terça-feira, setembro 27, 2005

42 - Ordenamento, revitalização da memória e Prémio INH - um texto de Maria Celeste Ramos - Infohabitar 42

 - Infohabitar 42



Portugal premiado e que premeia - O ordenamento do território, a revitalização da memória das paisagens e dos homens e o Prémio INH



Premiar algo, ou alguém, sempre foi e será um estímulo, tanto para a criança como para o adulto, não importa em que manifestação da vida, porque se vive continuamente frente ao exterior do qual se precisa de receber uma "referência" – somos seres sociais. Qualquer prémio é um agradecimento, tal como são também as palmas de satisfação que irrompem de um teatro, ao ouvir-se um qualquer espectáculo que deliciou os presentes, num acto de pura e espontânea generosidade de quem não ficou indiferente, resposta colectiva a uma acção de quem serve o colectivo com qualidade.

Portugal e os portugueses lidam mal com a sua própria qualidade, mas é necessário premiar dando o melhor em cada fase importante da vida, para não se ficar no prémio póstumo. Como exemplo da pouca atenção que se dá à falta de qualidade do espaço doméstico, que tem de ser "casa para o homem ter conforto e ser feliz", refere-se que a actual forma de construir habitação revela, entre outras, uma tal irreverência intelectual que conduz a uma total ignorância do "lugar", da sua história ligada aos "habitantes" da natureza (entre os quais se incluem os rios e ribeiras, (e) as árvores, as ervas secas do verão mediterrânico, os pássaros e os grandes e pequenos relevos), e das tipologias e formas de povoamento milenares.


Assiste-se, assim, frequentemente, a uma pretensiosa modernidade de utilização, sem qualquer propósito, de materiais e cor "estrangeiros" aos locais, e mesmo à luz dos locais, como se fosse natural mudar de B.I. local e regional, assim do dia para a noite, e fazer desmoronar todo o passado e a memória portuguesa que fala do tempo de civilização e de consciência colectiva. E onde e em que estado está ele, o espírito de cada paisagem, que em cada local conta uma parte crucial da História dos Homens.
E note-se bem que até os pássaros constroem os seus ninhos, na terra, na água, ou no topo de uma árvore a sua casa para o encontro do casal e a nidificação. E ainda mais extraordinário são os pássaros jardineiros cujo ninho é uma obra de arte, construído no chão, feito de palhas e ramos e que não se esquecem, para encantar mais a fêmea, de enfeitar com o que se denomina "jóias", sejam ervas ou flores, ou pedrinhas todas iguais, para atapetar o chão – é a construção do maravilhoso, que outra designação posso dar ao que vi fazer?
A Natureza é mais forte do que a arte do Homem. A habitação do Homem tem de obedecer, pelo menos, a "dimensões" mínimas – é o território fundamental onde a vida privada se desenrola. Mas, actualmente, parece que a "nova" arquitectura está sequestrada, como se disse, pelos novos materiais e pela cor, para além de não ser criteriosa na escolha do local de implantação; e tal falta de critério leva à invasão do campo, porque o campo está a ser invadido, sem sequer haver objectiva e actualmente qualquer necessidade de tal acontecer, e embora tenha sido sempre à custa do "campo" que a cidade se desenvolveu, mas integrando valores naturais.




E sublinha-se que toda e qualquer espécie animal e vegetal não pode sobreviver sem a sua dimensão vital territorial; e, portanto, não é indiferente que uma dada utilização do território seja aqui ou acolá e feita desta ou daquela maneiras – têm de ser uma localização/implantação e uma caracterização realmente específicas e adequadas.
Ao falar dessa dimensão territorial importa salientar que a casa do homem é mais do que a habitação, é o primeiro espaço colectivo e espaço cultural, e que a arquitectura que não identifica – que desidentifica –, e que desqualifica, contribui para um suicídio urbano, social, cultural e ecológico.
Alienar os espaços, mesmo construindo belos objectos de arquitectura aqui e acolá, é alienar a vida dos homens, porque "objectos isolados" não constroem cidade, não são urbanismo, não são cidade, não são "habitar", mas apenas objectos singulares que orientam e paginam a rua ou um lugar, mas que não se substituem aos verdadeiros lugares nem fazem disfarçar a envolvente sem beleza, da mesma forma que uma árvore isolada na cidade pontua um local específico, mas não pode servir para tapar a ausência de qualidade.
E porque também não se dá importância à terra na sua força vital, e ao que os homens sabiam das forças da Natureza – e foram fazendo "lugares mágicos", – também a mesma força vital tudo pode fazer desmoronar de forma incontrolável, sendo o homem a maior e última vítima, não apenas materialmente, mas também psíquica e culturalmente.





Destruir as paisagens é destruir a História e, sem ela, um povo entra numa total degradação sem regeneração, pois resta apenas o deserto físico e cultural; porque é tão vital (aprender a) ler as paisagens como (aprender a) ler a língua-mãe. E, já agora, refere-se que o deserto físico natural que era com a formação da Terra apenas 20% do Globo, ultrapassa agora mais de 40%, e feito pela mão do homem.
Tem sido relegada para a indiferença a possibilidade de cada um, individualmente, conquistar algo para mostrar a si próprio e à sociedade. Instalou-se, de algum modo, a lei do menor esforço e da ausência de ambição intelectual e cultural sem o que o poder crítico não existe, mas sim a demente tolerância, espécie de adormecimento que se apropriou do inconsciente, que o guarda e torna rotineiro.
Não premiar, é decisão recente para que "ninguém" se sinta humilhado ao lado de alguém com melhores resultados quanto ao que e como aprendeu, como se distinguir e premiar qualidade e aptidões não fosse, exactamente, uma das melhores formas que o mundo sempre usou para saber quem é quem, e quem melhor sabe fazer para proveito individual e colectivo. Porque, afinal, premiar, é uma forma de magnificar.
Talvez por tudo isso, neste tempo de globalização da informação e comunicação se torne mais visível a evidência das características negativas, já tratadas a nível de estudos sociológicos, manifestadas também por grandes escritores e pensadores portugueses, das quais as mais citadas serão, à nossa escala nacional, a inveja, a falta de auto-estima, a depressão colectiva, e o "medo", entre outras. O que não parece, contudo, ser visível nas comunidades portuguesas que se encorajaram a largar as fronteiras de "casa"; já que, "lá fora", são consideradas como a "melhor mão-de-obra", até, por exemplo, de grandes e emblemáticas obras públicas.
Eu recuso "marcas" de fatalidade-fadista e incompetência. É necessário premiar, em Portugal, ou elogiar de qualquer forma, ainda em vida, mas fazer isso, sem cair no oposto da patética auto-promoção e narcisismo nacional.




É preciso, urgentemente, recomeçar e revitalizar o valor do que é nacional, o que passa pelo revitalizar do amor ao saber e às paisagens milenares que foram descaracterizadas mesmo adentro dos espaços históricos que, envelhecidos, merecem a sua urgente recuperação antes que desmoronem mais, mas também passa por uma moderna arquitectura que faça diálogo concertado com o passado; porque as cidades têm de evoluir, em vez de serem desmanteladas pela total ausência de valores de qualidade, da salvaguarda da memória, e do entendimento dos lugares como elevação cultural e mesmo espiritual.
A cidade geradora e incubadora de "ideias" envelheceu, e com ela os habitantes, que adormeceram. A cidade não é mais tida como o cadinho de cultura concentrada e sua difusora, mas apenas como o lugar "onde se mora".
Ora a cidade é, para além das "Áreas Protegidas", a ferramenta fundamental de ordenamento das paisagens e de valorização dos territórios e de todos os seus habitantes, os homens, os animais e as plantas; mas um ordenamento não é gestão física e zonamento administrativo, mas sim compreensão do complexo biofísico responsável pela manutenção da dinâmica de continuidade da biodiversidade e de crescente e coerente qualidade de vida, do ambiente natural e da cultura dos homens.
O nascer do sentido moderno de ordenamento no pós-industrial de há pouco mais de dois séculos, já se entornou contra o seu sentido de ordem, sendo agora o próprio tecido urbano, onde o ordenamento começou, que se rompe e vai desaguar, como efluente, no campo.





Ao moderno ordenamento da cidade seguiu-se o do campo, que já era belo e ordenado, segundo leis naturais, mas ao que se acrescentou modernidade fazendo-se nascer as mais belas paisagens como desenhadas por "arquitecto" num vaivém ordem da cidade/ordem do campo interligados e inter-dependentes.
Mas mais uma vez a cidade cresceu e se desorganizou, e o campo a seguir, num vaivém de ordem/desordem, culminando actualmente na desordem global acrescentada pela provocada pelo sistema viário de velocidade que em vez de humanizar os espaços como função inicial, ajudou a desmantelá-los destruindo a sua harmonia e os núcleos responsáveis pela dinâmica de geração da vida diferenciada em cada ecossistema; destruindo-se grandes e pequenos relevos, destruindo-se climas, retalhando-se territórios e ecossistemas e dando-se passos largos no sentido da desertificação biofísica, fruto último do subdesenvolvimento intelectual.
Sublinha-se, novamente, que premiar é distinguir pela qualidade, e é estímulo para o crescimento da qualidade. E lembremos que o País tem na sua História um Papa, um prémio Nobel de Medicina e outro de Literatura entre tantos ligados ao "pilar" nacional (o pensamento - a literatura - tornando o país único celebrante de um Dia Nacional que celebra A Língua). Isto entre tantos outros prémios internacionais, por exemplo, de cinema, de televisão, de arquitectura e de arquitectura-paisagista, de design e de desporto. Mas onde está a divulgação destas listagens para que sejam de todos conhecidas, e para que sirvam de estímulo natural? Substituindo-se uma atitude envergonhada, como se nunca se passasse nada?
Mesmo que de forma ainda tímida e com correcções que deveriam ser feitas para que tenha maior eficácia e visibilidade, o Prémio do Instituto nacional de Habitação, o Prémio INH, que já vai na sua 17ª. edição, pretende, como mais nenhum prémio deste tipo, distinguir, não o "objecto" de habitação, mas o conjunto e a forma como se insere nas paisagens salvaguardando a sua aptidão e inserção, onde quer que seja, sem desmantelar espaços e respeitando lugares e preexistências.
Vai para além da qualidade da fachada e do desenvolvimento interno dos fogos, procurando também a melhor apropriação do virtual morador sem mais estigma de "habitação social", para que haja, simplesmente, habitar.




Há muito que pensar sobre tudo isto, e, designadamente, sobre os factores associados à qualificação arquitectónica e paisagística do habitar, já que os novos materiais e cores não têm, frequentemente, critério que dê continuidade ao espírito regional e tradicional, independentemente da crescente qualidade de alguns espaços públicos, materiais naturais e jardins que, finalmente, fazem parte da "unidade" de apreciação do Júri do Prémio INH e que têm sido importantes aspectos associados à conquista anual do Prémio, que sempre pretendeu prestigiar as respectivas equipas promotoras, as autarquias em que as obras se inserem e as populações a que os conjuntos se destinam.
Portugal tem 33 regiões naturais – tão diferentes –, e quem faz arquitectura tem de saber ler a diferença e integrá-la, em vez de unificar desqualificando, por ignorar o lugar que tem forma e cor "naturais"; o país não pode "mudar de visual" e tornar-se "irreconhecível" pelas gerações que dele têm outras memórias.
Portugal situado num centro geométrico do mundo e na latitude da Ecúmena, tem todo o ano uma luz natural especial, transparente e clara, o que só por si é matéria de inspiração para desenhar com a luz, desenhar com a natureza, desenhar com o clima
Os conjuntos edificados, como as áreas protegidas, são ferramenta primordial de ordenamento e não de destroço da memória contida no mosaico paisagístico, cultural, e socio-económico. As paisagens, como as cidades, são espelho da inteligência e saúde do país e dos seus habitantes. O Prémio INH pode ser um importante responsável pelo renascer do sentido de cidade e do habitar e ser semente de novo ordenamento urbano.

Maria Celeste d’Oliveira Ramos, Arq.ª paisagista, Eng.ª silvicultora

As imagens são de António Baptista Coelho: fig. 01, praça em Arraiolos; fig. 02 natureza; fig. 03, Santuário do Cabo Espichel; fig. 04, natureza, S. Miguel, Açores; fig. 05, natureza humanizada, parque Gulbenkian, Lisboa (arq. pais. Gonçalo Ribeiro Telles, cerca de 1970); fig. 06, o muito humano pequeno bairro do Telheiro, promoção da C.M. de Matosinhos (arq. Manuel Correia Fernandes, 2002).

quinta-feira, setembro 22, 2005

41 - As grandes cidades e a origem das cidades – I - Infohabitar 41

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As grandes cidades e a origem das cidades – I




O homem foi moldando o espaço às suas necessidades, e tudo bem enquanto o homem não teve o poder necessário para de subverter a ordem natural e paisagística. Aí começaram os problemas graves, hoje tão evidentes e tão críticos.
Para não nos sentirmos, hoje, no início do século XXI, excessivamente culpados, da fealdade e do caos urbano que nos rodeia, importa ter presente que a realidade da “super-urbanização” com a criação de metrópoles gigantescas e a referida e terrível subversão das paisagens é um fenómeno que aconteceu, de certa forma, há “instantes” na história do homem moderno.
Provavelmente uma das primeiras (pequenas) cidades foi Jericó (com cerca de 1000 habitantes em 2,5 hectares), que se situou/situa na actual Palestina, tendo surgido há cerca de 12.000 anos (ainda hoje existe uma cidade com esse nome, julga-se que sensivelmente no mesmo local), e as grandes metrópoles actuais, que são verdadeiras regiões/países, das quais é exemplo muito significativo São Paulo – com os seus 10 milhões de habitantes e 16 milhões na região metropolitana –, eram apenas grandes cidades em meados do século XX. São Paulo tinha no início do século XX um pouco mais de 130.000 habitantes e cerca de três milhões no início da década de 60 do mesmo século.
E em tudo isto também é esclarecedor constatar que, embora o fogo tenha sido dominado há cerca de 500.000 anos (meio milhão de anos num planeta com cerca de 4.500 milhões de anos), o homem moderno (o tal sapiens-sapiens) tem, “apenas”, uma história máxima de cerca de 150.000 anos e uma história cultural mais consistente entre cerca de 30.000 e 50.000 anos (mas os primeiros hominídeos viveram há cerca de cinco milhões de anos).



O pensamento simbólico e a arte parece surgir (só) há cerca de 30.000 anos – quando a esperança de vida passa de cerca de 15 para 30 anos e os humanos “se tornam mais sábios” (artigo de Maggie Fox no Público) pois começam a tomar conta e a dar valor aos mais velhos e mais fracos – a importância da afectividade, da solidariedade e da experiência.
E é assim que o desenvolvimento do pensamento simbólico e da arte antecipa, afinal, a própria invenção, primeiro, dos pequenos espaços urbanos constituídos por orgânicos aglomerados de casas, sem ruas, e depois do sistema de casas ligado e separado por ruas e outros espaços de invenção do sentido cívico, de que é exemplo a tal pequena cidade de Jericó há cerca de 12.000 anos, que terá sido antecedida por muitos pequenos povoados cuja localização se revela, naturalmente, muito difícil.
A ideia que neste pequeno texto se quer deixar é que não sabemos nem, verdadeiramente, podemos saber lidar com o tecido urbano das super-cidades e da super-urbanização, pois não temos experiência prévia de tais situações. A história da vida urbana é, realmente, muito curta e não temos possibilidade de actuar segundo a experiência adquirida nas grandes cidades, pois aqui estamos a entrar constantemente em novos territórios.
Podemos, sim, avançar, positivamente, com ideias fortes, ideias claras e positivas sobre valores acima de qualquer dúvida, como é a defesa e a valorização, sem tréguas, da paisagem natural e do património urbano e rural.
Naturalmente, há que continuar a moldar o espaço deste planeta às necessidades humanas, mas necessidades estas que devem também ser, cada vez mais, exigentes e esclarecidas; às vezes certas necessidades não serão provavelmente verdadeiras necessidades, mas sim resultados de circunstâncias e situações. A este nível, por exemplo, a questão da maior ou menor necessidade do veículo privado na cidade é algo que merece reflexão muito séria, pois provavelmente tal presença faz cada vez menos sentido; mas tal reflexão tem de ser obrigatoriamente articulada com outros aspectos e exigências de qualidade de vida, caso contrário corre-se o risco de o doente poder até morrer do remédio – o péssimo resultado para a sustentabilidade urbana que resultou do desenvolvimento de amplas zonas pedonais como sucedeu em São Paulo é exemplo vivo e constatável de uma importante faceta desta problemática.
Como acima se disse, o homem foi moldando o espaço às suas necessidades, e tudo bem durante os mais de dez mil anos em que não teve o poder necessário para, com a desculpa de tal adequação, contribuir criticamente para a subversão da ordem natural, paisagística e cultural, com um sentido amplo.
A qualidade de vida das populações era provavelmente uma preocupação pouco presente, quando a vida corria lentamente e as transformações espaciais urbanas e habitacionais sucediam com cadências extremamente lentas, de certa forma de acordo com o ritmo de vida lento que aconteceu até provavelmente meados do século XX; basta pensar um pouco sobre aquelas fotografias que vemos dos anos 40 e 50 em Portugal e também atentarmos nos filmes da época.
A partir de certa altura tudo adquiriu uma rapidez por vezes agressiva e explosiva, pensando na expansão urbana, e quando tal aconteceu não havia critérios “à altura” para racionalizar tal explosão dobrando-a no respeito pela salvaguarda da qualidade de vida das populações; provavelmente nem as populações tinham a noção de que deveriam poder ter essa qualidade de vida.
E aqui há também que considerar o que é isso de “qualidade de vida”. Será que é algo por todos assumido da mesma forma? E se acontecer, como parece provável, que haja diversas formas de entender e viver essa qualidade de vida, não haverá aspectos que devam e possam ser intensamente divulgados como fundamentais e potencialmente generalizáveis? As tais ideias fortes, claras e positivas sobre valores acima de qualquer dúvida, como é a defesa e a valorização, sem tréguas, da paisagem natural e do património urbano e rural.
E para se avançar desta forma não podemos ser excessivamente optimistas e confiar inteiramente na boa vontade, na racionalidade, na ponderação, na sensatez e na imparcialidade dos actores envolvidos nas decisões sobre essas temáticas.
Lisboa, Encarnação, 22 de Setembro de 2005

António Baptista Coelho

quinta-feira, setembro 15, 2005

40 - Da arquitectura dos sítios e das paisagens – e a propósito um grande texto de Aquilino Ribeiro - Infohabitar 40

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Da arquitectura dos sítios e das paisagens – sobre a integração e a propósito um grande texto de Aquilino Ribeiro

Artigo de António Baptista Coelho

A integração é, provavelmente, a qualidade chave, e a qualidade última que poderá ainda ajudar a salvaguardar e a regenerar partes das nossas paisagens construídas e naturais, que tanto têm sofrido ao longo de dezenas de anos de contínua e criminosa agressão ao nosso património cultural.
Por isso aqui se volta ao tema da integração, considerado como motivo fundamental daquela que pode e deve ser uma arquitectura dos sítios e das paisagens.
Numa altura em que se começa, finalmente, a discutir até onde, de que modos e com que meios de enquadramento se poderá ir no controlo do desenho da arquitectura – tema sempre importante, mas que adquire relevo especial quando ainda há tantos não-arquitectos a projectar arquitectura e há já também mais de 10. 000 arquitectos preparados para projectar –, é crucial focar a nossa atenção na valia real que tem uma cuidada e completa integração, nos seus múltiplos aspectos, mais funcionais, mais visuais/ambientais e mais caracterizadores, mas sempre obrigados a uma opção de respeito básico e culturalmente enriquecedor por cada sítio e por cada paisagem.


A integração serve a integridade, que é o estado de uma coisa ou de um contexto completo, uma totalidade onde não falta nem um elemento de conteúdo e de relação. Por outro lado a integração significa o acto de completar e tornar inteiro ou completo por assimilação e agregação; afinal, o acto de reunir.
Ser íntegro é estar total e adequadamente composto, integrado por todos os necessários e habituais elementos e relações que constituem a respectiva totalidade, o contexto completo.
Estar integrado é fazer parte da totalidade que é reunião de um grupo de elementos cada qual, por si só, significante, mas que também retira significado e função do seu papel na constituição e no funcionamento do todo.
Estar integrado, para além de querer dizer harmonização no conjunto de que se faz parte, também significa cooperação activa no estabelecimento e no posterior desenvolvimento de um dado contexto. Afinal, a adequada reunião num todo composto e completo tem de ser mais do que a simples adição das suas partes constituintes – na imagem seguinte a casa Pacheco de Melo, na Ilha de S. Miguel, em S. Vicente Ferreira, perto da Canada dos Barões, desenhada pelo Arq. Pedro Maurício Borges e que foi Prémio Secil Arquitectura 2002.


Faz-se, em seguida, com o devido respeito, a transcrição de um encadeado de trechos da belíssima crónica romanceada de Aquilino Ribeiro, "A Casa Grande de Romarigães" (1959, pp. 20, 21, 25, 27 e 36), livro que muito se recomenda e onde se encontra, ao longo de várias frases/imagens, uma perfeita definição da integração residencial no contexto natural, e das partes no "todo" que deve constituir cada casa, aqui considerada, naturalmente, um pouco como símbolo do sítio de habitar, o sítio habitado, portanto, marcado pelo homem, mas também, como se poderá em seguida visualizar, em grande e simples integração com a natureza, e, portanto, também por ela bem marcado:
"Ao subir pela vereda que passava a meio monte um bando de perdizes tocou os alegres tintinábulos... e novamente se viu sozinho sob a copa esplêndida do céu ... Voltou-se para o grande baldio, vestido com a serguilha ruça do matiço, pespontado de sobros, carvalhos cerquinhos e pinheiros, uma frondosa mata a sudoeste, tudo a crescer à rédea solta da natureza, irreprimìvelmente... A água reluzia aqui e além nos algares das chãs e nos estirões rectos das regueiras, perdida e tão mal empregada que era abusar da bondade de Deus não a encaminhar para onde criasse flores e frutos. E o sol, um sol rijo e pesadão...espojava-se sobre a terra à maneira duma galinha choca sobre os ovos da postura.
- Que rica quinta aqui se fazia! – tornou a dizer para consigo, filho revesso de campónios, a quem a patena e o cálice não haviam obliterado o sentido da terra.
...
Práticos em castrametação agrícola riscaram a linha circundante, bem como estabeleceram a melhor área para o solar, quartéis de servos e estábulos...
...
...Em menos de um ano pôde murar uma vasta área, captar águas perdidas e plantar bacelos com que se propôs espaldar de cordões e parreiras os socalcos e cômoros da propriedade. E não se esqueceu de um colmeal nos abrigos soalheiros da mata, que àquela altura do mundo era letra viva o ditado: «quem tem abelha, ovelha e moinho no rio, entrará com el-rei ao desafio.»


...
A casa de torre, como incumbia a um homem de prol, ostentava já telhados de várias águas e, nos salões e quartos, os mestres de Azurara e de Barcelos deitavam tectos de apainelados e de masseira em castanho e bom carvalho. Já todas as janelas, em que perpassava um arzinho remoto de Renascimento, tinham portadas. À margem do caminho que ligava Sampaio com Romarigães deixara lugar para a capela que prometera a Nossa Senhora do Amaparo...Não tardou que o licenciado ali tivesse câmara própria para dormir...
...
Em menos de cinco anos estava acabada a Casa Grande, prédio de torre, com largos salões e muitos cómodos, no flanco a capela de N.ª S.ª do Amparo, e uma cozinha de lajedo e chaminé de barretina... A fonte, perto do corgo, gorgolejava por uma bocarra ... abundante e fresca água. E o bastio de pinheiros e carvalhiços cobria já o cerro em frente, unido à velha mata e populosa cidade dos pássaros. À tarde a brisa, que subia desde a costa pelo estuário do Coura, arrepiava-lhe brandamente as corutas e uma onda balsâmica e elísia varria a Casa Grande."

domingo, setembro 11, 2005

39 - Casas envolventes e vivas (I) - Infohabitar 39

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Casas envolventes e vivas (I)

Texto de António baptista Coelho

Ainda na sequência do triste evento da morte de Fernando Távora e da transmissão televisiva de um belo programa sobre o arquitecto, em que ele próprio falava de tudo aquilo de que iria ter falta, ou saudade ou pena de deixar: entre tudo isso a sua casa ocupava claramente um lugar muito importante.
A memória falha-me sobre a longa frase que Fernando Távora usou, quando, sentado numa sala da sua casa falava para a câmara de televisão e passava com os olhos em volta e dizia, julgo - mas posso estar enganado em vários pormenores -, que iria ter uma grande pena de deixar aquela casa, a família, os livros, os amigos, as paisagens, afinal a vida e que tudo o que nos rodeava era extraordinário e valia muito muito a pena..
Não é, como referi, uma citação. É apenas uma aproximação à ideia que foi então expressa por Távora. E associado a esta ideia o arquitecto dizia que tinha refeito longa e pormenorizadamente a sua casa ao longo dos anos, mantendo-lhe o carácter e a força mas afeiçoando-a, provavelmente, em diversas facetas do habitar e da ligação entre o habitante e a sua envolvente doméstica.
Foi algo digno de ser notado o lugar privilegiado em que Távora colocou o seu mundo doméstico entre aquilo que vale bem a pena viver.
A ideia que assim fica em evidência é a verdadeira fulcral importância que tem a casa de cada um e de cada agregado na vida dos homens. É um lugar comum esta importância? Não, claramente, não, porque se sobre os aspectos quantitativos da qualidade da doméstica, como é, por exemplo, o caso da disponibilidade equilibrada e judiciosa de espaço, ainda muito há a ponderar; que dizer dos múltiplos aspectos caracterizadamente qualitativos do ambiente doméstico?
A casa de cada um pode e deve ser um factor fundamental da qualidade de vida, por aquilo que a casa directamente oferece e por aquilo que a casa directa ou indirectamente propicia e estimula, como é o caso, só para referir alguns poucos exemplos, do convívio familiar dinamizado e alargado, e da positiva predisposição para fruir a cidade e o espaço público com uma disposição positiva e cívica.
Como é que em tudo isto, por exemplo no carácter interior e exterior da casa e da vizinhança e inclusivamente nos aspectos menos objectivos de factores objectivos como a espaciosidade, influi um bom desenho de arquitectura, um bom “partido”, uma solução eficaz e estimulante e uma ideia culturalmente bem radicada; são todos aspectos da famosa aliança entre a arte e a técnica que faz a boa arquitectura e sobre os quais é fundamental ponderar e cuidadosa e sequencialmente concluir.
Uma coisa é certa, boas casas são fundamentais para boas vidas humanas, quem sabe até para boas passagens desta para outras realidades; pois afinal cada dia positivamente vivido num mundo doméstico humanizado e envolvente é algo que provavelmente não tem preço.


Este texto é o primeiro de uma sequência de ideias escritas sobre o tema das “casas envolventes e vivas” (a sair sem uma ordem definida), que serão sempre associadas a uma poesia que tenha casas dessas. A primeira tem o título “A menina e a Casa” e é de Gilberto Freyre, da obra “De Pai para Filha”, de 1943.
A Menina e a Casa
Minha Sonia
Minha Sonia
Minha Soninha Maria
Nesta casa
Neste mato
Quero ver Sonia crescer.
A casa é cheia de livro
O mato é cheio de bicho
Os livros contam histórias
Os bichos contam também
Mesmo as mesas, mesmo as plantas
Os retratos dos vovós
As panelas da cozinha
Mangueiras e coisas velhas
Têm boca falam também
Dizem segredos bonitos
Que os meninos
Que os poetas
Ouvem ninguém sabe como.
Quero ver Sonia Maria
Conversando com as galinhas
Com o gato
Com os passarinhos
Com a cadeira de balanço
Com o rio que passa perto
Preguiçoso dando voltas
Sem pressa de ir pro mar
Com as estrelas com as palmeiras
Com as cigarras dos bambus
Com os pingos d’água de chuva
E mesmo com os cururus
Com os livros cheios de histórias
Com os almanaques
Com os quadros
E com a melhor das mamães.



A poesia acima incluída foi retirada de um excelente site brasileiro sobre Gilberto Freyre, que se aponta em seguida: Biblioteca Virtual Gilberto Freyre - prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/mapa.html
António Baptista Coelho, Encarnação, 11 de Setembro de 2005


domingo, setembro 04, 2005

38 - Sentido do lugar – I, em memória de Fernando Távora - Infohabitar 38

<span>Távora</span>
 - Infohabitar 38


Sentido do lugar – I, em memória de Fernando Távora

Fazer arquitectura, da casa à rua, é uma acção nobre e exigente. A sociedade de hoje é a da pressa e da ausência de referências, com ela temos de viver, mas nunca abdicando de contribuir, por todos os meios ao nosso alcance, para a manutenção, o reforço e a recuperação e valorização das nossas raízes culturais, humanas e paisagísticas; e aqui a paisagem tem, naturalmente, o sentido mais verdadeiro, que é amplo e profundo, e que vai do vale arborizado e fresco ao povoado branco e pedra que se funde no declive do terreno e na penumbra dos verdes.

Houve a vontade prévia de falar, neste pequeno texto, sobre a importância que sempre teve, e que hoje tem – de forma quase vital – o desenhar cada sítio como se ele fosse o último.
Que não seja estranha esta forma de falar. Lembro-me que sempre que havia um novo projecto de arquitectura para fazer, se entrava numa fase “estranha”, em que o tempo parecia que quase parava e que tudo, bem a propósito, se ia ali, naquele sítio, reinventar mais um pouco, construir ricamente mais um pouco, ajudando-se aquele sítio e mesmo um pouco do mundo a ficar um pouco mais interessante, agradável e desenhado; daí a vontade que sempre havia de folhear com olhos bem abertos muitas e muitas dezenas de revistas e alguns livros bem conhecidos mas sempre inspiradores.
Faz-se aqui um pequeno comentário marginal, mas que, como se verá, poderá ser significativo:
A vida de cada um é feita de uma espécie de acasos e de perspectivas que se tentam e depois se vão cumprindo, com maior ou menor fidelidade. Sendo assim, um dos primeiros livros de arquitectura em que viajei, solidamente, em pequenos mas tão grandes passos, foi o “Existência, espaço e arquitectura” (título informalmente passado para português) do extraordinário Christian Norberg-Schulz. Não será, aqui, hoje, muito mais citado, mas este livro é daqueles que faz pensar se valerá mais a pena pensar e escrever mais sobre o tema de que trata Naturalmente que sim, que vale, mas continua a parecer estar tudo lá.
A magia do lugar, o sentido e o sentir do vernáculo, o saboroso passar e marcar do tempo, a aliança profunda entre a natureza e a boa obra humana, o calor de um cultura que sendo de todos é também exigente, sempre nova e estimulante, as ideias peregrinas sobre o abrigo humano e sobre os locais do homem marcando recantos de colinas e caminhos, e aquela ideia que é possível fazer arquitectura que seja de hoje e de sempre, e que seja do homem e da cidade, e que seja do homem e da natureza, e, por que não dizê-lo, que seja do homem, mas que também o transcenda, apontando linhas de caminhos na existência e no espaço, uma arquitectura que fique para os filhos do homem e que, década após década, de forma sóbria mas segura, se vá enriquecendo de significados, cores, ambiências e sentidos, mas sempre, sempre, no respeito e no serviço do espírito do lugar e, naturalmente, do espírito do homem.
Este tema do “espírito do lugar” já estava pensado para ser texto antes da notícia da morte de Fernando Távora. Este tema já aqui tinha sido tratado, directa ou indirectamente, em vários textos e por várias pessoas, desde “a minha rua” aos “lugares sentidos”, só para dar dois exemplos. Provavelmente este tema, o do carácter do lugar, é, tal como defendia Norberg-Schulz, o verdadeiro tema da boa arquitectura, aquela que tem de fazer e, hoje, urgentemente, refazer, cidades e paisagens.

Este tema foi o tema da vida e da obra do mestre Fernando Távora.
“O autor da simbiose entre o movimento moderno e os modelos vernáculos, uma quase base programática da Escola do Porto, morreu ontem, com 83 anos, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. Culto e cosmopolita, Fernando Távora projectou bairros sociais e fez cirúrgicas adaptações de monumentos, destacando-se ainda como o professor ...” – “Fernando Távora, arquitecto - O mestre da nossa arquitectura”, artigo de Fernando.Madaíl com Maria.João.Pinto e Ricardo.Fonseca, Diário de Notícias, Domingo, 4 de Setembro de 2005, p. 34.

Seguem-se algumas imagens do ainda hoje moderno Bairro de Ramalde, conhecido como bairro do Inatel, no Porto. Este conjunto residencial, desenvolvido entre 1952 e 1960, integra-se nas experiências desenvolvidas no âmbito da habitação de interesse social promovida pelas Habitações Económicas – Federação das Caixas de Previdência (HE-FCP).





Ramalde, tal como refere o arquitecto Francisco Barata, constitui “a primeira referência às propostas do movimento moderno no âmbito da habitação económica”. Em Ramalde valorizaram-se excelentes blocos multifamiliares, que foram objecto de um projecto extremamente bem pormenorizado, num amplo jardim urbano pouco formal; e revelou-se, entre nós, uma nova forma de fazer cidade em íntima relação com o verde urbano, bem dentro da ligação com a doutrina modernista, mas atenção, com uma escala humana fortíssima.

Dedico este artigo ao meu pai, António Baptista Coelho, que hoje teria praticamente a mesma idade com que nos deixou Fernando Távora, e que durante os anos de arquitectura nas Belas Artes do Porto se terá cruzado, diariamente, com ele. Muita saudade e sentidas memórias do que dizia e do que deixava por dizer, mas mesmo assim dizia na forma de estar e no modo de olhar.
Lisboa e Encarnação, 4 de Setembro de 2005
António J. M. Baptista.Coelho