do software MIX, nacional, desenvolvido pelo Engenheiro Sérgio Pinheiros de Medeiros, com larga aceitação nos escritórios de projetos estruturais, e segundo a NBR 7190 de agosto de 1997 – Projeto de estruturas de madeira (1997) (4).

Cabe aqui uma abordagem, ainda que rápida, devido ao próprio propósito do artigo, das especificidades complexas que envolvem trabalhar-se com modelos físicos com finalidades de aferições de propriedades físicas em testes de laboratório.
Recorre-se ao Professor Lobo Carneiro como suporte teórico para esclarecer boa parte desta complexidade que envolvem aspectos relacionados à modelagem, suas interações, similitudes ou mesmo desvios quanto aos resultados definidos em cálculo que pressupõe a aplicação da escala 1:1. Iniciando com o conceito fundamental, o da homogeneidade dimensional. Lobo Carneiro acentua que: “O princípio da homogeneidade dimensional consiste em que toda equação que exprima uma lei física ou descreva um processo físico deve ser homogênea, relativamente a cada grandeza de base. Desse modo, essa equação continuará válida, se forem mudadas as magnitudes das unidades fundamentais”.

Segundo este Professor, quando se trata de análise dimensional, “adota-se comumente a forma explícita em que uma das variáveis, a variável dependente, é a incógnita do problema”. Enfatiza, também em seu texto que, mesmo que a análise dimensional seja incapaz de descobrir a formulação completa da lei física, ele provê indicações valiosas “sobre combinações dos parâmetros envolvidos, de modo a reduzir o número de variáveis a incluir nas equações”. Continuando, afirma que “se dois processos físicos são semelhantes, é possível prever o comportamento de um deles quando é conhecido o comportamento do outro”. Lobo Carneiro vai mais além, quando escreve: “Na experimentação por meio de modelos, os dois processos físicos semelhantes são o protótipo e seu modelo; neste caso, utiliza-se o modelo por ser mais fácil ensaiá-lo em laboratório do que ensaiar diretamente o protótipo”. De seu texto apreende-se, também que, a primeira condição para esta abordagem, é a semelhança geométrica, apesar de não ser esta em si suficiente, pois “um modelo não é simples maquete”.

No desenvolvimento do SETA, foi executada uma maquete na escala 1:25 como prova, entre outras, da possibilidade do sistema atender diversos programas funcionais, no caso, uma Residência unifamiliar de 385 m2 (fig. 4), com a resolução de vedos internos e externos em dry-wall.

Neste estudo de caso foram empregados beirais de 1,20 m que protegem a estrutura das intempéries de forma adequada, pisos (internos: tábuas largas, e externos: placas moduladas de concreto leve), fechamentos com caixilhos de madeira em vidro e venezianas, e trama geométrica estrutural de 1,20 m na forma de triângulo equilátero, entre outros.
O SETA remete através das ramificações verticais sucessivas, a imagem da aparência orgânica da árvore, possibilitando atingir-se, sob o enfoque de uma abordagem nova, em que:

. Cargas horizontais provenientes primordialmente dos ventos sejam estabilizadas pelo conjunto de treliças espaciais dispostas segundo um triângulo equilátero, portando os esforços escoam ao longo dos lados desse triângulo;
. Grandes vãos (superiores a 12 m) entre pilares, adequados a suportar estruturas de porte.

Além destas características que o diferenciam, segundo Dias (2008) (5): “O SETA tem um grande potencial de gerar recursos no mercado de créditos de carbono, e ser registrado como uma tecnologia limpa na Organização das Nações Unidas - ONU, uma vez que a utilização de madeira na construção é uma garantia efetiva de sequestro de carbono pelas plantas”.

Resultou deste projeto, o Pedido de Patente depositado junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI sob no P.I. 0.600.454-7 com o título “SISTEMA ESTRUTURAL MODULAR TIPO ÁRVORE”, em 27/01/2006, do qual a Universidade de São Paulo - USP figura como Titular.

Também desenvolveu-se, uma Tese de Doutorado (defesa em 12/12/2007) na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP - FAUUSP sob a orientação do Arquiteto, Professor e Doutor Arnaldo Antonio Martino, cujo título é “SISTEMA ESTRUTURAL TRELIÇADO MODULAR EM MADEIRA – SET 2M.

A par desse fato, o referido Projeto foi encaminhado pela Agência de Inovação da USP para a sua inserção no Programa de Investigação do Estado de São Paulo – PIT/SP, sendo que o Relatório de Investigação da Tecnologia foi concluído em setembro de 2007.

O mesmo sistema foi premiado em Concurso Público Federal pelo Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – CONFEA, sendo a certificação ocorrida durante o WORLD ENGINNER’S CONVENTION 2008 – WEC 2008
(2-6 dezembro de 2008). A segunda parte do prêmio prevê a participação em evento correlato no território nacional em 2009 (o autor optou pelo CTHab´ 2009, a realizar-se na cidade de Florianópolis, em novembro).


3.4 Representações gráficas do SETA – Programa funcional HIS

Esclarece-se que, na banca de Qualificação da Tese do autor, realizada com a presença dos Arquitetos Arnaldo A. Martino (orientador) e Marcos Acayaba, ambos da FAUUSP, e do Engenheiro Nilson Franco do IPT/SP, foi recomendada à elaboração de provas com programas funcionais, pois a concepção em si do sistema proposto atendia aspectos da área da Engenharia, enquanto elemento essencialmente estrutural, mas não caracterizava o viés de Arquitetura, com toda a tensão que o termo carrega, além do que, o Doutorado era em Arquitetura.

Para tornar factível essa demanda foram pensados cinco estudos de casos: 1) Estudo de caso I: “Residência unifamiliar” com dois pavimentos mais a cobertura, com área construída de 385,70 m2 (fig. 7); 2) Estudo de caso II: “Residência multifamiliar” com dois pavimentos mais a cobertura, área construída 815,70 m2; 3) Estudo de caso III: ”Pousada” com dois pavimentos mais a cobertura, área construída de 815,70 m2; 4) Estudo de caso IV: “Residência unifamiliar térrea II”, com um pavimento mais a cobertura, área construída de 192,80 m2 e 5) Estudo de caso V: “Residência unifamiliar térrea I” com um pavimento mais a cobertura, área construída de 188,90 m2.

Para contextualizar este artigo, foi escolhido o Estudo de caso II, acrescentando-se mais um pavimento para comportar maior aproveitamento de células habitacionais (nove no total), fazendo com que sua área total atinja algo em torno de 1.200,00 m2 (áreas: úteis + comuns). Esta decisão foi em função de sua interface com o tema das Habitações de Interesse Social – HIS, tão caro às Universidades de Arquitetura e Engenharia.

A seguir, seguem algumas pranchas digitalizadas do projeto arquitetônico, enquanto Estudo de caso II, contendo dois pavimentos tipos mais a cobertura (a Residência multifamiliar – para HIS, foco deste artigo, prevê três pavimentos mais a cobertura, sendo que o pavimento tipo é comum a ambos os estudos de casos):


Figura - 8


Figura - 9


Figura – 10


3.5 Maquetes do SETA do programa funcional: Residência multifamiliar para HIS
Foram confeccionadas duas maquetes para este programa funcional (fig. 11): à esquerda, um SETA (módulo estrutural) com três pavimentos mais a cobertura na escala 1:100 e à direita, uma implantação com três SETA´s na escala 1:1000.


Figura 11 - Maquetes das HIS – Fonte: Foto do autor (Junho 2009)


4.Madeira legal e certificada: de uso predominante no SETA
O material empregado no SETA é a madeira legal e certificada (além dela, apenas o aço está presente, pois constitui as ligações metálicas) proveniente de reserva renovável, sendo que sua produção contribui para a melhoria ambiental, além de ser, um material orgânico, agradável ao tato e confortável ao ser humano.

As florestas, das quais provêm à madeira, sequestram o gás carbônico durante a noite e o devolvem durante o dia na forma de oxigênio, minimizando as conseqüências danosas ao meio ambiente do efeito estufa (aquecimento da temperatura da crosta da Terra com o passar do tempo devido, prioritariamente, às atividades humanas desordenadas).

A madeira é provida de qualidades de excelência para construções civis, dotada de características únicas de aplicabilidade, pela sua facilidade de manuseio e alto índice de trabalhabilidade, apresentando, apesar de sua densidade diminuta em relação a outros materiais, grande resistência mecânica.

Embora suscetível ao apodrecimento e ao ataque de organismos em circunstâncias específicas, a madeira tem sua durabilidade natural prolongada quando previamente tratada com substâncias preservativas.

Deve ser salientada, neste ponto, a relevância do projeto estrutural ser desenvolvido de modo a serem previstos detalhes construtivos que garantam maior durabilidade do material empregado, evitando-se a exposição excessiva aos raios solares e à chuva.

Com relação à resistência ao fogo, apesar da madeira ser considerado um material inflamável, quando apresenta dimensões superiores a 25 mm ela é mais lentamente consumida pelo fogo. Isto ocorre porque, quando o fogo atinge a madeira destrói rapidamente a superfície, formando uma fina camada de compostos resistentes ao fogo que retarda sua propagação em direção ao interior da peça, fazendo também com que o incêndio perca velocidade.

Com relação à tecnologia em si, na etapa de projeto já é possível visualizar uma vantagem do sistema, pois seu design favorece a distribuição de esforços, de forma a diminuir o número de apoios necessários. Além disso, ainda nesta etapa, na realização dos cálculos estruturais verifica-se que a estrutura possui menor peso, o que acarreta em fundações menos robustas.

Como se pôde ver, até então a tecnologia, além de uma inovação de produto pode ser observada como uma inovação de processo, dado que este processo de montagem é muito particular frente o das tecnologias similares. Em comparação ao processo padrão realizado pelas tecnologias similares, a mesma requer pouco espaço no canteiro de obras, isso porque os módulos da estrutura podem ser transportados em pallets (II), o que ocupa menos espaço no veículo de carga.

A quantidade de mão de obra não especializada (operários) pode ser diminuída. Contudo, faz-se necessário ao menos um profissional carpinteiro no canteiro de obras. A quantidade de equipamentos no canteiro de obras também é reduzida, dado o menor peso da estrutura, o que exclui a necessidade de tratores e máquinas de içamento pesadas, sendo necessária apenas uma pequena grua (guindaste menor, mais simples).

Além disto, a madeira possui grande flexibilidade ao meio ambiente, apresentando possibilidades de aproveitamento, com perda irrelevante de material nas reformas e ampliações, além de um fator altamente relevante - a baixa demanda de quantidade de energia para a sua extração e processamento quando comparado a outros materiais. Segundo o Arquiteto Murcutt (2003) (6):

Nós estamos caminhando para um ponto no qual, dentro de vinte e cinco anos, onde tudo o que projetarmos, terá que ser pensado em termos de seu impacto sobre o meio ambiente. Necessita-se de 1 (um) quilojoule para produzir 1 (um) quilograma de madeira serrada e, 5 (cinco) quilojoules para uma madeira trabalhada (como por exemplo, uma cadeira). Necessita-se de quarenta e dois quilojoules para produzir 1 (um) quilograma de aço e 140 kg (cento e quarenta), para produzir 1kg de alumínio.
Apesar de todas estas especificidades que fazem da madeira um excelente material nas construções civis, seu emprego no Brasil é pífio, em relações aos países ditos desenvolvidos.

Para se ter uma noção do emprego racional da madeira, segundo Freitas (1982) (7) em termos construtivos, comparativamente em relação à situação das construções em madeira no Brasil e no mundo, por exemplo, nos EUA e Canadá, 90% das habitações isoladas são construídas em madeira. No Japão, (1986) (8), conforme pesquisa, 77,4% do total de unidades habitacionais foram construídas com estrutura de madeira. Para o mesmo ano, 81,5% das novas unidades de casas isoladas e geminadas foram construídas em madeira.

5. Conclusões
Pelo exposto, tem-se a pretensão de afirmar que o SETA se apresenta como uma interessante alternativa para aplicação na temática que envolve as HIS. Esta suposição se fundamenta nas características projetuais singulares, na relação custo benefício adequada, bastando lembrar que em se aplicando o conceito Rendimento estrutural da construção (R), definido pela relação: área construída (m2) por material madeira empregado (m3), (R) é da ordem de 14,50. Isto significa que são necessários apenas 1 m3 de madeira para se obter 14,50 m2 de área construída.

O SETA tem especificidades singulares para se pensar em HIS de forma racional e ecológica, competindo em condições, no mínimo, em pé de igualdade com os materiais usuais de mercado: concreto armado, concreto protendido, aço, entre outros. Foram aferidos custos por m2 de estrutura (material + mão de obra): madeira = R$ 363,23 e o aço = R$ 353,70 (levantamento de junho de 2007). Estes valores mostraram-se compatíveis, apesar do preço do aço já se encontrar nos dias atuais em patamar de economia de escala, o que ainda infelizmente não ocorre com a madeira, quando considerada para uso em sistemas estruturais.

Deve-se também considerar neste processo, todo o envolvimento de fatores ecológicos, bem como a inserção do artefato arquitetônico no solo, se verificar através de somente três pontos de apoio. As montagens dos elementos constituintes do SETA processam-se através da utilização de: 1) recursos simples, exigindo equipamentos e ferramentais disponibilizados correntemente no mercado da construção civil; 2) equipe composta por um número reduzido de pessoal; 3) prazo de execução exíguo (da ordem de 90 a 120 dias), devido às suas características projetuais de concepção e de construção.

Possibilita o completo reuso da estrutura em outros locais, dependendo das conveniências pública ou privada, com exceção dos elementos de concreto fixados no solo. Salienta-se, também, que o SETA, insere-se no conceito que para se pensar e construir uma obra de qualidade com baixo custo de construção deve-se introduzir altos níveis de racionalidade e criatividade na concepção do espaço e da construção.


6. Notas

(I) Nó é um elemento da construção que tem por função reunir e fixar os componentes longitudinais da estrutura (as arestas).
(II) Pallet é um estrado de madeira, metal ou plástico que é utilizado para movimentação de cargas. A função do pallet é otimizar o transporte de cargas, que é conseguido através da empilhadeira e a paleteira.


7. Referências bibliográficas

(1) FARAH, Flavio (2003). HABITAÇÃO E ENCOSTAS. São Paulo: Publicação Instituto de Pesquisas Tecnológicas – IPT/SP, São Paulo.
(2) LOBO CARNEIRO, (1993), Fernando. Análise Dimensional e Teoria da Semelhança e dos Modelos Físicos. 2a. Edição, Editora UFRJ, Rio de Janeiro.
(3) INSTITUTO TOMIE OHTAKE (Org), 2004. GAUDÍ: A PROCURA DA FORMA. Instituto Tomie Ohtake. São Paulo.
(4) NBR 7190 (1997). Projeto de estruturas de madeira. Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, Rio de Janeiro.
(5) DIAS, Susana (2008) SETA – tecnologia que une chance de lucro e preocupação socioambiental. In: Revista CONECTA da ciência ao mercado, Programa de Investigação Tecnológica – PIT/SP, São Paulo.
(6) MURCUTT, Glenn (2003). A dialogue with editor: interview. GA Global Architecture –houses. Tokyo, n.75, p.8-15.
(7) FREITAS, A.R. de (1982). Potencial de utilização de madeiras em construções. In: ENCONTRO BRASILEIRO EM PRESERVAÇÃO DE MADEIRAS. São Paulo, Anais... São Paulo: ABPM.
(8) JAPAN, Ministry of Construction (1986). Housing in Japan '86. Tokyo: Ministry of Construction.

8. Bibliografia básica
(1) CARNEIRO, Fernando L. (1980). Galileo e a Teoria da Semelhança Física. Seminário Internacional 350 Anos dos Discorsi Intorno a Due Nuove Scienze, de Galileu Galilei, São Paulo, Marco-Zero e COPPE/UFRJ.
(2) LANGHAAR, H.L. (1965). Dimensional Analysis and Theory of Models. New York, Johs Wiley & Sons.
(3) NATTERER, Julius. (1998). Construire en bois II. Lausanne, Suisse, Presses Polytechniques et universitaires.
(4) OTTO, Frei. (1985). Architecture et BIONIQUE: constructions naturelles. Éditions Delta & Spes.
(5) PALÁCIOS, J. (1960). Analyse Dimensionale. 1a. Ed. Paris. Guthier-Villars.
(6) PFEIL, Walter; Michèle. (2003). Estruturas de Madeira. 6. ed. Rio de Janeiro: LTC.
(7) REBELLO, Yopanan Conrado Pereira. (2000). A Concepção Estrutural e a Arquitetura. São Paulo: Zigureta.
(8) VASCONCELOS, Augusto Carlos de. (2000). Estruturas da Natureza: Um estudo da interface entre Biologia e Engenharia. São Paulo.

Resenha curricular:
Décio Gonçalves é graduado em Engenharia Mecânica pelo Instituto Mauá de Tecnologia (1966) e tem também uma graduação em Engenharia Civil pela Faculdade de Engenharia Armando Álvares Penteado (1976).
É Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Instituto Presbiteriano Mackenzie (2002) e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP com a tese "Sistema estrutural treliçado modular em madeira - SET 2M" (dezembro/2007).
Este sistema estrutural recebeu registro de patente junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI, sendo a USP titular do invento, com o título "Sistema estrutural tipo árvore - SETA". O mesmo sistema foi premiado em novembro de 2008 pelo Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CONFEA na área de Engenharia para produtos patenteados ou patenteáveis com viés inovativo.

O autor é consultor em Engenharia e Arquitetura de projetos arquitetônicos e execuções de obras civis de pequeno, médio e grande porte, pesquisador nas áreas de Arquitetura e Engenharia, especificamente na adequação do SETA aos diversos programas funcionais arquitetônicos entre os quais se destacam: residências uni e multifuncionais, shoppings centers, centros de pesquisa, centros de convivência , entre outros, programas estes, de carácter público ou privado. Salienta-se que a adequação do SETA aos diversos programas funcionais apresenta uma interface bem definida com questões recorrentes relacionadas aos interesses sociais.


Infohabitar, Ano V, n.º 267
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 11 de Outubro de 2009
Edição de António Baptista Coelho
Pubicado por José Baptista Coelho

segunda-feira, outubro 05, 2009

266 - Vivências e vivendas II - Infohabitar 266

Infohabitar, Ano V, n.º 266

Vivências e vivendas IIartigo de António Baptista Coelho

Como foi referido no primeiro artigo desta série a ideia de escrever sobre "a vivenda", em termos gerais, mas essencialmente sobre os aspectos de humanização do habitar suscitados pela ideia de "vivenda", decorreu, directamente, de um pequeno e belíssimo artigo de Miguel Esteves Cardoso, intitulado “Vivenda Boa Esperança” e que foi editado no Público. (1)

Lembrei-me, depois, de associar às palavras a editar sobre este assunto, algumas ideias com as quais abri, há poucos anos, um estudo realizado, publicado e disponível no LNEC sobre o título “habitação humanizada” (2), para o qual se poderão dirigir aqueles que queiram aprofundar estas temáticas.

Ainda antes de apontar mais algumas ideias sobre os caminhos da observação e da concepção de verdadeiras "vivendas", daquelas que nem têm de ser especialmente caras, inovadoras e "únicas"/exclusivas para nos ampararem e darem força e até alguma alegria no dia-a-dia e ao longo das nossas histórias de vida, quero fazer uma brevíssima referência a um novo livro, recém-editado (o lançamento teve lugar na Sociedade Nacional de Belas Artes em 2 de Outubro de 2009), e que tudo tem a ver com estas matérias. Trata-se da "Casa dos sentidos - crónicas de arquitectura", da autoria do Arq.º Sérgio Fazenda Rodrigues, editado pela ARQCOOP (www.arqcoop.com e atc.publicacoesol.pt), e onde entre diversos textos, agradavelmente intercalados por desenhos, vamos viajando por muitos sítios que marcam a verdadeira vivência que é desejável e possível numa cidade viva e humanizada, daquelas cidades que vão até à casa de cada um e daquelas casas que, por vezes, até estão mesmo no meio da cidade; no seu livro Sérgio Fazenda Rodrigues guia-nos nos olhares, nos usos, nas passagens e nos afectos,entre muitos sítios verdadeiramente citadinos e os espaços sentidos dos habitares mais íntimos, dos "cafés" aos espaços particularizados domésticos. É, portanto, um daqueles livros para ler e reler, ao sabor da vontade e enquanto, desejavelmente, vivenciamos espaços como esses.



Fig. 01

Lembrando, agora, o que aqui se abordou no primeiro artigo desta série sobre "vivências e vivendas", introduziu-se uma proposta de discussão e de aprofundamento de uma ideia considerada fundamental: pensar o habitar como verdadeiro espaço vivencial, como força integradora da vida do homem, como espaço/ambiente naturalmente interactivo e capaz de influenciar positivamente (ou negativamente) o dia-a-dia e os caminhos de vida e os objectivos dos seus habitantes; e note-se, aqui, uma tónica já um pouco mais prospectiva que aponta os meios do habitar como albergando um potencial claramente influenciador de linhas de vida individuais e familiares.

Naturalmente que a ideia do habitar como espaço vivencial e força integradora da vida do homem, marcou directa e indirectamente, pela positiva e pela negativa, toda a história humana desde a revolução neolítica, pois, afinal e tal como afirmou Christian Norberg-Schulz:

“Durante a maior parte da história a cidade foi a civitas , o mundo conhecido e seguro no meio de uma envolvente desconhecida. As suas qualidades primárias são a singularidade e identificabilidade... e dentro da cidade a casa realmente representa a necessidade básica de «estar num dado sítio.» Esta é a função essencial do habitar, e a casa continua a ser o espaço central da existência humana, o sítio onde a criança se desenvolve e começa a conhecer o seu próprio ser e a sua posição no mundo e o lugar do qual o homem parte e ao qual ele retorna.“ (3)

E o habitar num sentido de vivência que atravesse e marque, positivamente, a casa, a vizinhança e a cidade, pode e deve ser motivo de criação e recriação de uma tal caracterização e humanização, pois a cidade tem de ser um enorme, mas sensível e diversificado, espaço de vivências e de vivendas, a tal cidade feita de muitas cidades afectivas e efectivas; um amplo e rico espaço feito de cidades íntimas, mutuamente articuladas, e de cidades públicas, onde o anonimato e uma culta atractividade são qualidades que se harmonizam com segredos só gradualmente conhecidos, e sempre redescobertos, pelos seus mais experimentados habitantes.


Fig. 02

Nestas matérias é de extrema importância a ampla divulgação de textos e de opiniões, de descrições, de relatos e de testemunhos, de sentimentos e de análises, que abordem e comentem estas formas essenciais de poder habitar, com uma máxima qualidade de vida, "vivendas" (habitações amigáveis e estimulantes), vizinhanças (vivendas de proximidade), partes de cidades (cidades/bairros intensamente vivenciados) e cidades centrais. E é igualmente importante que esses textos sejam claros e possam chegar a um máximo de pessoas, muito para além dos "especialistas" nessas áreas e dos muitos que, não sendo especialistas, tenham e sintam ter muito a ver com tais assuntos. É portanto necessário divulgar amplamente a importância que tem, para cada um de nós e para a sociedade local e global, a possibilidade de podermos viver melhor as nossas casas, vizinhanças, partes de cidades e cidades centrais; e neste caminho, como em muitos outros, são fundamentais os exemplos e os "fazedores de opinião".

Em Portugal, a obra construída e escrita, bem como a própria vida, de Nuno Teotónio Pereira constituem o exemplo claro da importância e da grande oportunidade desta temática da ligação forte entre a Arquitectura e o habitar, entre o desenho e a satisfação de quem vive depois esse "desenho", entre as bases da concepção arquitectónica e um verdadeiro serviço ao homem habitante e à cidade habitada, e, portanto à sociedade. Não é por acaso que o livro de síntese da obra de Nuno Teotónio se intitula “Arquitectura e Cidadania - atelier Nuno Teotónio pereira” (Quimera Editores, 2004, www.quimera-editores.com) e também não é por acaso que em cada um dos seus novos artigos está sempre presente a matéria da humanização do habitar nas suas mais diversas e coerentes formas, visando sempre uma “habitação para a vida.”

No que se refere aos "fazedores de opinião" em Portugal há, felizmente, muitos escritos de gente que não é, profissionalmente, da arquitectura e do habitar, mas que dela fala com grande acuidade, interpretando as fundamentais preocupações de uma vida humanizada. São muitos os escritores, comentadores e cronistas que aqui mereceriam ser nomeados; alguns, infelizmente, já falecidos, mas, naturalmente, bem presentes no seu pensamento. E fazem-se, em seguida, sem qualquer ordem de importância, apenas breves referências às colectâneas de António Pinto Ribeiro (4), a muitos dos livros de Mário de Carvalho, a muitas das extraordinárias “Casas encantadas” de João Bénard da Costa, a muitas das crónicas de Eduardo Prado Coelho, aos inspiradores artigos e textos curtos de Jorge Silva Melo, José Saramago, António Lobo Antunes, José Eduardo Agualusa e Miguel Sousa Tavares; como atrás se disse, entre outros.

Assim se destaca a importância e a riqueza destas verdadeiras pontes entre o sentir as boas casas e as boas cidades, nestes pequenos/grandes textos lidos por muitos, e o urgente caminho de humanização e clara e positiva qualificação do habitar casas e cidades em Portugal. E, assim, através destes textos e de muitas outras colaborações, designadamente de jornalistas, é possível perceber que a preocupação profunda com uma qualidade do habitar verdadeiramente humanizada, afectiva e integrada começa, talvez, a cruzar mais intensa e frequentemente a sociedade (espera-se e deseja-se); o que constitui um sinal de esperança embora apenas e infelizmente um sinal que é urgente intensificar - e bem a propósito regista-se que as crónicas de Sérgio Fazenda Rodrigues (acima referido) se reportam a uma colaboração regular do respectivo autor no jornal "Açoriano Oriental, e nesta linha há toda a oportunidade no sublinhar dos magistrais, embora infelizmente raros, artigos de Nuno Portas na imprensa diária e, naturalmente, da colaboração regular de Arq. Manuel Correia Fernandes no Jornal de Notícias com crónicas extremamente actuais e que ligam matérias da Arquitectura e da Cidadania - e apresentam-se, desde já, sinceras desculpas para com um registo que não se pretendeu exaustivo, mas que mesmo assim esqueceu, sem dúvida, outras "nossos" (em língua portuguesa) artigos e crónicas que estabeleçam conjugações fundamentais entre a Arquitectura e o bem-viver a casa e a cidade, e aqui há, com toda certeza, um excelente manancial, que desconheço, por exemplo, no grande Brasil.


Fig. 03

Considera-se que é, assim, muito importante recolher e suscitar, sempre que possível, quer as opiniões de não arquitectos e de não especialistas do habitar sobre os "mistérios" de uma melhor "vivenda" e de como poderá ser uma cidade melhor vivenciada, quer as opiniões de especialistas nessas matérias, mas vestindo o "fato" de cidadãos bem informados que, "de fora", opinam sobre tais assuntos. Trata-se de uma maneira estratégica de se aprofundarem verdadeiras ligações privilegiadas entre o que se poderá desenhar e os rumos que estruturam a satisfação dos moradores.

Pois, afinal, não deve haver barreiras, e muito menos barreiras estanques, entre matérias ou facetas da arquitectura do habitar e o seu impacto - leitura e vivência - no viver habitações e cidades vivas, isto desde que essa arquitectura do habitar seja considerada como uma disciplina basicamente humana e humanizadora; que nascida e sempre renascida de fundamentais consensos, apoiados em boas práticas, possa ir criando um sentido de casa comum envolvente e significante: casa comum que envolva casas privadas agradáveis e estimulantes e envolvida por uma "casa comum" citadina também agradável e estimulante - naturalmente em proporções diversas e distintas de agradabilidade e de estímulo.

Um exemplo desta perspectiva integradora, que se defende, entre a concepção do habitar e um verdadeiro serviço à sociedade, está também expresso nos três principais objectivos estatutários do Grupo Habitar (GH) - Associação Portuguesa Para a Promoção da Qualidade Habitacional, uma associação de natureza técnica e científica, que tem sede no LNEC e criada em Janeiro de 2004; citam-se então esses objectivos:

(i) Estudar e discutir o habitar numa visão ampla, multidisciplinar e integrada, numa perspectiva teórico-prática que considere uma visão prospectiva fundamentada sobre o que poderá/deverá ser o espaço habitacional, em Portugal, neste novo século, assegurando-se a análise consistente do que já foi estudado e realizado, numa perspectiva que privilegie os casos português, europeu e da CPLP.

(ii) Tratar o habitar no respeito pelos seus diversos níveis físicos, da célula/fogo aos bairros na cidade, e pelos aspectos ligados quer à constituição de continuidades urbanas vitalizadas e à integração paisagística e ambiental, quer à qualidade de desenho de arquitectura, quer à qualidade construtiva, considerando durabilidade e equilíbrio de custos, quer à satisfação dos moradores e à preparação dos aspectos de gestão, quer às especificidades da habitação apoiada e a custos controlados.

(iii) Promover a nível nacional, o progresso e a difusão dos conhecimentos teórico-práticos sobre o habitar, designadamente, através da observação, do estudo e da discussão das realidades e da problemática habitacional, participar no aprofundamento de uma política habitacional adequada, apoiar iniciativas que contribuam para a resolução dos problemas existentes nos domínios da habitação, do urbanismo residencial, do ambiente urbano habitacional e da construção residencial, e colaborar com organismos e associações congéneres e suscitar a participação portuguesa em programas internacionais, no domínio da habitação, com interesse para o País.

Estas matérias, hoje fundamentais, de procurar, a todo o custo, pontes de compatibilização entre a "moradia" que se desenha e a "moradia" que nos satisfaz, encontram uma outra linha de aprofundamento prático e teórico na constatação da urgente actualidade da relação entre o habitar e a cidade, incluindo-se, aqui, seja os problemas de um habitar, frequentemente, inadequado a velhos e novos usos e desejos de "moradia", seja os problemas de uma cidade em crescimento crítico e que se debate com problemas que nunca conheceu antes.


Fig. 04

Esta relação fica bem evidenciada num texto de Luís Fernández–Galiano, que a seguir se cita, e que constituiu um dos seus excelentes editoriais, na também excelente revista madrilena Arquitectura Viva (nº 97, 2004); editorial intitulado “O problema da habitação tornou-se o problema da cidade.”

“Durante el siglo XX, la transformación urbana provocada por la mecanización de la agricultura y los flujos migratorios del campo a la ciudad suscitó el llamado ‘problema de la vivienda’. Los países pioneros de la industrialización lo conocieron antes, y el hacinamiento insalubre del proletariado urbano fue el telón de fondo de la promesa higienista de la arquitectura moderna, que se alimentó del mismo espíritu regeneracionista y la misma indignación moral que los proyectos del socialismo utópico o las denuncias del marxismo revolucionario en el siglo anterior.
En los primeros compases del XXI, y en el marco del mundo desarrollado, el alojamiento no es ya una preocupación cuantitativa o sanitaria, sino cualitativa y ambiental: garantizadas las dimensiones mínimas, la ventilación eficaz y el soleamiento salutífero, la vivienda contemporánea adolece de mediocridad visual, programas rutinarios y entornos anoréxicos... el resto de la población urbana de Occidente no se enfrenta a dilemas dramáticos en el terreno de la vivienda. La burbuja imobiliaria, es cierto, ha arrojado a los jóvenes a las periferias más inhóspitas, y la creciente fragmentación de los grupos familiares –sumada a la pujanza imparable de la residencia individual – multiplica la demanda de viviendas cada vez más pequeñas.

Esta hipertrofia amorfa de las ciudades con ‘urbanismo basura’, para formar una Babel horizontal de barrios anónimos y urbanizaciones exánimes – semejantes en su estructura morfológica a metástasis celulares o a cultivos bacterianos –, es el desafío más significativo al que se enfrenta la voluntad política o ciudadana de diseñar una geografía voluntaria que exprese en el paisaje físico la genuina naturaleza del cuerpo social. Es inevitable pensar que, independientemente de nuestros deseos, la degradación formal de la ciudad contemporánea es una fiel representación del deterioro del organismo colectivo:
La vivienda no es hoy un problema que reclame experimentos estéticos o innovaciones estilísticas; es un problema urbano, de la civitas o la polis, es decir, ciudadano y político. Necesitamos más arquitectura; pero, sobre todo, necesitamos más ciudad.”
E é também por esta urgente necessidade de uma cidade mais arquitectada e, simultaneamente, mais habitada, que aqui se defende que a abordagem do habitar e da concepção da "boa-vivenda" é um caminho que tem de seguir, quer percursos mais objectivados e associados a preocupações exigenciais e programáticas, quer percursos que considerem as boas práticas e que visem ambientes marcados pelo homem e especificamente pelo espírito humano.

De certa forma as “tipologias (d)e caracterização dos níveis físicos residenciais”, que integram o livro "Do bairro e da vizinhança à habitação", LNEC, ITA 2, seguidas dos “Rumos e factores de análise da qualidade arquitectónica residencial” (LNEC, ITA 8), livros estes que realizei e editei no LNEC entre 1998 e 2000, baseados no enquadramento disciplinar de António Reis Cabrita - no livro "O Homem e a Casa", editado também no LNEC em 1995 -, integram uma perspectiva que já se aproxima claramente destas matérias da humanização do habitar, contrapondo-se, assim, positiva e complementarmente, a uma aproximação "mais objectiva" da qualidade residencial - via esta também desenvolvida e editada no LNEC, recentemente, através do Programa Habitacional" de João Branco Pedro.

Procura-se, assim, dar corpo efectivo a um aprofundamento qualitativo e abrangente, ligado por um lado à paisagem e, por outro, aos aspectos emocionais, identificadores e socializadores que marcam de facto a vida do homem urbano e que, hoje em dia, numa sociedade repetitiva e globalizadora, estão cada vez mais na ordem do dia, pois uma boa "vivenda", bem integrada numa cidade agradável e viva, será, sem dúvida, fundamental, quer para que o homem aguente todas as pressões a que hoje em dia está submetido, quer para que possa "dar a volta" a tais pressões e possa profundar os aspectos fundamentais da sua humanidade e civilidade.

A nota que se fez sobre diversos livros disponíveis na Livraria do LNEC e que versam exactamente estes assuntos, é que é importante tomar certos estudos como bases estratégicas, para depois se avançar profundamente nestes temas, sem dúvida complexos mas sempre apixonantes, da necessária aliança entre concepção e satisfação residencial, e havendo resultados publicados de estudos específicos, sobre esta temática, feitos no Núcleo de Arquitetura e Urbanismo (NAU) do LNEC, então fará todo o sentido aproveitá-los ao máximo, para se conseguir chegar mais longe nesta área; foi sempre esta a "filosofia" de trabalho do NAU do LNEC, desde Nuno Portas, e por isso aqui se faz esta referência.

Ainda numa perspectiva de divulgar bases de referência nestas matérias, designadamente, no espaço da lusofonia, salientam-se os trabalhos e livros disponíveis na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), sendo urgente e extremamente apelativa a constituição de uma plataforma de divulgação e de apoio a estudos nestas áreas que poderia ter a ver com estas entidades e com outras onde tais preocupações estão, actualmente, em claro desenvolvimento.


Fig. 05

Com esta perspectiva salientam-se, aqui, ainda e desde já, entre outras entidades cujos trabalhos sem dúvida desconhecerei (e às quais apresento as minhas prévias desculpas pela ausência de referência), os trabalhos e estudos desenvolvidos e editados, em Portugal: no Departamento de Arquitectura e Urbanismo do ISCTE-IUL; no âmbito da formação em Arquitectura e no recente Doutoramento em Arquitectura do Intituto Superior Técnico; e na formação em Arquitectura proporcionada pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

No Brasil devo referir os excelentes estudos desenvolvidos em São Carlos - São Paulo e julgo que igualmente ligados à FAUUSP, os trabalhos realizados na Universidade Federal do Rio de Janeiro e os estudos sobre o bom habitar e a "boa vivenda" desenvolvidos na Universidade Federal de Pernambuco; e aqui também, com certeza fui muito injusto, para com muitos estimados colegas e excelentes grupos de trabalho e instituições, mas fala-se do que se conhece e naturalmente tentarei remediar tal situação à medida que for conhecendo os trabalhos realizados e divulgados nestas áreas por outros centros de estudo da lusofonia.


Fig. 06

O segundo artigo desta série sobre os aspectos de humanização do habitar suscitados pela ideia ampla de "vivenda" termina aqui, mas não antes de se lançar o tema que corresponderá ao terceiro e, para já, último texto da série e que abrirá a porta ao aprofundamento dos significados, formas e relações que desde sempre têm conformado os espaços habitados, assuntos estes estimulantemente desenvolvidos num ainda recente estudo de Simon Unwin (5), e um assunto que, de certa forma se debaterá, entre o facto de estarmos a experimentar, actualmente, uma serena revolução de formas de habitar e de conteúdos vivenciáveis, que estão a marcar e irão estruturar este novo século, e a impossibilidade de habitarmos a ficção ou a realidade virtual, embora esta aí esteja, bem presente no nosso dia-a-dia; pois, afinal, e tal como refere Luís Fernández – Galiano, “os corpos físicos não podem ainda habitar espaços virtuais”:

“Los cuerpos físicos no pueden aún habitar espacios virtuales, por más que las nuevas élites cinéticas aspiren a la misma deslocalización incorpórea de la información o el dinero, permanentemente en tránsito por las redes de un mundo enmadejado de flujos. En los sueños domésticos reside la capacidad de la arquitectura para alimentar la promesa de una vida mejor. Esta promesa, sin embargo, es hoy en buena medida ficticia: las fantasías domiciliadas en la casa están en irónica contradicción con la multiplicación caudalosa de las promociones residenciales que consumen el territorio con su metástasis implacable, devastando a la vez la ilusión de una arcadia campestre y el mito elusivo de la casa individual.” (6)

Notas:(1) Miguel Esteves Cardoso, “Vivenda Boa Esperança”, Jornal Público, 16 de Setembro, 2009.
(2) António Baptista Coelho, Habitação Humanizada – TPI 46, LNEC, Lisboa, Julho de 2006, 577 p., 121 fig; e Habitação Humanizada: Uma apresentação geral – Memória 836, LNEC, Lisboa, 2007, 40 p., 19 fig.
(3) Christian Norberg-Schulz, Meaning in western architecture, Londres, Studio Vista, 1984 (1974), p. 224.
(4) RIBEIRO, António Pinto, Abrigos: condições das cidades e energia da cultura, Lisboa, Edições Cotovia, 2004, 223p.
(5) UNWIN, Simon, Analysing Architecture , 2002, 49p. 1254 vcii http://www.cf.ac.uk/archi/unwins/aawebs/aahome.html (22-10-2004)
(6) Luís Fernández – Galiano, Arquitectura Viva, nº Número 73 DOMICILIOS , El paisaje privado doce casos de casas,I, 2000

Nota editorial: embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.

Infohabitar, Ano V, n.º 266
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 5 de Outubro de 2009
Edição de José Baptista Coelho
Label: habitação, vivenda, habitação humanizada