domingo, abril 26, 2015

530 - Cozinha: aspetos motivadores e problemas a considerar - Infohabitar 530


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Infohabitar, Ano XI, n.º 530

A cozinha: aspetos motivadores e problemas a considerar

Artigo LXXII da Série habitar e viver melhor

António Baptista Coelho



Continuamos, em seguida, a Série editorial sobre "habitar e viver melhor", na qual temos acompanhado uma sequência espacial desde a vizinhança de proximidade urbana e habitacional até ao edifício multifamiliar, e neste os seus espaços comuns. Estamos agora a abordar , com algum detalhe, os espaços que constituem os nossos “pequenos” mundos domésticos e privativos, refletindo sobre as diversas facetas que os qualificam; e continuamos com alguns aspetos sobre o espaço de cozinha e sobre todo o seu potencial.

Cozinha: aspetos motivadores e a explorar


Tal como se apontou num estudo editado no LNEC em 1998, intitulado “Do bairro e da vizinhança à habitação” (ITA 2), entre as características mais desejáveis nas cozinhas tradicionais, ou nas zonas de cozinha, para preparação de refeições salientam-se as seguintes:

·        Estarem razoavelmente próximas das zonas de refeições.
·        Possibilitarem vistas sobre o exterior a partir das principais zonas de trabalho.
·        Apoiarem, o melhor possível, a sequência de: receção e armazenagem de produtos alimentares; preparação de cozinhados; transportes para as (e a partir das) zonas de refeições; lavagens e arrumações.
·        Facilitarem o uso funcional da "bancada" e dos armários de cozinha, bem como de todos os equipamentos e aparelhos eletrodomésticos de apoio e terem, preferencialmente, uma "bancada" de trabalho comprida e sem interrupções (em U ou em L).
·        Terem relação direta com a despensa ou os armários para arrumação de produtos alimentares.
·        Serem fáceis de limpar e duráveis, e não provocarem ruídos, fumos e cheiros desagradáveis no resto da casa e em espaços de circulação comuns e contíguos.
·        Terem equipamento adequado: lava-louças com escorredouro; bancadas de trabalho espaçosas, resistentes e laváveis; espaços preparados e equipados para o fogão, frigorífico e máquina de lavar louça; e sítio próprio para o esquentador. As cozinhas devem ter, ainda, espaços válidos para instalar equipamentos suplementares (por exemplo, arcas frigoríficas e pequenos fornos).
·        Integrarem uma zona de refeições correntes.
·        E serem equipadas com mobiliário fixo que associe facilidade de limpeza, durabilidade, atratividade e, especificamente, uma cuidada ergonomia, seja nas valências de arrumações diversificadas, seja nas valências de uso de planos de trabalho, equipamentos e instalações; ergonomia esta que deverá estar intimamente associada a condições maximizadas de conforto ambiental (designadamente no que se refere à iluminação natural e artificial e à ventilação) .


Fig. 01: Recanto de cozinha de habitação do conjunto urbano "Bo01 City of Tomorrow", desenvolvido no âmbito da exposição que teve lugar em Malmö em 2001 (ver nota final) - H7, Arquitetura: Lars Asklund, Asklund & Jansson Arkitekter.

Cozinha: problemas correntes

Pela sua “densidade” de equipamentos a cozinha é um dos principais protagonistas de um espaço doméstico, mas é importante ter-se bem presente, que ela existe para nos servir e para nos proporcionar uma vida diária, agradável, estimulante e convivial; e não para que nós a “adoremos” como se fosse um espaço quase de “culto”, recheado de gadgets e onde o homem é, praticamente, um intruso, que se movimenta, de certa forma, nas margens das máquinas domésticas.

E refere-se esta observação porque é frequente encontrarem-se cozinhas com um evidente excesso de funcionalidades e de “maquinalidade” e com um evidente deficit de humanização e de sentido gregário, e desde sempre as cozinhas foram o centro da casa, aqui ardia, em continuidade o fogo do lar e aqui se passava quase tudo o que se passava em casa; evidentemente o tempo foi passando, mas está na altura de se recuperar, plenamente, o capital de convivialidade e de atratividade das cozinhas como sítios da família, como sítios do centro da vida doméstica, sem discriminações de tarefas e de espaços, e até é útil esta possibilidade no sentido em que os restantes espaços da casa ficam mais disponíveis para os novos usos domésticos.

Tal como aponta Sven Thiberg (1), as deficiências mais comuns detetadas em cozinhas relacionam-se muito mais com a organização da sequência de trabalho e a disposição relativa de elementos de mobiliário e equipamento do que com a quantidade de espaço livre disponível. Os aspetos negativos frequentemente apontados são os seguintes: portas abrindo para dentro da cozinha, passagens livres muito estreitas, portas de frigoríficos abrindo na direção errada, colisões entre portas de acesso e de armários, colisão entre portas de acesso e fogões, fornos e bacias de lavagem e, finalmente, a falta de espaço livre em torno da mesa de cozinha são, todos, aspetos negativos frequentemente apontados.

Tal como refere o citado autor, chama-se aqui a atenção para um problema de projeto conhecido, mas pouco evidenciado, é que os bons projetos de Arquitetura cuidam do desenho das cozinhas e proporcionam espaços realmente satisfatórios e motivadores. Dá trabalho mas os resultados são extremamente significativos e, como em tudo, nem todos conseguem atingir um adequado nível de qualidade, designadamente, quando, como é o caso, se estão a integrar tantos elementos e com tantos objetivos vivenciais.

E em termos de problemas correntes nas cozinhas há que destacar dois, que por sinal são dois dos aspetos mais críticos no que se refere à, sempre estimulante, maior integração da cozinha num espaço doméstico do tipo “planta livre” – por exemplo numa espaçosas e convivial cozinha-sala de família e de estar que dê acesso a quartos: o problema dos cheiros e vapores originados nas ações de preparação de refeições, que poderá ser em boa parte ultrapassado através de uma cuidadosa solução da respetiva ventilação; e o problema dos ruídos produzidos, designadamente, por máquinas associadas, habitualmente, ao espaço de cozinha – caso das máquinas de lavar e mesmo dos equipamentos de ventilação –, que poderá ter solução seja pela escolha de modelos caracterizadamente silenciosos, seja pelo desenvolvimento de um pequeno compartimento, isolado, para instalação das máquinas, uma solução muito eficaz e que foi utilizada, em Portugal, em soluções de habitação de interesse social, ganhando-se, assim, a cozinha como um agradável espaço de convívio e para diversas atividades domésticas.


Fig. 02: Zona de cozinha aberta sobre sala de uma habitação do conjunto urbano "Bo01 City of Tomorrow", desenvolvido no âmbito da exposição que teve lugar em Malmö em 2001 (ver nota final) - H 8-12, Arquitetura: Kim Dalgaard, Tue Traerup Madsen.

Cozinha: questões levantadas (dimensionais e outras)

A situação, cada vez mais frequente, de ambos os elementos do casal trabalharem fora de casa, o crescimento de hábitos de abastecimentos periódicos e em grandes quantidades e a disponibilização cada vez mais alargada de equipamentos para simplificação das tarefas culinárias obriga a cuidados extremos na sistematização funcional das zonas de preparação de refeições e no seu relacionamento com os respetivos espaços de arrumação; e tal como atrás se disse não é um dado adquirido que se façam bons projetos de cozinhas, antes pelo contrário, pois esta pormenorização, quando existe, é considerada, mais como uma oportunidade de vender elementos vistosos.

A cozinha, mesmo sendo um espaço convivial, tem de ser um espaço extremamente funcional no apoio á preparação de refeições.

Claude Lamure ("Adaptation du Logement à la Vie Familiale", pp. 177 e 178) considera os seguintes factores estruturantes da organização das cozinhas:

·       Os três postos principais, lava-louças, posto de preparação de alimentos e posto de fogão, são indissociáveis. Nenhum obstáculo deve interpor-se nos percursos entre eles, e, particularmente, nenhuma outra circulação deve interferir com a circulação entre esses três postos.
·         Dois elementos complementares, posto de instalação de frigorífico e posto de serviço ou "descarga", devem ser igualmente acessíveis a partir dos três postos principais.
·         Cada equipamento necessita de um plano de "descarga" contíguo.
·         A organização preferencial (para não canhotos) será constituída por uma sequência, da esquerda para a direita, incluindo lava-louças, preparação, fogão (porque se poderá usar a mão direita no fogão, enquanto que com a esquerda se usam diversos utensílios).
·         As arrumações devem estar adequadamente distribuídas por diversos sítios, de acordo com o princípio de se disponibilizarem os elementos necessários no seu primeiro ou no seu último sítio de utilização.
·         A máquina de lavar louça deve ser colocada perto de um armário para louça ou de uma mesa de refeições.
·         O balde do lixo, (ou o acesso à conduta de lixos) deve ser preferencialmente localizado num sítio bem ventilado, mas muito próximo da cozinha.
·         O acesso a um forno deve ser desimpedido numa profundidade mínima de 1.20m, medida a partir da abertura do forno.

Tal como refere Claude Lamure (2), as pessoas tomam, muito frequentemente, as refeições na cozinha, logo quando a área desta é superior a 9m² - o que até é uma dimensão bastante “económica”;  e continua-se a tomar aí refeições, quando a área desce para cerca de 6m². Mas quando as cozinhas são razoavelmente espaçosas, quando a sua área é superior a 11m², diz Lamure, que quase toda a gente toma as refeições exclusivamente aí e começam a surgir, de forma significativa, o recreio e o trabalho de crianças e mesmo o estar ocasional dos adultos. E é importante que as áreas das cozinhas cresçam na proporção em que aumente o número de quartos na habitação; condição esta que infelizmente não se verifica como regra, pois as cozinhas são habitualmente consideradas como tratando-se de uma espécie de grandes casas de banho, imutáveis, seja a casa pequena ou grande.

Mas a dimensão geral não é tudo, sendo essencial a existência de uma largura adequada, e segundo o Institut de Tecnologia de la Construcción de Catalunya (3) , o processo de composição da largura-tipo de uma cozinha deve considerar os seguintes elementos): largura de bancada, 0.60m; largura da circulação e espaço de actividade, 1.10m (1,20 noutros estudos); largura de mesa para refeições, de 0.90m a 1.10m. Teremos, assim, uma dimensão de referência entre 2,60 a 2,90m, bem diferente da da nossa dimensão mínima regulamentar. (4)

Ainda segundo Lamure, em cozinhas espaçosas, são preferíveis as disposições de bancada em L e em U, porque economizam deslocações e espaço de circulação, permitem movimentos mais cómodos (menos bruscos, com mudanças de direção mais suaves) e definem zonas livres de circulação e atravessamento; no caso das bancadas em L é de referir que estas se integram bem com uma mesa suplementar (multifuncional) (5).

As cozinhas em U são ótimas, seja em situações de grande disponibilidade espacial, seja em situações de extrema exiguidade (zona de cozinha ligada a sala, onde basta rodar sobre si próprio para chegar às diversas superfícies de bancada).

E ainda novamente segundo Claude Lamure a altura da bancada de cozinha poderá variar ligeiramente com as diversas funções a executar, ou, parecendo ser uma melhor solução, poderá ser previsto um plano de trabalho específico ou uma mesa de cozinha que permita a execução de certos trabalhos a partir da posição de sentado (6); condição esta que é, também, muito rica em termos de potencial de projeto e de criatividade, mais uma vez numa estratégica aliança entre função e forma.

References


Referências/notas

(1) Condiciones Minimas d'Habitabilitat i de Construcción dels Edificis a Contemplar en les Ordenances d'Edificació, p. 42.
(2) A dimensão mínima, definida pelo "Regulamento Geral das Edificações Urbanas", Artº 69, é apenas de 1.70m.
(3) Condiciones Minimas d'Habitabilitat i de Construcción dels Edificis a Contemplar en les Ordenances d'Edificació, p. 42.
(4) A dimensão mínima, definida pelo "Regulamento Geral das Edificações Urbanas", Artº 69, é apenas de 1.70m.
(5) Claude Lamure, "Adaptation du Logement à la Vie Familiale", p. 180.
(6) Claude Lamure, "Adaptation du Logement à la Vie Familiale", p. 183.

Nota importante sobre as imagens que ilustram o artigo:

As imagens que acompanham este artigo e que irão, também, acompanhar outros artigos desta mesma série editorial foram recolhidas pelo autor do artigo na visita que realizou à exposição habitacional "Bo01 City of Tomorrow", que teve lugar em Malmö em 2001.

Aproveita-se para lembrar o grande interesse desta exposição e para registar que a Bo01 foi organizada pelo “organismo de exposições habitacionais sueco” (Svensk Bostadsmässa), que integra o Conselho Nacional de Planeamento e Construção Habitacional (SABO), a Associação Sueca das Companhias Municipais de Habitação, a Associação Sueca das Autoridades Locais e quinze municípios suecos; salienta-se ainda que a Bo01 teve apoio financeiro da Comissão Europeia, designadamente, no que se refere ao desenvolvimento de soluções urbanas sustentáveis no campo da eficácia energética, bem como apoios técnicos por parte do da Administração Nacional Sueca da Energia e do Instituto de Ciência e Tecnologia de Lund.

A Bo01 foi o primeiro desenvolvimento/fase do novo bairro de  Malmö, designado como Västra Hamnen (O Porto Oeste) uma das principais áreas urbanas de desenvolvimento da cidade no futuro.

Mais se refere que, sempre que seja possível, as imagens recolhidas pelo autor do artigo na Bo01 serão referidas aos respetivos projetistas dos edifícios visitados; no entanto, o elevado número de imagens de interiores domésticos então recolhidas dificulta a identificação dos respetivos projetistas de Arquitetura, não havendo informação adequada sobre os respetivos designers de equipamento (mobiliário) e eventuais projetistas de arquitetura de interiores; situação pela qual se apresentam as devidas desculpas aos respetivos projetistas e designers, tendo-se em conta, quer as frequentes ausências de referências - que serão, infelizmente, regra em relação aos referidos designers -, quer os eventuais lapsos ou ausência de referências aos respetivos projetistas de arquitetura.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.

Infohabitar, Ano XI, n.º 530
Artigo LXXII da Série habitar e viver melhor

A cozinha: aspetos motivadores e problemas a considerar

Editor: António Baptista Coelho 
abc@lnec.pt e abc.infohabitar@gmail.com
GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional

Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.



domingo, abril 19, 2015

529 - Os mesmos temas desenhados de diferentes maneiras

Os mesmos temas desenhados de diferentes maneiras

António Baptista Coelho






Últimas notícias:
O 3.º CIHEL recebeu 118 propostas de artigos, estamos, portanto, todos   de parabéns, e designadamente os organizadores.
 

Infohabitar, Ano XI, n.º 529

Os mesmos temas desenhados de diferentes maneiras

António Baptista Coelho


Editam-se, em seguida, alguns desenhos, todos eles realizados nas diversas zonas edificadas e ajardinadas do modernista bairro de Olivais Norte, em Lisboa, com o objetivo de se exemplificarem diversas maneiras de representar os mesmos temas (edifícios e árvores).







Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.


Infohabitar, Ano XI, n.º 529
Os mesmos temas desenhados de diferentes maneiras
Editor: António Baptista Coelho 
abc@lnec.pt e abc.infohabitar@gmail.com
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Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.

domingo, abril 12, 2015

528 - Da valorização patrimonial a uma cuidadosa recaracterização urbana - Infohabitar 528

Infohabitar, Ano XI, n.º 528
Da valorização patrimonial a uma cuidadosa recaracterização urbana: ou mais uma reflexão sobre o "espírito do lugar"
António Baptista Coelho


A valorização do património arquitetónico local

A valorização do património arquitetónico local tem grande importância para o aprofundamento do conhecimento do património material e imaterial das respetivas zonas, e para o desenvolvimento da caraterização ou caráter local desses sítios – partes de cidades e de vilas, aldeias e lugares; uma diferenciação que importa aliar a outras iniciativas culturais dinâmicas e diversificadas e que urge apoiar numa dupla perspetiva de defesa e recuperação patrimonial e de apoio à dinamização social local nas suas diversas facetas, mais diárias e correntes ou mais ligadas a um turismo cultural, que está cada vez mais ativo.

Esta perspetiva fica em boa parte evidenciada numa citação, quase completa, do poema de Eugénio de Andrade, cujo título é, significativamente, “O Lugar da Casa”:

Diz o poeta:

“Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de Abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.”
Eugénio de Andrade
E repete-se o início do poema:

“Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar"


Fig 1: vista da costa da Ilha da Madeira

O fazer e o refazer verdadeiros lugares

É desta matéria que aqui tratamos: o fazer e o refazer verdadeiros lugares; identificar, construir e reconstruir lugares bem caraterizados e viáveis, com base no que existe, nos sítios, resgatando-se o que sobreviveu do nosso património edificado, urbano e paisagístico, aos longos períodos tantas vezes despreocupada e mesmo por vezes criminosamente ignorantes dos valores do passado e da cultura nacional, regional e local.

Mas centremo-nos, agora, “apenas” na importância social e cultural de uma adequada caracterização arquitetónica, num sentido amplo de arquitetura que vai à cidade e à paisagem.

Defende-se, como diz o Arq.º Yves Lyon, “uma nova atividade de arquiteto feita da atenção para com os lugares”, uma atenção que depende em muito das suas condições preexistentes, da sua pormenorização, e que tem de nascer de uma tão cuidada como estimulante leitura da sua imagem urbana e paisagística, pois, como defende Manuel Salgado, hoje em dia “desenhar a cidade é antes de mais saber lê-la.”

Ler bem os lugares e (re)fazer lugares bem legíveis

E havendo lugares que conseguimos ler fluentemente e com interesse, porque nos cativam e nos “contam histórias”, ainda que incompletas ou a necessitar de alguma reabilitação, então temos parte da tarefa já realizada, pois todos sabemos que há cidades e bairros ricos de lugares e há também lugares onde, até, por vezes pequenas intervenções reconstroem e sublinham atraentes ambientes, plenos de conteúdos e de estímulos no sentido de um seu uso intenso e prolongado.

Avançamos assim no que se julga ser a importância das relações humanizadoras que podemos estabelecer com os espaços que nos rodeiam, protegem e caracterizam, assumindo-se a importância que tem uma afirmada diferenciação pela valorização do carácter local, no encontro íntimo que sempre marcou a relação entre os homens e os espaços por eles habitados, edificados e urbanizados.

A relação íntima entre os homens e os espaços por eles habitados

Mas este encontro especial de natureza íntima que a Arq.ª e Prof.ª Ludmila Brandão refere acontecer “ (1) “entre casas e homens”, não esgota, naturalmente, o manancial do carácter local, e registam-se, aqui, as palavras/ideias de outros estudiosos da Arquitetura, como Gordon Cullen  e Kevin Lynch e a sua defesa de uma cidade que tenha uma forte “imagibilidade” (2), pois “quem sabe se tenha falado muito de forma e pouco de forma na cidade, daquela forma que vai da imagem urbana à imagem doméstica”, tal como defende Gonçalo Byrne (2000). (3)

Fig. 2: preexistência no modernista Olivais Norte, Lisboa

Esse encontro íntimo entre as histórias dos homens e as histórias das suas casas e das suas ruas acontece, quando acontece, em diversos níveis interligados, porque habitamos as diferentes escalas da cidade numa teia de espacialidades e de apropriações diversificadas, cuja complexidade é problema, mas também grande riqueza; de certa forma podendo nós habitar e experimentar uma história rica de variados pontos de vista, relações e pequenos mundos frequentemente sobrepostos, num argumento que desta forma nos pode cativar e “prender” por lá, repetida e intensamente.

Um argumento e um conjunto de cenários vivos que caraterizam um espaço urbano em que, como refere William Mitchell, há, hoje em dia, que (re)inventar os espaços públicos e as formas de habitar, mas sempre no respeito pelas características específicas do lugar – que podemos referir de “espírito do lugar”; e Mitchell, em muitos dos seus escritos, sublinha as grandes e inevitáveis mudanças no habitar a casa, o bairro e a cidade de hoje, mas defende a convivência de tais mudanças com o reforço de uma caracterização local coerente, que seja base de identidade e de diferenciação.

Uma base de identidade que, julgamos nós, deverá reger-se, desejavelmente, por uma perspectiva culturalmente consistente e marcada por uma cívica sobriedade, pois estamos a tratar de espaço público, espaço que tem de servir e agradar ao maior número dos seus habitantes e que deve, também, assumir um sentido de representatividade global e de identidade local.

São necessários espaços urbanos calorosos e ricos de identidade

Para tal é fundamental não se aceitarem mais espaços públicos, frios, austeros e inimigos das pessoas, e nestas matérias é inestimável a importância das fontes literárias e das fontes artísticas em geral para a aproximação a um habitar humanizado e cívico, pois são os escritores e os poetas aqueles que melhor e/ou frequentemente conseguem descrever como são, ou como podem ser, pedaços de cidade habitada humanizados/calorosos, envolventes e estimulantes de percursos e estadias.

Antes de concluir esta sequência de ideias não é possível deixar de registar que tudo isto é vital para a revitalização urbana de muitos sítios do nosso mundo de cidades, mas que tais condições não podem substituir a adequada funcionalização de tais espaços em termos de acessibilidades e eficácias funcionais amplas e completas, incluindo-se as matérias de sentido de segurança urbana; e mais do que isto, importa desenvolver soluções em que a referida e essencial humanização espacial integre verdadeiramente a “razão” funcional da respetiva zona/intervenção nos seus diversos aspetos.

Sublinhemos, então, que, tal como se salientou acima, os espaços que habitamos têm de dialogar connosco, têm de nos “prender”, têm de nos contar a sua história “única” – que corresponde a boa parte da sua identidade – e algumas das suas histórias do dia-a-dia, histórias que fazem realmente viver esses espaços, que não podem ser mudos e descaracterizados.

Fig. 3: porta de habitação em Alfama, Lisboa

Espaços urbanos interessantes e com significado

E sobre estas matérias lembremos, para concluir esta pequena reflexão, as sábias palavras de dois grandes arquitetos:

Charles Moore diz-nos (4) “estar contra as atitudes que fazem de edifícios com potencial para comunicar com os seus habitantes, edifícios mudos”, que está “contra a homogeneização do lugar”, que acredita que “o silêncio é imposto pelo fazer edifícios sem cuidado, e multiplicando uma tal falta de cuidado sem qualquer preocupação”, e que o “resultado foi que os edifícios, quando tornados mudos, ficaram tão desinteressantes, que os habitantes deixaram de tomar atenção neles, deixaram de se preocupar com eles.”

E sobre o carácter do lugar escreveu Christian Norberg-Schulz no prefácio ao seu “Meaning in Western Architecture” (1986): (5) “Desde tempos remotos a arquitectura tem ajudado o homem a dar sentido e significado à sua existência. Com a ajuda da arquitectura ele conseguiu marcar uma posição no espaço e no tempo. A arquitectura preocupa-se portanto com algo mais do que necessidades práticas e economia. Ela refere-se a conteúdos e significados existenciais. Os conteúdos e significados existenciais resultam de fenómenos naturais, humanos e espirituais, e são experimentados como ordem e carácter...” E por vezes o projecto “não é mais” que um (excelente) elemento de valorização da união de condições naturais e urbanas preexistentes.

E, tal como referiu a colega Marilice Costi, “uma cidade precisa surpreender, mostrar sua história, entregar-se a quem passa por ela e dar-lhe o seu sabor. Ela precisa apaixonar a qualquer um, provocar sensações, proporcionar vivências. Ser lugar para seus moradores e um novo lugar para quem chega.” (6)

Nota final:

Este artigo foi elaborado a propósito e na sequência de uma intervenção do autor num encontro realizado no Museu dos Lanifícios, Universidade da Beira Interior – Covilhã, no âmbito da exposição “um destino; coisa simples” - Património arquitectónico do séc. XX no concelho do Fundão .

A exposição esteve patente n’A Moagem Cidade do Engenho e das Artes, no Fundão, e depois no referido Museu dos Lanifícios e foi desenvolvida pelo Atelier Pedro Novo Arquitetos, com o apoio do Município do Fundão e da Ordem dos Arquitetos (inaugurou a 15 de Novembro de 2014).

A exposição pretende divulgar o património arquitectónico do século XX existente no concelho e aproximá-lo da população, dando a conhecer algumas das figuras mais importantes da arquitectura portuguesa do século XX com obra construída no concelho do Fundão. Para além da divulgação deste património, pretende-se alertar e sensibilizar a população para um quadro de responsabilidade partilhada, numa perspetiva futura de classificação e manutenção do património edificado no concelho do Fundão.
https://www.facebook.com/umdestino.coisasimples?pnref=lhc

Notas:
(1) Ludmila de Lima Brandão, “A Casa Subjetiva”, 2002, p.133.
(2) Kevin Lynch, “L'Image de la Cite”, 1976 (1960), p.12.
(3) Ricardo Carvalho, “Estou cansado de falar de forma – entrevista com Gonçalo Byrne”, Público, 16 Agosto 2000.
(4) Idem, Ibid.
(5) Texto de Christian Norberg-Schulz, no Prefácio ao seu “Meaning in Western Architecture”, 1986.
(6)Texto de Marilice Costi, integrado em um dos primeiros artigos da revista na www Infohabitar, em Junho de 2005.


Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.

Infohabitar, Ano XI, n.º 528
Da valorização patrimonial a uma cuidadosa recaracterização urbana: ou mais uma reflexão sobre o "espírito do lugar"
Editor: António Baptista Coelho 
abc@lnec.pt e abc.infohabitar@gmail.com
GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional
Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.


sábado, abril 04, 2015

527 - Mais alguns desenhos e alguns conselhos - Infohabitar 527

http://labhab.fau.usp.br/3cihel/

Infohabitar, Ano XI, n.º 527

Mais alguns desenhos e alguns conselhos

Aproveitando a breve paragem letiva e a probabilidade de alguns dos meus alunos de Desenho 1 - II, do mestrado Integrado em Arquitetura da Universidade da Beira Interior na Covilhã, estarem a trabalhar nos seus diários gráficos, e naturalmente considerando que outros leitores também se interessem por estas matérias - sei de alguns colegas no Brasil que têm contatado comigo nesse sentido e a quem saúdo calorosamente - , editam-se mais alguns apontamentos urbanos e naturais e aproveita-se para registar alguns aspetos de base da prática do desenho livre; interessa praticar, praticar, praticar, e ajuda repetir as temáticas, lembrando-nos de aspetos essenciais, como:

  1.       procurar um excelente ponto de vista que nos atraia verdadeiramente;
  2.       ter um mínimo de conforto e de sossego para desenhar;
  3.       arriscar naturalidade e rapidez na relação entre observação e o "traço" (daí a vantagem de se repetirem as temáticas);
  4.      usar o espaço da folha, mas lembrar que o espaço branco também é desenho;
  5.      procurar proporções equilibradas;
  6.      tentar acertar pontos de fuga/linhas de vista (a altura a que estamos a observar), mas não "bloquear" por causa disto;
  7.      fazer vários desenhos rápidos no mesmo sítio e do mesmo tema (vão ver que os "segundos" ou "terceiros" apontamentos vão sair melhor, porque a cabeça e a mente "aqueceram");
  8.      deixar o lápis e/ou a caneta desenharem quase por si, quase "brincando" na folha e desenhando quase com autonomia e o mais possível em contato contínuo com a folha, não levantando a ponta do papel;
  9.      deixar a folha branca (não suja) e ousar contrastes fortes branco, cinzento (exemplo dois tons) e preto/preto, não esquecendo que o espaço branco que se deixa também é desenho;
  10.      esquecer que se pode apagar, desenhar a lápis e/ou a caneta e/ou a aguada, sem apagar;
  11.      não esperar que todos os apontamentos fiquem bem; desenhar mais e depois mostrar apenas os melhores desenhos;
  12.      e tentar desenhar com prazer e mesmo com um certo sentido lúdico - tirar o "sentido sério" ao desenhar, procurando desenhar cada vez melhor, mas como que brincando.

E muitos desenhos: menos bons, razoáveis e bons, é o que desejo!

António Baptista Coelho

Nota prática: os apontamentos que se seguem foram escolhidos por serem muito diversos nas técnicas usadas (lápis, caneta/marcador, aguada), na respetiva duração (entre cerca de 5 minutos a maior parte deles e um máximo de 30 minutos, os mais elaborados) e nos temas escolhidos.












Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.

Infohabitar, Ano XI, n.º 527

Mais alguns desenhos e alguns conselhos

Editor: António Baptista Coelho 
abc@lnec.pt e abc.infohabitar@gmail.com
GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional

Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.