quinta-feira, agosto 24, 2006

100 - Cidades à beira-rio e o rio como paisagem, artigo de Maria Celeste Ramos - Infohabitar 100

 - Infohabitar 100



Cidades à beira-rio e o rio como paisagem – a civilização que nasceu da água


Maria Celeste d’Oliveira Ramos
Colaboração e ilustração de António Baptista Coelho
A água é a maior e cada vez mais rara riqueza da Terra representando 2/3 do planeta assim como são 2/3 a água do total do corpo humano, sendo que a água potável é finita e o bem mais precioso do planeta, mais do que o ouro ou diamantes ou qualquer outro recurso natural. E como a água, o ar na sua dimensão de oxigénio é o segundo elemento sem o qual não existe qualquer forma de vida, incluindo a própria água de que todos nos lembramos como fórmula química, H2O, esse infinitamente pequeno molecular de que é feita a vida da Terra até à calote da estratosfera.

Já ouvi algures dizer que "Deus passou por aqui", deixou sol (3 mil horas de sol/ano) e praias de areia doirada ao longo de mais de 800 km para além de clima doce todo o ano, deixou um Jardim (como afirmou Unamuno), e os habitantes construíram as paisagens "domesticando" a matéria prima de que dispunham e construíram paisagens diversificadas em todo o território delimitado por fronteiras quase todas naturais, desde 1143, algumas que mereceram ser classificadas UNESCO e REDE NATURA, bem como a Baía de Setúbal foi classificada a mais bela da Europa, fronteiras que talvez tenham ajudado e inspirado o primeiro rei a fazer separar por esse limite físico este "rectângulo de oiro" da terra-mãe peninsular, também denominado por Vitorino Nemésio - esse pedaço de terra debruado de mar, como se de uma ilha se tratasse.

As grandes cidades que fizeram a história do mundo instalaram-se principalmente à beira-mar ou beira-rio, ou na meia encosta de grandes planícies que são os seus leitos de cheia ou de recepção das águas dos pontos altos, ou situam-se, finalmente, nos estuários, onde aflui a maior riqueza do rio que ao erosionar muito devagar leitos e margens ao longo de quilómetros, se bem ocupadas de vegetação ribeirinha que dissipa a energia da corrente servindo de almofada, e os sedimentos transportados vão-se depositando ao longo do percurso do rio, até se entregarem definitivamente na foz dos rios e no mar.




Fig. 1: “esse pedaço de terra debruado de mar” … “estuários, onde aflui a maior riqueza do rio.”

Todas as grandes Capitais do mundo estão nessas condições, e os rios fizeram também florescer as grandes civilizações sendo a do Egipto a primeira que virá à memória de todos nós, da mesma forma que podemos pensar na mais antiga e grande civilização entre o Tigre e Eufrates, onde se diz ter sido situado o Éden Bíblico e que é hoje o Iraque, ou o Estado de Nova Iorque à beira do Potomac.

Mas também a mítica Lisboa de Ulisses tem a privilegiada situação de ficar, duplamente, à beira-rio e beira-mar, com a particularidade de ter o denominado Mar da Palha que parece um pequeno "mediterrâneo" à disposição da cidade e que é um viveiro permanente das mais variadas espécies piscícolas que aí desovam na primavera para mais tarde alcançarem o alto mar já que a influência das marés se faz sentir até Vila Franca de Xira, com grande riqueza piscícola, e depois a juzante com águas "misturadas" rio-mar, o sapal que nenhuma autarquia tem relutância em aterrar para construir sem controlo, espaço que é grande viveiro da mais variada fauna piscícola que vem do mar ali desovar na Primavera, e logo regressar ao mar.

Não passaram muitos anos mas será que há quem se lembre da grande produção de ostras do estuário do Tejo? Arrisco afirmar que é curta a memória e pergunto, de seguida, a que preço está um prato de salmão do rio Minho ou de lampreia ou, ainda, de sável do rio Tejo.

Num artigo saído na revista Visão (3 Novembro 1994), poderá ler-se "«Povo que matas o Rio» - centrais nucleares espanholas, contaminação com metais pesados, morte de peixes, pesca ilegal, que mais irá acontecer ao Tejo ?'' – e o LNEC afirmou, quando do estudo do Plano Hidrológico espanhol, que o Tejo perdeu 25% do seu caudal. Pode ler-se no mesmo artigo que o Tejo é o maior pólo de desenvolvimento do país, alimenta as mais importantes áreas agrícolas do Ribatejo, é um centro de comunicação fundamental e ainda uma gigantesca maternidade de peixes (e eu acrescento que já não é) e, entretanto, na sua bacia hidrográfica de 24 869 km2, a maior do país, que vai de Estremoz à Guarda, vivem cerca de 3 milhões e 700 mil pessoas, mais de 1/3 da população portuguesa e, desta, mais de metade vive na Grande Lisboa e, assim, a pressão humana, urbana e industrial torna o rio Tejo um gigantesco espaço poluído; é que a água, como vento, são os elementos de transporte, por excelência, de vida (sem poluição) ou de morte (poluídos).

E daí resulta que o empobrecimento dos valores da natureza só pode conduzir ao empobrecimento das populações e do país irreversivelmente porque a natureza não se inventa.




Fig. 2: pescadores no Norte do Brasil.

A ausência de políticas de envolvimento de verdade na conservação dos valores de natureza inalienáveis, leva à morte da natureza e ao consequente empobrecimento dos homens, que da exploração sustentável dos bens da natureza dependem, invocando-se contudo e quotidianamente, razões "de desenvolvimento económico", como se água e o que contém de seres vivos e qualidade climática e ambiental, não fossem riqueza verdadeira.
Recuperando a sua frequente situação à beira da água, as grandes capitais actuais do mundo, os grandes centros urbanos e culturais e de maior procura turística ao longo de todo o ano, como Londres, Paris, Salzburg, Buda+Peste, Nova Iorque ou Florença, tiram partido da sua arquitectura tradicional intacta e restaurada, afinal, o "primeiro bem de raiz" para habitantes e visitantes e um constante ponto de partida de desenvolvimento de riqueza que assenta na história e cultura, e artes, de que o turismo é ávido e de que é desmultiplicador, inventando novos factores económicos ou recuperando tradições, não sendo necessária muita inteligência para não deitar fora, como Portugal tem feito, a sua herança de memória e a identidade dos lugares em que assenta a civilização, e que representa riqueza nacional mas também património do mundo.
E se o País dificilmente se porá a par do desenvolvimento industrial-de-2ª.vaga, só lhe restará não destruir mais os sectores primários, a terra e as zonas húmidas, o mar, e a sua grandeza de património histórico, edificado e imaterial.

Olhemos para a cartografia do País onde nascemos e vejam-se as cidades mais sólidas mais antigas bem como vilas e aldeias de beira-rio, e como as suas economias, e cultura, se desenvolveram e dependem de cada afluente de cada grande e pequeno rio; e ao olhar desse modo, interiorizemos que inutilizar com nova habitação ou estrada, cada ribeira que é o primeiro caudal de não importa que grande rio, é destruir tudo o que se passar a jusante, implacavelmente, é destruir vida e cultura e economias, é fazer deserto ecológico e humano, e por fim deserto físico, o que é apenas uma questão de tempo – tendo os decisores conseguido destruir, em apenas umas muito escassas dezenas de anos o que levou séculos a humanizar, tornar fértil.



Fig 3: Amarante e o Tâmega.

Portugal tem (tinha) uma extraordinário sistema hidrográfico homogeneamente distribuído, de que ressaltam os estuários do Douro (origem ancestral do comércio nacional com todo o mundo nos séculos XVIII e XIX), os vales do Mondego, do Tejo e do Sado, tendo estes últimos merecido pertencer à rede de Zonas Húmidas mais importantes da Europa, e em que a baía de Setúbal mereceu recentemente ser classificada "a mais bela da Europa", e o Tejo, pela sua riqueza física e biótica fazer parte da área protegida do Tejo internacional.

A importância dos rios em Portugal vem de longe, dos tempos da pré-história, de que é exemplo Foz Côa, com as gravuras rupestres datadas de há mais de 20 mil anos deixando testemunho das formas humanas mais remotas de viver, e sendo que o Guadiana é não só uma lição da convulsão morfo-geológica da Península Ibérica, como já foi o em tempos o último porto de mar do Mediterrâneo, pois que era navegável até Mértola, tendo ainda sido ponto de passagem de outras civilizações que invadiram o país de que restam vestígios, alguns dos quais hoje acessíveis no museu local; no registar da história do rio e dos homens, que é de uma riqueza inestimável.
Com a extraordinária distribuição das mais pequenas às maiores ribeiras em cada bacia hidrográfica, e com o clima ameno, não podia o País deixar de ser agrícola ao longo de milénios, situação esta que se alterou radicalmente, já que até 1986 o país produzia 75% das necessidades alimentares passando hoje apenas para apenas 25%, e sem se assistir à dignificação do solo agrícola e da sua produção, bem como dos homens rurais que tiveram a coragem de se dedicar às coisas da terra que produz alimentos; terra esta também ameaçada pela recente invasão de eucalipto, que é esgotador da terra em apenas 40 anos.
Com tal riqueza natural selvagem e construída pelos rurais, imaginemos então que classificação mundial poderiam ter as nossas grandes zonas húmidas (que incluem o litoral marítimo até 6 metros de fundo na baixa mar), se não tivessem sido tão destruídas, poluídas e continuamente discutidas “parlamentarmente” com tanta superficialidade e ignorância, e que economias podiam ter continuado a gerar se se compreendesse, de facto, o valor que têm, nem que fosse “só” pela sua "beleza", esse valor maior de todas as coisas da Terra e do Homem, e que, afinal, hoje e no futuro também vende/rá, porque a indústria do turismo é e será a mais poderosa do mundo e tem um crescimento imparável, excepto nos locais em guerra.
Afinal, as paisagens oferecem ao homem o que lhes é pedido de recursos naturais ou de culturas, e ainda podem oferecer "beleza" e recursos de recreio, lazer e dinamização da expressão artística.



Fig 4: “As paisagens oferecem … recursos naturais ou de culturas, e ainda podem oferecer «beleza».”

E é interessante atentar que do caminhar a pé pela estrada romana ou em liteiras, de há muitas centenas de anos, o turismo, de hoje, entre tantas das suas opções, voltou também ao caminhar a pé, por exemplo, ao longo dos vestígios dessa mesma estrada romana, mas para tal, para se poder contar com tão grande riqueza de possibilidades, muito há a fazer e a não deixar fazer, terminando-se de vez com o desprezo pelo nosso riquíssimo património.

O nosso País não tem de facto nem ouro nem diamantes, mas tem séculos de história feito em PEDRA e em PAISAGENS, a sua riqueza maior, e todas as artes delas derivadas e tornadas indústrias seculares, que já ninguém da cidade faz ou dá importância, porque as cidades tornaram-se tão extensas que se divorciaram da paisagem natural.

Na ausência dessas matérias-primas, que são as mais valiosas para os mercados actuais, não se encontrou, em Portugal, compensação no valor do mosaico paisagístico, nem na existência dos monumentos que contém desde a pré-história, e na situação geográfica que permite ser plataforma giratória de ir e vir entre este e o outro lado do mar.

Mas falemos de água e de rios e pergunte-se, o que é que em Portugal terá agora valor para se poder justificar que se encanem continuamente ribeiras sem a menor hesitação, só porque se atravessam no caminho da "expansão urbana em contínuo de laje de betão" (19% do território nacional é impermeável), quando em qualquer país europeu, nascido depois deste que habitamos, o "rio faz parte do tecido urbano" e é espaço de recreio por excelência, sendo mesmo, como em Inglaterra, núcleo “genético” gerador de aglomerado urbano.
É urgente que Portugal volte a amar os seus rios e as serras e as árvores e as cidades e os monumentos e as paisagens, que são todos património da origem de toda a vida natural e dos gestos de humanização, e são B.I. e ponto de partida do verdadeiro desenvolvimento, sem ser necessário ter de imitar nada, e, assim, sem correr o risco do "passar de moda."
É urgente voltar a amar e honrar o património paisagístico ancestral e multifacetado, natural e construído, acima e abaixo da linha de terra, e fazer dele património sociocultural e económico, nacional e mundial.
E há que salientar que o RIO é por si só uma paisagem desde a nascente à foz, com ou sem conjuntos urbanos nas suas margens, e é corredor ecológico por excelência, não importa de que dimensão.
As mais importantes cidades do nosso País fizeram-se com o mar e com os rios, numa linha quase contínua paralela à costa marítima, sendo as arquitecturas e as economias resultado directo da comunhão com a ÁGUA, e não esqueçamos Nemésio, ao referir-se a "este pedaço de terra bordejado de mar" que fez "civilização."
Já foi afirmado muitas vezes pela ONU que a partir de 2025, a água potável total do mundo, não chegará para os seus habitantes, já que o ciclo da água é um ciclo fechado e água é também civilização e saúde sendo o consumo per capita um dos mais actualizados índices de aferição do grau de desenvolvimento.
Sendo certo que a água doce total do planeta equivale exclusivamente a 4500 mil km3 para a água doce de superfície e 100 mil km3 para a água doce subterrânea, 25 milhões de km3 para o gelo dos pólos contra 1330 milhões de km3 para a água dos oceanos, sendo que se pode considerar ainda a água atmosférica como sendo apenas de 13 mil km3 e são tão só 400 mil km3 a evaporação e precipitação que se equilibra por ano. E porque a infiltração da água no solo é principal nas áreas florestadas (montanhas), a sua erradicação impede a água de abastecer toalhas freáticas bem como não produz o oxigénio da sua responsabilidade em que a sua produção por hectare ronda o valor necessário para uma população de 50 mil habitantes.
Paralelamente o homem "civilizado" utiliza por dia 100 litros de água e respira 60 litros de oxigénio, e ainda raramente na cidade se separam as águas negras das águas residuais industriais, para que as primeiras possam ser reutilizadas na lavagem das ruas e rega dos jardins e mesmo agricultura, desperdiçando-se, assim, a água que se tem disponível e, pior, desflorestando-se e impermeabilizando-se em excesso, designadamente, nas cada vez maiores, grandes cidades, e originando-se que cada vez mais água da chuva, para a mesma queda pluviométrica, vá dar ao rio e ao mar em vez de ficar nos continentes.




Fig. 5: E o século xxi é/será o século das grandes cidades.

Talvez porque ar e água não tenham fronteiras, estes sejam os dois elementos sagrados da China – o feng-shui – considerados, por vezes, em projectos, mas apenas ligados à orientação da habitação, continuando-se, mesmo depois de se conhecer, como hoje em dia, o valor da água e a sua finitude, com um quase desprezo, nos planos de ordenamento urbano, pelo valor da terra e da água, e mesmo do clima, que são tratados como se fossem "substituíveis."

E que felicidade é, e poderia ser, poder viver na proximidade da maior riqueza electro-magnética, biótica e de bens naturais do planeta que é a fronteira/margem terra-mar onde muitos e grandes rios se vêem "oferecer" ao mar, mas oferecendo o que transportam resultando na grande fertilidade dos estuários.

Que cidade e habitantes felizes os que podem usufruir dos valores estéticos das paisagens marinhas e fluviais, sempre especiais com a presença da água, a sua cor e luz, e movimento e deles retirar paz e consolo e contemplação, para além da manutenção da sua presença como fonte de alimento – Paris cidade interior atravessada pelo Sena, sem o rio talvez não fosse nem capital, nem teria aquele clima nem luz filtrada pelo nevoeiro, que só a presença da água permite, quando se evapora, dando a todo o ambiente encantamento e misticismo.





Fig. 6: Aquele clima, aquela luz filtrada, que só a presença da água permite, dando a todo o ambiente encantamento e misticismo – a margem de Lisboa e os veleiros.

A água é, como diz no Alcorão, "a fonte de toda a vida", não apenas no sentido físico mas também espiritual, e por isso na Índia há 7 rios considerados sagrados, da mesma forma que é sagrada, para os cristãos, a água benta, ou a água do Baptismo, a água do Rio Jordão onde Jesus foi baptizado, porque há homens que conseguem perceber que há sítios e lugares sagrados, e florestas sagradas, locais onde sentem o Divino na Terra, e em todos os tempos sempre a água esteve ligada ao DIVINO, como no Ganges que para tudo serve, e, mesmo imundo, não deixa de ser "sagrado."
Os rios foram e continuam a ser, em Portugal, meras "linhas de água" de captação de recursos e onde se rejeitam efluentes, os mais poluídos e devastadores da qualidade da água a ponto de matar a fauna piscícola e mamíferos das margens e até a mata e a vegetação das margens e as terras em que se vão infiltrando ao longo do seu percurso.
Mas o vento e água, sagrados para os chineses, devê-lo-iam ser para o mundo inteiro, já que são, por excelência, os dois veículos naturais de transporte: transportam a vida (o ar transporta o polén), ou transportam a morte (a poluição do ar e da água).
Com as alterações climáticas mundiais, de que já chegaram ao país as consequências, como nunca é necessário reaprender a desenhar com a natureza dando prioridade à água e aos seus locais naturais de infiltração e de drenagem que são os vales e retomar com a maior seriedade a legislação de ordenamento e de protecção dos locais que guardam a vida natural/cultural do nosso País; todos os erros humanos com o ar e água se podem evitar, basta deixá-los PASSAR pelos lugares naturais que lhes pertencem percebendo, para além de razões científicas e técnicas e estéticas, o espírito de cada lugar. E lembremos os monges agrónomos, os Beneditinos, que construíram o Convento de Alcobaça deixando o Côa passar, livremente, pela cozinha e não haverá no mundo muitos "monumentos" construídos em cima de um rio, deixando-o ser rio.
Meter uma linha de água não importa de que dimensão, num CANEIRO não é possível em nenhum país do mundo e, onde se fizer, a natureza mais tarde ou mais cedo reclamará o que lhe pertence como aconteceu no fim do ano de 2005 em New Orleans e Houston, situações bem paradigmáticas da invencibilidade da natureza por mais avançadas que sejam as tecnologias e as máquinas para a dominar porque até os factores de imponderabilidade são bem mais prováveis do que o domínio humano por mais que o homem desafie a natureza, como lhe compete e é humano fazer.
Sabe-se como é inútil construir paredões de betão senão acidentalmente, nem sequer espigões de pedras feias e colocadas ad hoc, porque um litoral não é uma área portuária contínua.
Espigões e paredões fazem parte de uma atitude que prolifera por esses litorais fora, fazendo-se desmoronar falésias sobretudo desde o boom turístico dos anos 60 que tudo constrói no limite das falésias ou mesmo em pleno areal. É sabido que o mar está actualmente a tornar a avançar (progressões e regressões) naturalmente, no seu cósmico movimento dinâmico super-milenar, senão não haveria altas falésias cobertas de fósseis marinhos ao longo da costa portuguesa como as da Costa da Caparica e do Algarve, de arenito e com alternância de camadas de argila porosa, porque o mar "recuou", sendo complicado não haver "conhecimento" nas disciplinas de planeamento e ordenamento bio-físico suficiente, e de geologia, para que se minimizem as catástrofes naturais anunciadas.
O Homem já sabe que não vence nunca a natureza pelo que só lhe resta colaborar com ela, ganhando em eficiência e perenidade do construído, ganhando em qualidade da natureza e do ambiente e de beleza das paisagens e por fim ganhando em termos económicos já que tem de dispor de muitos milhões de unidades monetárias para constantemente refazer os enganos de planeamento e projecto, gasto que em vez de ser revertido para desenvolvimento sustentável e restauro do património, é gasto em "reparações" que serão cada vez mais difíceis de efectuar, à beira-rio e à beira-mar.




Fig 7: “O Homem já sabe que não vence nunca a natureza pelo que só lhe resta colaborar com ela.”

Impermeabilizar leitos de rio, tornou-se normal em Portugal sendo curioso o caso de Ponte de Lima em cujo leito em anos de pouco caudal se fazem feiras, e que foi "cimentado" nos anos 90 após anos de areal a descoberto – mas que em 1991 provocou uma das piores cheias de sempre da região, e, da mesma forma, se construiu Miraflores no leito de uma das duas maiores ribeiras de Lisboa – a de Algés –, a par da segunda maior ribeira sobre a qual se construiu a avenida de Ceuta, porque foi esquecido que em 1983 houve enxurradas catastróficas na zona de Lisboa e Oeiras até Cascais, por haver construção indevida em leito de ribeiras.
A natureza é previsível e imprevisível e a única forma de minimizar as consequências está em saber decidir controlar a decisão de impermeabilização e de "parcelamento" de espaços físicos férteis e de funções múltiplas, conhecendo e respeitando as características de cada local e a sua função primordial, e podendo-se até dizer que "o que está certo está belo."

E como já se disse, cada "linha de água" é por si só uma paisagem e uma "entidade" a considerar no quadro de "ordenamento do território (urbano e rural) - é um Corredor Ecológico por excelência.
Basta pensar em como a cidade trata a água nas sua forma mais elementar e que tem a ver com a quantidade de queda pluviométrica urbana que, como é sabido, pode ser superior à da envolvente rural, já que, na cidade, a temperatura média diária pode ser superior em 6 a 7ºC devido a ser um contínuo de materiais inertes e com muito baixa relação percentual de área permeável, representada por parques e jardins, públicos e privados, que são áreas de beleza e de memória das "estações do ano", áreas de infiltração da água da chuva e regularizadores climáticos, são "natureza viva dentro da cidade", são vida.
E quando a cidade entra em crise ambiental, entra em crise, igualmente, a cultura dos seus habitantes, que mais e mais se distanciam da realidade da natureza e do que dela provém para que a cidade exista.
Creio eu bem que hoje tudo o que se passa não apenas no campo, mas também relativamente ao valor das componentes ambientais – e sobretudo à água – é, cada vez mais, um problema de cultura urbana porque os rurais já não habitam o campo e a cidade não é educada para esses valores, e talvez nem mesmo para os valores de urbanidade.




Fig. 8: Cidade e urbanidade.

Por mim, sempre me extasiei com a Terra e o que contém tanto de natureza, como feito pelos homens num diálogo de arte, que só pode ser diálogo de amor. E, por que não dizer também que, como os "antigos", vejo o Divino no rio, na árvore suporte do mundo, e na inspiração humana que faz catedrais.
Ou então dizer, como São Francisco de Assis, “a minha Irmã Terra, a minha irmã Lua, os meus irmãos peixes!” Não será tudo manifestação do mesmo? Que o homem vai descodificando?



Fig. 9: “A minha Irmã Terra, a minha irmã Lua …”

E porque os homens se divorciaram das coisas da natureza e da origem das Cidades-Civilização, agora fazem desmoronar também as cidades onde moram, sem darem conta de que já não há mais nada para destruir a não ser o próprio homem.



Maria Celeste d’Oliveira Ramos, em Outubro 2005
Colaboração e imagens de António Baptista Coelho, em Agosto de 2006

quinta-feira, agosto 17, 2006

99 - A CIDADE e o RECREIO, um artigo de Maria Celeste Ramos - Infohabitar 99

 - Infohabitar 99

A CIDADE E O RECREIO, O ESPAÇO E O TEMPO – ESPAÇO DE ALEGRIA E DE FORMAÇÃO DO CIDADÃO

Artigo de Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Colaboração e ilustração de António Baptista Coelho

A cidade é de facto o espaço privilegiado para a vida dos homens, e tempos houve em que havia a preocupação de definir cidade – civitas –, ou seja, definir espaço e funções de um certo aglomerado habitacional para que merecesse designação específica e diferenciada.
O lugar (pueblo-parish), a aldeia (village), a vila e a cidade (ville-town-city), depois metrópole, área metropolitana ou mais recentemente a megalópolis, radica na especificidade da actividade por grupos de habitantes.

O lugar e a aldeia seriam os locais habitados por aqueles que se dedicavam exclusivamente ao sector primário, enquanto que, depois, "subir-se-ia" na hierarquia da designação, não apenas com base no número de habitantes, mas também na pirâmide das funções do secundário e terciário, culminando-se na cidade, que é, por excelência, espaço terciário. O ordenamento das paisagens do campo e urbanas seguia de perto o ordenamento urbano e humano, qualificando espaços e funções.
O recreio e "loisir" são comuns a todos os lugares "habitados" (e mesmo adentro da habitação privada), mas tomam maior relevância à medida que aumenta o número de habitantes, e tal que no planeamento urbano passou a haver "quantificação" per/capita para determinadas tipologias de espaços exteriores para que os actuais espaços urbanos, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, fossem planeados e construídos com inteligência visando o bem-estar do cidadão e, mais recentemente, o bem estar da própria "natureza"selvagem" dentro da cidade e na sua envolvência.





Fig.1: Um pouco de cidade em Belém, Lisboa.

Tudo isto para que a vida permaneça, vida que não pode ser "deixada apenas à sobrevivência" dos espaços do campo, eles também em ameaça permanente pela desordem de tipologias de ocupação e pela ausência de percepção do valor de cada espaço especificadamente, e para que a cidade não seja apenas uma laje contínua de betão e de betuminoso onde a vida se torna insuportável, porque já é completamente anti-natura; e tal que entre um candeeiro e uma árvore centenária não há hesitação: corta-se a árvore!
Assim há regras urbanas que vão evoluindo com o tempo e a demografia dos espaços urbanos, não apenas para a geo-distribuição das funções da cidade, de que é a mais dignificada a de administração, a que se seguem as de ensino e religião, de saúde e de cultura, e de recreio e desporto.
E estas funções estão sempre a ser focadas quando se escreve sobre a cidade e a renovação do seu desenho, e sobre a "deslocalização" de funções que igualmente são alteradas pela evolução de diversas condições funcionais, entre as quais se destacam as ligadas às acessibilidades e aos transportes públicos.
E entre as funções da cidade estão as associadas aos espaços de recreio e de desporto, e aos espaços livres e públicos como os largos e praças, cujas funções poderão estar mais limitadas à cultura e ao comércio ou, simplesmente, poderão ser pequenas parcelas que se articulam no desenho de planeamento e ordenamento e que são “apenas” espaços de "respiração", para além dos espaços de circulação da cidade, e que desenham a sua estrutura fundamental e servem as suas qualidades de mobilidade.




Fig. 2: O recreio “livre e na rua”, num conjunto habitacional de interesse social da C. M. de Vila Nova de Gaia, na Quinta do Guarda Livros, Oliveira do Douro, projecto do Arq. Paulo Alzamora, 2001.

Quanto aos espaços de desporto há que citar a que classe etária nos referimos, já que, à partida, os espaços de desporto, porque exigem maior área, deverão situar-se longe do coração da cidade, podendo distribuir-se radialmente e em anéis concêntricos, para que o acesso não seja penoso pela distância às áreas de habitação, e pela dificuldade ou perda de tempo na deslocação, considerando-se as classes etárias a que se destinam, sob pena de, por exemplo, se desmotivarem os adolescentes que já têm autonomia de deslocação e correspondem à população urbana que está nas idades de formação de todo o seu ser físico e psíquico, e para quem o desporto é escola de auto-conhecimento e de desenvolvimento máximo da sua motricidade, de capacidades globais e de socialização, e de encontro em alegria, e para quem o recreio mais importante é o desporto de ar livre, podendo embora fazer-se em espaços fechados, mas menos saudáveis.
Desporto que deve também ser feito no espaço escolar onde à partida devia ser natural e óbvio, mas aí a situação tornou-se problema tão complicado que não quero ir por aí. Mas não tenho dúvidas em afirmar que uma das razões de repulsa escolar e mau aproveitamento, que no limite poderá culminar na violência dos jovens, pode radicar, mais do que se afirma, na ausência do desporto a que nunca nenhum jovem se furta, e por isso brinca e joga nos locais mais insólitos e inesperados porque essa é também condição natural de ser adolescente, mesmo desfavorecido, até porque é sabido que "nos bairros de violência" esta não se generaliza a todos os adolescentes, nem sequer aos que são exclusivamente oriundos dos grupos sociais mais pobres.
E quando uma escola primária ou de ensino básico tem um pátio, mas não tem árvores e o seu pavimento é apenas de betuminoso repulsivo e perigoso: lamenta-se profundamente que as crianças não mereçam melhor.
E da mesma forma se lamenta que os espaços infantis das cidades estejam equipados com brinquedos de poucas marcas monopolizadoras do mercado dando origem a uma “tipologia” muito marcada pelo "modelo único” nas formas, cores e materiais, frequentemente, muito caros na aquisição e implantação, e sem alternativa de restauro, ficando milhares de euros postos a um canto quando se partem e enferrujam, sempre iguais de norte a sul, sem a possibilidade de haver terra ou areia, sem árvores e sem relvados para as brincadeiras e jogos livres, sem criatividade e numa monótona e triste “igualdade.”





Fig. 3: “E bastariam, apenas, extensos relvados” – o miolo do quarteirão de habitação de interesse social da cooperativa Coohafal, na Madalena, Funchal, projecto do Arq. Guilherme António Barreiros Salvador, 1988.

E bastariam apenas extensos relvados e árvores que permitissem espaços de sol e de sombra, onde as crianças pudessem correr e "brigar" e aprender, então sim, igualdade e fraternidade, e estes espaços permitem a utilização por todas as classes etárias e proporcionam um custo mínimo de conservação; mas devem estar em locais caracterizados pela segurança e pelo sossego – afinal condições que são fundamentais para a saúde em meio urbano.
A este respeito e com o propósito de minimizar acidentes existe o Decreto-Lei 379/97 que visa propostas de alteração de planeamento, construção e manutenção, inspecção e fiscalização de espaço de jogos e de recreio; mas acho complicado ter-se chegado ao ponto de ser necessário "legislar o brincar", é mesmo a "condição humana."
O contexto social é muito mais complexo do que isto e cada homem adulto ou adolescente em formação, é vítima, ou fruto, de todo o complexo de inter-relações socioculturais e se por acaso a região de Lisboa e Vale do Tejo é considerada pela UE das sub-regiões de maior rendimento per/capita, diríamos então que de facto os graves problemas dos adolescentes não é um problema de riqueza regional, mas de outros problemas que foram descuidados e esquecidos, “ghetizando-se” os adolescentes.
A exclusão social não radica apenas na componente da eventual débil economia da família, mas igualmente na qualidade da oferta das instituições escolares, e da própria cidade, nos seus espaços; mas aqui há que referir os associados e frequentes “esquecimentos” das classes de decisão, sobretudo autárquicas.
Mas eu quero, hoje, aqui, falar, essencialmente, da cidade e da alegria e dos espaços em que o cidadão se pode retemperar do cansaço e da monotonia, tendo não importa que idade e ocupação diária e ao longo de todo o ano, e onde e como a cidade é espaço em que essa alegria natural e humana pode e tem de ser renovada, porque a cidade é espaço de viver e de ACONTECER em cada dia de cada ano, no seu ciclo não apenas anual e civil mas também diário e cósmico.
É mesmo a "condição humana" que é posta em causa porque brincar é natural, rir é natural, ser feliz é natural – e desejável.
O contexo social é muito mais complexo do que isto e cada homem adulto ou adolescente em formação, é vítima, ou fruto, de todo um complexo de inter-relações socioculturais, e se, por exemplo, por acaso a região de Lisboa e Vale do Tejo é considerada pela UE das sub-regiões de maior rendimento per/capita, diríamos então que de facto os graves problemas dos adolescentes não se referem a um problema de riqueza regional, mas a outros problemas, que foram descuidados e esquecidos, ghetizando-se, realmente, os adolescentes.
Qualquer adulto poderá pensar que "brincar" é apenas um acto infantil e próprio das idades mais jovens ou, então, brinca apenas para brincar com seu filho, menino, não receando o "ridículo", em privado, tal é a força de alegria que emana do bebé ou do pré-adolescente. Mas a alegria é própria do ser humano não importa a forma como vive e, se vive só, ou mais dificilmente se é velho e só, então a "alegria" até parecerá não poder ter mais lugar nos seus olhos ou no seu andar. E não devia ser assim, pois a cidade é, por natureza, lugar de encontro e de festa/alegria.




Fig. 4: "Grande homem é o que não perdeu a sua alma de criança."

Alguém que não recordo disse que "grande homem é o que não perdeu a sua alma de criança" e sabe-se bem como está a desaparecer do adulto, essa capacidade de manifestar a dimensão mais simples de "ser simples e ser menino", sorriso directo e cheio de luz que virá do interior e que tende, infelizmente, a enfraquecer com a idade .
Mas quando que se afirma que os velhos são como os meninos, creio bem que não são apenas tão frágeis como eles mas que, para os que passam os seus "bojadores", a mesma alegria simples e aquela luz no olhar regressam como património revalorizado e que repartem com seus netos ou com quem estiver no seu caminho, e se o sorriso falhar mais vale um sorriso triste do que não ter sorriso algum.
Quantos velhos se observam tristes pelas ruas por onde passamos?
Mas, quantas crianças também, não têm um sorriso, nunca sorriram?
A alegria corresponde a uma dimensão de saúde no corpo e na mente em que a cidade tem uma grande dimensão de responsabilidade, não por razões socioeconómicas, mas simplesmente pelos espaços físicos que na cidade têm de existir para que "viver na rua seja também prazer."
Que dimensão cabe à cidade apenas no sentido físico de espaço de estar e de convívio para que ao menos a natureza do homem comunique com a natureza das árvores e das flores e dos espaços onde as crianças "gritam e brincam"?




Fig. 5: É preciso que "viver na rua seja também prazer”; arte urbana em Almada.

Mas serão os adolescentes os mais esquecidos na sociedade actual – porque já saíram da alçada protectora de seus pais e largados à vida sem espaços de prazer e de estar colectivo, pelo que o seu crescimento é deveras problemático, o seu corpo físico e mente crescem mas sem desenvolvimento criativo e preparador para a fase adulta.
E hoje em dia a, quase, regra é a cidade e a sociedade só oferecem, ao adolescente, lugares de recreio nocturno que muitas vezes nem sequer são locais de música e convívio, mas, sim, frequentemente, sítios de ruído e poluição e de convite à droga e ao álcool a partir de idades cada vez mais baixas.
Esta situação inutiliza para a vida inteira qualquer adolescente porque o cérebro não se desenvolveu saudavelmente e, até aos 18 anos, a biologia humana não está ainda desenvolvida para poder fazer a síntese deste tipo de erros, mas sobretudo das "ofertas" de uma cidade irresponsável e comercial em que só importa o comércio e não os cidadãos, mesmo os que são a semente do futuro.
É urgente pensar e planear a ocupação dos adolescentes, considerando especificamente, as respectivas circunstâncias e os mais adequados espaços escolares e públicos, porque os adolescentes são a seiva de cada nação.
Os adolescentes têm de ter direito à cidade e à alegria, têm de ter direito aos espaços colectivos de crescimento motor, psíquico e social. O movimento de degradação da oferta da cidade para com os adolescentes pode e deve ser invertido sob pena de a cidade não ter mais razão de existir para além de dormitório colectivo.
É preciso cidade para rir e brincar, para ver rir e ver brincar e partilhar alegria infantil e colectiva.

Lisboa -bairro de Santo Amaro – domingo, 12 de Março 2006.
Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Colaboração e ilustração de António Baptista Coelho, em Agosto de 2006.
Edição de José Romana Baptista Coelho.

quinta-feira, agosto 10, 2006

98 - Sobre a humanização do espaço público, artigo de António Baptista Coelho - Infohabitar 98

 - Infohabitar 98

Sobre a humanização do espaço público

António Baptista Coelho

Nota introdutória


Do abandono a que têm estado votados, frequentemente, os espaços públicos urbanos, resulta a oportunidade de uma reflexão prática cuidadosa, ainda que relativamente informal, sobre a própria matéria-base dos aspectos de imagem e desenho urbanos que podem estruturar o positivo desenvolvimento de espaços públicos motivadores, amigáveis e enriquecedores.
Um outro objectivo deste texto ilustrado é contribuir para uma aproximação gradual entre a técnica que deve ser urgentemente consolidada e divulgada nesta matérias e as ideias básicas a que todos os cidadãos informados, e não necessariamente arquitectos, poderão e deverão chamar suas relativamente às múltiplas características qualitativas do que se deve fazer e exigir, sempre que se intervém no espaço público, isto é, no espaço que tem de ser todos e a todos satisfazer; e isto aplica-se sem grandes diferenças seja a novos espaços urbanos, seja na requalificação da cidade existente.

Sublinha-se, assim, que aqui se visa o espaço urbano em geral e, essencialmente, o que se poderá designar como o grande leque de situações existentes numa cidade corrente que tem de ser viva e humanizada para ser um espaço de vida realmente satisfatório e enriquecedor.
Apuraram-se e privilegiaram-se duas ideias-chave:
. a importância da vitalidade global do mundo público;
. e a necessidade de se visar, de múltiplas formas, a sua humanização.
Essa vitalidade é uma vitalidade funcional e social, com um sentido amplo ligado ao habitar – desde as vizinhanças à cidade – e à cultura urbana, enquanto a referida humanização terá obrigatoriamente contornos estéticos (estritos e amplos), éticos, sociais e também, naturalmente, culturais.
Parece ser este um tema amplo e complexo, mas também um tema vital para a sociedade e uma temática rica e apaixonante nas questões que levanta.
São, em seguida, sinteticamente abordados dez “tópicos” sobre a vital e actual temática da humanização e vitalização do espaço público. Privilegia-se a ilustração de boas práticas, associadas a espaços urbanos correntes bem qualificados e, essencialmente, a conjuntos urbanos de habitação de interesse social portuguesa; desta forma sublinha-se que as qualidades residenciais e urbanas consideradas não têm a ver com custos específicos, mas sim com a qualidade dos respectivos processos de projecto/construção/manutenção e, designadamente, com a qualidade das suas soluções de arquitectura urbana.




Fig. 1: duas das muitas e muito humanas perspectivas do conjunto no Monte Espinho, Matosinhos, um sensível e civicamente empenhado desenho de Paula Petiz para uma nova pequena parte de cidade, viva e estruturante.

Vizinhanças de proximidade protectoras e sequências estimulantes

Bolsas de vizinhança de proximidade protectoras, conviviais, com dimensão pequena e claramente configurada e uma imagem urbana humanizada e muito apropriável, configuram espaços públicos extremamente agradáveis e positivamente caracterizados, nos quais a arquitectura dos pequenos edifícios se “apaga” também de uma forma positiva, o que interessa aqui é que estamos em presença de um pequeno pedaço de cidade.
As sequências estimulantes de pequenos, demarcados e bem articulados e harmonizados cenários residenciais constituem os elementos fundamentais do urbanismo de pormenor, que é aquele sobre o qual quase tudo se deve fazer na arquitectura urbana.

Sítios “únicos” e variados e gradações de privacidade

É essencial desenvolver sítios “únicos” e variados, que promovam a fundamental diferenciação entre lugares e assegurem emoção na percepção do espaço urbano habitado.
As soluções urbanas e residenciais que se queiram caracterizar por espaços públicos humanizados e vitalizados devem oferecer condições de grande integração entre espaços mais privados (dos fogos e contíguos a estes), espaços mais urbanos e espaços de transição.




Fig. 2: sítios únicos criando vizinhanças de proximidade – um espaço habitacional densamente humanizado (em Lübeck).

Trechos de vida colectiva com desenho urbano de pormenor

Muita da vitalidade urbana se joga na adequada previsão de trechos de vida colectiva, funcionais, com uma imagem urbana atraente mas sóbria e capazes de dinamizar funções tão correntes e fundamentais como o variado recreio/lazer na rua, numa forte relação entre função, forma e contexto urbano.
O desenvolver de uma escala pública em que uma imagem humanizada se liga a exigências fortíssimas em termos funcionais, de durabilidade e de capacidade de comunicação de imagens/formas. Trata-se aqui de recolocar o desenho e a morfologia urbana de pormenor no centro da mais premente actualidade da produção da cidade.

Eixos e pólos urbanos regeneradores dos sistemas de convivência

Desenvolver sequências de espaços públicos – e de pequenos trechos urbanos – que se constituam em verdadeiras “colunas vertebrais” de partes de uma cidade que assim se irá habitando. Naturalmente que a escala humana e a pormenorização servem e amplificam a força funcional e de imagem destes trechos.
Fazer espaços públicos humanizados e vitalizados é, essencialmente, (re)fazer uma cidade que se deseja (re)constituída nos seus sistemas de convivência. Dizer que esta convivência já não faz parte dos actuais modos de vida é apenas desculpar o não querer ou mesmo o não saber fazer esses espaços que se querem naturais incentivadores do convívio, convívio que nasce logo à porta de casa.




Fig. 3: uma adequada pormenorização de eixos urbanos conviviais – a EPUL no Restelo, Lisboa; projecto urbano de Nuno Portas, Teotónio Pereira e Gonçalo Ribeiro Telles; projecto de edifícios de Teotónio Pereira, Pedro Botelho e João Paciência (1985).

Vizinhanças de proximidade reforçadas, sóbrias e naturais

Relação com a envolvente e com a colectividade servida por uma atractividade geral e espacial ao nível de um micro-urbanismo que reforça a presença da vizinhança de proximidade e suscita adesão, marcando uma relação de proximidade que é também ponte de relação com a envolvente.
Tal como disse Francisco Keil do Amaral, muito mais importante do que muitos outros aspectos, é assegurar “edifícios correntes com boa qualidade arquitectónica e bem agrupados.” Assim se pode estruturar o exterior urbano e residencial com naturalidade e coerência – podemos sempre lembrar que o que parece mais simples provavelmente foi aquilo que foi melhor e mais longamente pensado e preparado.

Claro ordenamento urbano com referências directas à escala humana

A humanização e vitalização dos espaços públicos decorre sempre de um claro ordenamento de edifícios e espaços exteriores urbanos; um ordenamento urbano que se quer adequado e bem legível, numa aliança entre uma estrutura urbana funcional e uma imagem urbana humanizada, a dominância pedonal e a (re)estruturação funcional e de imagem da respectiva envolvente.
Quando dirigimos atenção para a humanização e vitalização dos espaços públicos temos de atender de forma específica a uma questão de escala do edificado, uma escala que tem de se harmonizar com o tecido urbano envolvente, mas que, acima de tudo, cada vez mais, tem de ser uma escala com referências directas à escala humana. Em tudo isto é fulcral o papel das fachadas dos edifícios, fachadas que evidenciam, por vezes, o corte entre a rua e o fogo, mas outras vezes amplificam a articulação entre esses dois mundos.




Fig. 4: vizinhanças reforçadas, ordenadas e à escala humana – espaços de vizinhança próxima bem configurados, abrigados/protectores e equipados; Cooperativa Habijovem Algarve, Albufeira (112 fogos), 1993; Arq. José Lopes da Costa.

Um conjunto integrado de espaços interiores e exteriores bem pormenorizados

Tal como tão bem disse, Ken Kern, o espaço urbano é um conjunto integrado de espaços interiores e exteriores, um espaço construído e tornado legível por hierarquias e estruturado por transições e continuidades, que vão lembrando o que fica para trás e antecipando agradavelmente o que está para a frente, numa sequência ramificada que se quer sempre bem presente e clara.
Nas vizinhanças próximas urbanas e residenciais, que são os principais e “primeiros” elementos de uma cidade coesa, humanizada e vitalizada, é fundamental a importância da boa forma geral e da boa pormenorização pois aqui estamos no mundo da proximidade, sítio de olhares muito frequentes e muito chegados, sítio com muitas e exigentes funcionalidades, sítio vital de transição entre o mundo privado de cada um e o mundo público e citadino que é de todos, sítio que quando falta ou quando defeituoso acarreta inúmeros problemas.

A grande importância do verde urbano e o vital papel da caracterização

A variedade, a riqueza, a atractividade e a agradabilidade do jardim residencial de vizinhança, um modelo de espaço público cujo interesse funcional e de imagem ao nível vicinal e urbano e cuja importância estão ainda longe de serem justamente reconhecidos, seja para o recreio e lazer, seja para a formação dos mais novos e para o dia-a-dia dos mais velhos, seja para o convívio entre todos, seja para o equilíbrio microclimático local, seja para a própria saúde psicológica dos residentes.
Tal como diz Christian Norberg-Schulz o carácter e a caracterização é mesmo o verdadeiro assunto da arquitectura, um assunto que marca o edificado e transborda sobre os exteriores contíguos de uma forma que tem de ser natural para ser efectiva e culturalmente válida. Não podemos fazer espaços urbanos e residenciais sem forma própria e sem identidade, afinal estamos a construir, melhor ou pior, uma cidade que vai durar.



Fig. 5: interior/exterior, verde urbano e caracterização – um jardim residencial de vizinhança do conjunto da Cooperativa Coociclo, em Telheiras, Lisboa (1989), projecto coordenado pelo Arq. Duarte Nuno Simões.

A boa prática da pequena escala e da modelação da paisagem urbana

A grande prática que deve ser seguida no bem fazer pequenos e bem configurados espaços exteriores e a grande prática da pormenorização que deve preencher e dar uma verdadeira alma aos grandes espaços públicos exteriores.
É essencial um grande cuidado na modelação da paisagem urbana, pois é esta que acompanha, complementa e caracteriza o espaço público dando-lhe boa parte dos seus conteúdos funcionais e de imagem; trata-se de níveis consecutivos de cenários, distintos mas ligados, trata-se de uma essencial relação de integração por continuidades e por contrastes cuidadosos.

Espaços públicos urbanos amigos das crianças e dos mais velhos

Fazer cidade habitada e amigável, cidade ligada ao clima e à paisagem, cidade em si própria paisagem urbana e humana, cidade que acompanha e enriquece quem a habita, cidade que apoia quem a habita, proporcionando, ao longo das suas ruas e outros espaços coesos, contínuas e graduais aulas de vida e de sociedade, aos mais novos, amparando-os e estimulando-os, num quadro global seguro e formativo, enquanto acarinha, envolve e protege os mais velhos, os mais lentos, dando-lhes condições de tranquilidade urbana, de estadia e de convívio mitigado no exterior. Assim se dá mais tempo e qualidade de vida, directa e indirectamente, nos variados e estimulantes cenários que são oferecidos e numa vitalidade diária que pode cativar em cada esquina, em cada praceta, em cada esplanada e em cada pequeno jardim.
Fazer cidade habitada e amiga das crianças e dos mais velhos é fazer uma cidade que serve melhor aqueles que mais a usam e aqueles que mais vida lhe dão, e que naturalmente são aqueles que precisam de condições urbanas de segurança, acessibilidade e conforto mais cuidadas, e fazer esta cidade não é apenas fazer alguns espaços específicos para as diversas idades, que também são precisos naturalmente, mas é, sim, essencialmente, fazer uma cidade arquitectónica e culturalmente válida, espacialmente integrada e socialmente solidária e viva.




Fig. 6: pequena escala bem modelada em espaços urbanos amigáveis – pormenor do conjunto municipal de realojamento em Santa Maria da Feira, projecto do Arq.º Bruno Marques (1999).

Notas conclusivas

Fazer bem o espaço urbano passa por fazer espaços naturalmente formativos, emocionantes, protectores e confortáveis, portanto, fazer espaços urbanos vivos e humanizados.
É preciso conhecer, urgentemente, o que se fez bem em termos de urbanismo residencial, para se perceberem um pouco melhor os aspectos ligados à humanização e vitalização do espaço público habitado. É preciso dar a devida importância à luta pela humanização e vitalização do espaço urbano. é preciso que a vida e a qualidade de vida sejam realmente bem servidas pela técnica.



Fig. 7: o Bairro Económico da Chamusca; projecto de Bartolomeu Costa Cabral e Vasco Croft de Moura (1960).

Temos a obrigação urgente, hoje em dia, de tudo fazer para quando falarmos de espaço público, e tal como diz Yves Lyon, falarmos de “virtudes, energias e motivos fundadores, ideias de civilização, ideias de colectivo.”
E devemos ter bem presentes as palavras de Gonçalo Ribeiro Telles, quando refere que depois dos espaços privados e públicos, surge o “espaço livre comum”, espaço este que Ribeiro Telles refere ser bem observável, designadamente, em partes dos Bairros de Alvalade e de Olivais em Lisboa.
Parece, assim, que só falta observar bem e caracterizar estes e outros espaços, (re)descobrindo as tais “ideias de civilização”, os tais “motivos fundadores.”
E, nestas matérias, e também fazendo justiça ao título deste artigo, é sempre interessante recordar uma frase-chave de Frank Lloyd Wright: “All fine architectural values are human values, else not valuable”; uma frase que parece poder ajudar a desfazer muitas confusões que por aí existem nestas áreas da qualidade arquitectónica residencial.

(Frase citada por Ana G. Cañizares, em “Great New Buildings of the World”, Nova Iorque, Harper Design, 2005, p. 6)
Lisboa, Encarnação, Olivais Norte
10 de Agosto de 2006

sexta-feira, agosto 04, 2006

97 - O Espaço Como Dominação e Consciência - um artigo de M. Luiza Forneck - Infohabitar 97

 - Infohabitar 97


É com uma especial satisfação que acolhemos, novamente, nas “páginas” do nosso Infohabitar, um artigo da nossa colaboradora Profª. Maria Luiza Forneck.
E esta satisfação justifica-se seja porque se trata, pela primeira vez, na nossa revista, de um artigo que cruza, especificamente, as áreas do habitar e da história, numa aliança que se julga, cada vez mais, fundamental e que pretendemos dinamizar na nossa revista/blog, seja porque se trata, também, embora indirectamente, de se chamar a atenção para a defesa dos direitos do povo guarani e para o grande interesse que tem, para todos nós, neste mundo e neste início de século, a consideração dos seus direitos históricos, o reforço da sua identidade cultural e o apoio às suas múltiplas manifestações sociais e artísticas; e a propósito não quero deixar de registar, aqui, um pequeno comentário da autora deste artigo, que serve também de breve introdução ao que, como verão, é um excelente texto de aliança entre habitar e história, infelizmente um habitar que é testemunho de uma extraordinária civilização que não teve continuidade, mas que nos deixou abundantes elementos de grande riqueza artística, que a todos enriquecem e que a todos podem levar a pensar um pouco sobre muitas questões, algumas delas bem actuais.
Dizia-me Maria Luiza Forneck no mail que acompanhou o envio do seu texto: “Escrevi esta crônica pelos guarani, povo que não se reergueu e pasme, a “reserva" em que moram alguns no meu estado tem 200 e poucos hectares! Há outras tribos que tiveram terras demarcadas no norte do País, mas estes... Quem luta por esta causa são os moradores atuais dos municípios da região e o Centro de Cultura Missioneira ... “



Trinidad, foto de Susana Abreu
Fiquemos, então, com mais um excelente artigo que nos vem do Sul do Brasil, chamando ainda a atenção para a revisão do texto, que foi feita pela Profª. Nadir Damiani, do Centro de Estudos Missioneiros, da Universidade do Alto Uruguai/RS, à qual o Infohabitar agradece e deseja que ultrapasse, rapidamente, os actuais obstáculos no seu doutorado.
Um último e bem merecido destaque para as excelentes imagens que ilustram o artigo e cuja autoria é de Susana Abreu – a excepção a esta regra é a imagem de satélite que abre o artigo e que, tal como é bem visível, é do Google Earth.

O  Espaço Como Dominação e Consciência

um artigo de  M. Luiza Forneck




O Espaço Como Dominação e Consciência
Maria Luiza Forneck(*)
Trinidad, Google Earth
Peço desculpas aos historiadores pelas imprecisões ao discorrer sobre a civilização jesuítico guarani, havida na América do Sul, durante o processo de colonização de terras na Bacia Platina pelas coroas Ibéricas, nos séculos XV e XVIII.. Situada nos atuais territórios de Brasil, Argentina e Paraguai, a região conheceu muitos conflitos durante o período colonial e, em decorrência, vários Tratados entre seus colonizadores - Tordesilhas, Madrid, Santo Ildefonso, El Pardo, Badajós, entre outros -, buscaram a delimitação de fronteiras e a resolução de questões políticas e sócio-econômicas.
Uma recente viagem ofereceu-me mais elementos e pude verificar, que no período de trinta anos da primeira visita, a evolução do conhecimento obtida por estudiosos, leigos e autoridades em valorizar, através de pesquisas e escavações o legado desta experiência, demasiada ousada até para os dias atuais.



S. Inacio, foto de Susana Abreu
Mas porque interessaria aos que se dedicam à análise do urbano a saga deste povo? Creio que uma reconstituição de como o espaço foi utilizado pelos jesuítas nas reduções - pequenos aglomerados que não deveriam ultrapassar cinco mil moradores, pois chegado este limite fundava-se outro -, além da sua organização interna dizem do propósito de controlar corações e mentes. E pasmem, os guarani até o encontro com os jesuítas, eram seminômades. Provenientes da Floresta Amazônica, foram os primeiros a praticar a agricultura. Além disso, caçavam, pescavam e coletavam, além também possuir habilidades guerreiras.De 1609 a 1706, foram fundadas 67 reduções mas apenas 30 desenvolveram-se, tornando-se auto-suficientes economicamente. Vinculadas à administração da Espanha colonial, chegaram a abrigar em torno de cem mil índios. Visitei três das que se encontram em melhor estado: São Miguel Arcanjo/RS, no Brasil; San Inácio Mini/Missiones, na Argentina e Nossa Senhora da Santíssima Trindade/Itapuã, no Paraguai. Os sítios arqueológicos foram tombados pela UNESCO como Patrimônio Histórico da Humanidade. No Brasil, há, em frente às ruínas de São Miguel, o Museu das Missões, projetado por Lúcio Costa – autor do plano para a cidade de Brasília – que possui o maior acervo de arte sacra missioneira do País, abrigando a imaginária Guarani, feita pelos indígenas nos séculos XVII e XVIII.



S. Miguel, foto de Susana Abreu
Sua arte, conhecida como barroco missioneiro, atesta a capacidade de aprendizado de uns e o sucesso de outros na difusão da fé no continente americano. Hoje, os descendentes dos indígenas, pouco numerosos, mantêm o idioma guarani como língua oficial, mas também falam o português e o espanhol. Na Argentina, recusaram-se a falar conosco, fazendo sinais com os dedos do valor, em pesos apenas, que aceitam em troca de seus produtos. Infelizmente para eles, em guarani só se conta até cinco, o que dá idéia do pouco que podem obter... E seu artesanato não mais reproduz a figura de Jesus Cristo, de anjos ou santos, que inspiraram as imagens existentes no museu do lado brasileiro.
As ruínas de São Miguel restringem-se a uma bela catedral e todas as noites, a saga da quase extinção deste povo é encenada, num espetáculo de Som e Luz. Na Argentina e no Paraguai, os guias são descendentes dessa tribo, já integrados à “nossa” cultura. E o que sobrou da redução de Nossa Senhora da Santíssima Trindade permite perceber a disposição interna dos prédios, obedecida em todas as reduções, onde nada foi deixado ao acaso ou improviso.



Trinidad, foto de Susana Abreu
E foi através da organização espacial de “funções” no espaço interno, do número máximo de habitantes permitido em cada redução - uma área “urbana” no centro de áreas agrícolas e pastoris -, aliado ao prévio convencimento dos caciques, que compreendi a importância da utilização do espaço como aliado do afã “pedagógico” dos jesuítas. Os indígenas, no entanto, se adaptaram ao sistema reducional e ao catolicismo como forma de sobrevivência, mas nunca deixaram de praticar a sua religiosidade, Seu legado inclui heranças como: 20% do vocabulário – em português -, o hábito do chimarrão, do churrasco, da farinha de mandioca e de outros legumes; do banho diário, do modelo de chiripá; do uso do poncho de lã natural; dentre outros (**).
As ruínas de todas as reduções mostram: a praça central e a catedral com a morada dos jesuítas ao lado; o cabildo (espécie de prefeitura), onde caciques e índios discutiam as decisões a tomar; a disposição das casas e locais de trabalho; a casa das viúvas; a prisão onde eram castigados os que discordavam das decisões “coletivas”; os cemitérios, onde até crianças foram separadas dos adultos, e entre elas por sexo; atestando a preocupação em utilizar, ao máximo, o espaço a serviço de um propósito...



Trinidad, foto de Susana Abreu
Os guarani, um povo ao mesmo tempo guerreiro e dócil teve uma contribuição neste período que não se restringiu a trabalhos manuais, mas na escrita, na elaboração de instrumentos musicais, ao mesmo tempo em que produziam um excedente notável em erva-mate, couro e chifres para exportação. Sem serem escravizados, aceitavam de boa vontade o regime de produção trazido pelos jesuítas, que incluía a importância de que os resultados obtidos deveriam ser reinvestidos e uma parcela distribuída a seus produtores. E assim os indígenas acreditaram que viveriam “um pedacinho do Céu na Terra”...
Conceitos por demais subversivos: um índio que não é preguiçoso? Que discute o destino de sua produção? Que fabrica máquinas para imprimir livros? Que lê e toca instrumentos musicais sofisticados? Idéias como estas levaram o Marquês de Pombal determinar a expulsão dos jesuítas, pois o território dava mostras de poder tornar-se uma nova nação. E ainda mais, as reduções estavam em território que, pelo tratado então vigente entre Portugal e Espanha, o de Tordesilhas, de 1494, eram terras pertencentes à Espanha.



Trinidad, foto de Susana Abreu
Mas o espaço serve à dominação, mas também trabalha em prol da consciência. Expulsos, por força de uma troca do território onde se assentavam Os Sete Povos das Missões pela Colônia de Sacramento – ao sul do Uruguai - os guarani, chefiados por um mitológico líder Sepé Tiarajú, ousaram despertar a ira de Portugal e Espanha, bradando “Esta terra tem dono”. Abandonados por seus mentores, enfrentaram sozinhos, na chamada “Guerra Guaranítica”, os exércitos de seus colonizadores juntos, o que resultou no quase completo extermínio de seu povo e de suas “cidades”, esculpidas em pedra, que o vento e as intempéries estão por devastar também.
Quem olhar atentamente o traçado “urbano” obedecido pelas reduções, onde os índios passaram a viver e foram convencidos a produzir de boa vontade, ouvindo a história de Cristo Redentor, verá que o espaço foi cientificamente pensado a serviço do triunfo de um Poder que, por fim, os aniquilaria quase por completo.
(*) Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS e Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia universidade Católica de São Paulo- PUC/SP.
(**) Agradeço à profª Nadir Damiani, do Centro de Estudos Missioneiros, da Universidade do Alto Uruguai/RS, a revisão das muitas imprecisões cometidas ao elaborar esta crônica.
Contacto da autora das fotografias: Susana Abreu, susana@rotacultural.com.br