Infohabitar,
Ano XI, n.º 528
Da valorização patrimonial a
uma cuidadosa recaracterização urbana: ou mais uma reflexão sobre o
"espírito do lugar"
António Baptista Coelho
A valorização do património arquitetónico local
A valorização do património arquitetónico local tem
grande importância para o aprofundamento do conhecimento do património material
e imaterial das respetivas zonas, e para o desenvolvimento da caraterização ou
caráter local desses sítios – partes de cidades e de vilas, aldeias e lugares;
uma diferenciação que importa aliar a outras iniciativas culturais dinâmicas e
diversificadas e que urge apoiar numa dupla perspetiva de defesa e recuperação
patrimonial e de apoio à dinamização social local nas suas diversas facetas,
mais diárias e correntes ou mais ligadas a um turismo cultural, que está cada
vez mais ativo.
Esta perspetiva fica em boa parte evidenciada numa
citação, quase completa, do poema de Eugénio de Andrade, cujo título é, significativamente,
“O Lugar da Casa”:
Diz o poeta:
“Uma
casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de Abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.”
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de Abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.”
Eugénio de Andrade
E
repete-se o início do poema:
“Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar"
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar"
O fazer e o refazer verdadeiros lugares
É desta matéria que aqui tratamos: o fazer e o refazer
verdadeiros lugares; identificar, construir e reconstruir lugares bem
caraterizados e viáveis, com base no que existe, nos sítios, resgatando-se o
que sobreviveu do nosso património edificado, urbano e paisagístico, aos longos
períodos tantas vezes despreocupada e mesmo por vezes criminosamente ignorantes
dos valores do passado e da cultura nacional, regional e local.
Mas centremo-nos, agora, “apenas” na importância social e
cultural de uma adequada caracterização arquitetónica, num sentido amplo de
arquitetura que vai à cidade e à paisagem.
Defende-se, como diz o Arq.º Yves Lyon, “uma nova
atividade de arquiteto feita da atenção para com os lugares”, uma atenção que
depende em muito das suas condições preexistentes, da sua pormenorização, e que
tem de nascer de uma tão cuidada como estimulante leitura da sua imagem urbana
e paisagística, pois, como defende Manuel Salgado, hoje em dia “desenhar a
cidade é antes de mais saber lê-la.”
Ler bem os lugares e (re)fazer lugares bem legíveis
E havendo lugares que conseguimos ler fluentemente e com
interesse, porque nos cativam e nos “contam histórias”, ainda que incompletas
ou a necessitar de alguma reabilitação, então temos parte da tarefa já
realizada, pois todos sabemos que há cidades e bairros ricos de lugares e há
também lugares onde, até, por vezes pequenas intervenções reconstroem e
sublinham atraentes ambientes, plenos de conteúdos e de estímulos no sentido de
um seu uso intenso e prolongado.
Avançamos assim no que se julga ser a importância das
relações humanizadoras que podemos estabelecer com os espaços que nos rodeiam,
protegem e caracterizam, assumindo-se a importância que tem uma afirmada
diferenciação pela valorização do carácter local, no encontro íntimo que sempre
marcou a relação entre os homens e os espaços por eles habitados, edificados e
urbanizados.
A relação íntima entre os homens e os espaços por eles habitados
Mas este encontro especial de natureza íntima que a Arq.ª
e Prof.ª Ludmila Brandão refere acontecer “ (1) “entre casas e homens”, não
esgota, naturalmente, o manancial do carácter local, e registam-se, aqui, as
palavras/ideias de outros estudiosos da Arquitetura, como Gordon Cullen e Kevin Lynch e a sua defesa de uma cidade
que tenha uma forte “imagibilidade” (2), pois “quem sabe se tenha falado muito
de forma e pouco de forma na cidade, daquela forma que vai da imagem urbana à
imagem doméstica”, tal como defende Gonçalo Byrne (2000). (3)
Esse encontro íntimo entre as histórias dos homens e as
histórias das suas casas e das suas ruas acontece, quando acontece, em diversos
níveis interligados, porque habitamos as diferentes escalas da cidade numa teia
de espacialidades e de apropriações diversificadas, cuja complexidade é
problema, mas também grande riqueza; de certa forma podendo nós habitar e
experimentar uma história rica de variados pontos de vista, relações e pequenos
mundos frequentemente sobrepostos, num argumento que desta forma nos pode
cativar e “prender” por lá, repetida e intensamente.
Um argumento e um conjunto de cenários vivos que
caraterizam um espaço urbano em que, como refere William Mitchell, há, hoje em
dia, que (re)inventar os espaços públicos e as formas de habitar, mas sempre no
respeito pelas características específicas do lugar – que podemos referir de
“espírito do lugar”; e Mitchell, em muitos dos seus escritos, sublinha as
grandes e inevitáveis mudanças no habitar a casa, o bairro e a cidade de hoje,
mas defende a convivência de tais mudanças com o reforço de uma caracterização
local coerente, que seja base de identidade e de diferenciação.
Uma base de identidade que, julgamos nós, deverá
reger-se, desejavelmente, por uma perspectiva culturalmente consistente e
marcada por uma cívica sobriedade, pois estamos a tratar de espaço público,
espaço que tem de servir e agradar ao maior número dos seus habitantes e que
deve, também, assumir um sentido de representatividade global e de identidade local.
São necessários espaços urbanos calorosos e ricos de identidade
Para tal é fundamental não se aceitarem mais espaços
públicos, frios, austeros e inimigos das pessoas, e nestas matérias é
inestimável a importância das fontes literárias e das fontes artísticas em
geral para a aproximação a um habitar humanizado e cívico, pois são os
escritores e os poetas aqueles que melhor e/ou frequentemente conseguem
descrever como são, ou como podem ser, pedaços de cidade habitada
humanizados/calorosos, envolventes e estimulantes de percursos e estadias.
Antes de concluir esta sequência de ideias não é possível
deixar de registar que tudo isto é vital para a revitalização urbana de muitos
sítios do nosso mundo de cidades, mas que tais condições não podem substituir a
adequada funcionalização de tais espaços em termos de acessibilidades e
eficácias funcionais amplas e completas, incluindo-se as matérias de sentido de
segurança urbana; e mais do que isto, importa desenvolver soluções em que a
referida e essencial humanização espacial integre verdadeiramente a “razão”
funcional da respetiva zona/intervenção nos seus diversos aspetos.
Sublinhemos, então, que, tal como se salientou acima, os
espaços que habitamos têm de dialogar connosco, têm de nos “prender”, têm de
nos contar a sua história “única” – que corresponde a boa parte da sua
identidade – e algumas das suas histórias do dia-a-dia, histórias que fazem
realmente viver esses espaços, que não podem ser mudos e descaracterizados.
Espaços urbanos interessantes e com significado
E sobre estas matérias lembremos, para concluir esta
pequena reflexão, as sábias palavras de dois grandes arquitetos:
Charles Moore diz-nos (4) “estar contra as atitudes que
fazem de edifícios com potencial para comunicar com os seus habitantes,
edifícios mudos”, que está “contra a homogeneização do lugar”, que acredita que
“o silêncio é imposto pelo fazer edifícios sem cuidado, e multiplicando uma tal
falta de cuidado sem qualquer preocupação”, e que o “resultado foi que os
edifícios, quando tornados mudos, ficaram tão desinteressantes, que os
habitantes deixaram de tomar atenção neles, deixaram de se preocupar com eles.”
E sobre o carácter do lugar escreveu Christian
Norberg-Schulz no prefácio ao seu “Meaning in Western Architecture” (1986): (5)
“Desde tempos remotos a arquitectura tem ajudado o homem a dar sentido e
significado à sua existência. Com a ajuda da arquitectura ele conseguiu marcar
uma posição no espaço e no tempo. A arquitectura preocupa-se portanto com algo
mais do que necessidades práticas e economia. Ela refere-se a conteúdos e
significados existenciais. Os conteúdos e significados existenciais resultam de
fenómenos naturais, humanos e espirituais, e são experimentados como ordem e
carácter...” E por vezes o projecto “não é mais” que um (excelente) elemento de
valorização da união de condições naturais e urbanas preexistentes.
E, tal como referiu a colega Marilice Costi, “uma cidade
precisa surpreender, mostrar sua história, entregar-se a quem passa por ela e
dar-lhe o seu sabor. Ela precisa apaixonar a qualquer um, provocar sensações,
proporcionar vivências. Ser lugar para seus moradores e um novo lugar para quem
chega.” (6)
Nota
final:
Este artigo foi elaborado a propósito e na sequência de
uma intervenção do autor num encontro realizado no Museu dos Lanifícios,
Universidade da Beira Interior – Covilhã, no âmbito da exposição “um destino;
coisa simples” - Património arquitectónico do séc. XX no concelho do Fundão .
A exposição esteve patente n’A Moagem Cidade do Engenho e
das Artes, no Fundão, e depois no referido Museu dos Lanifícios e foi
desenvolvida pelo Atelier Pedro Novo Arquitetos, com o apoio do Município do
Fundão e da Ordem dos Arquitetos (inaugurou a 15 de Novembro de 2014).
A exposição pretende divulgar o património arquitectónico
do século XX existente no concelho e aproximá-lo da população, dando a conhecer
algumas das figuras mais importantes da arquitectura portuguesa do século XX
com obra construída no concelho do Fundão. Para além da divulgação deste património,
pretende-se alertar e sensibilizar a população para um quadro de
responsabilidade partilhada, numa perspetiva futura de classificação e
manutenção do património edificado no concelho do Fundão.
https://www.facebook.com/umdestino.coisasimples?pnref=lhc
https://www.facebook.com/umdestino.coisasimples?pnref=lhc
Notas:
(1) Ludmila de Lima Brandão, “A Casa Subjetiva”, 2002,
p.133.
(2) Kevin Lynch, “L'Image de la Cite”,
1976 (1960), p.12.
(3) Ricardo Carvalho, “Estou cansado de
falar de forma – entrevista com Gonçalo Byrne”, Público, 16 Agosto 2000.
(4) Idem, Ibid.
(5) Texto de Christian Norberg-Schulz,
no Prefácio ao seu “Meaning in Western Architecture”, 1986.
(6)Texto de Marilice Costi, integrado em um dos primeiros
artigos da revista na www Infohabitar, em Junho de 2005.
Notas
editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada,
caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha
de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões
expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais
dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da
exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e
adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a
ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários
"automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos
conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição
da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos
editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à
verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da
revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de
eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.
Infohabitar, Ano XI, n.º 528
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urbana: ou mais uma reflexão sobre o "espírito do lugar"
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