segunda-feira, agosto 31, 2009

261 - E ainda o problema da habitação – parte I - Infohabitar 261

Infohabitar, Ano V, n.º 261
E ainda o problema da habitação, em Portugal no início do século XXI – parte I, oferta e procura
artigo de António Baptista Coelho

Label: habitação, política habitacional, habitação de interesse social, urbanismo habitacional

Razões para se voltar ao “problema da habitação”
O estímulo para a escrita deste série de artigos sobre o tema do problema da habitação, considerado um problema que persiste, de forma crítica, embora em outros moldes, após 60 anos de este mesmo problema ter sido tema-chave no 1.º Congresso Nacional de Arquitectura (1), é a ideia que o problema se mantém, num sentido amplo, pois considera-se que nem as necessidades quantitativas habitacionais foram devidamente garantidas, em Portugal, e numa perspectiva de garantia expressivamente sustentada, nem se deu ainda, entre nós, um passo firme e claro no caminho urgente de se considerar a qualidade residencial como um aspecto fundamental da qualidade de vida de todos nós; desenvolvendo-se, portanto, uma perspectiva qualitativa que esteja directamente ligada a uma qualidade arquitectónica residencial composta por alguns aspectos mais mensuráveis e por outros mais qualitativos, afectivos e de “desenho”, estando este segundo grupo de aspectos muito ligados a uma aprofundada satisfação habitacional, e a estas matérias voltaremos em seguida.

Um outro estímulo específico à abordagem do “problema da habitação” aqui no Infohabitar, e, naturalmente, no âmbito das acções promovidas pelo Grupo Habitar, é a ideia de que esse problema continua, infelizmente, muito distante das preocupações políticas nacionais, pelo menos no sentido acima sumariado e que em seguida se pretende desenvolver e esclarecer. E este olhar mal ou não olhar o problema da habitação, tanto nas suas críticas consequências negativas como nas suas potencialidades, designadamente, no que se refere à revitalização urbana, é uma situação que não se entende quer pela influência directa que a sua resolução ou tentativa de resolução sempre terá para a melhor vida diária dos cidadãos, quer pela positiva e expressiva influência económica que será sempre induzida por uma política activa de melhoria das condições habitacionais/urbanas dos mesmos cidadãos – e nunca é excessivo relembrar a potência que a promoção habitacional – construção nova e reabilitação – induz, directa e indirectamente, na actividade económica.

E assim iremos, em seguida, falar um pouco sobre a evolução das carências habitacionais quantitativas e qualitativas, seja do lado da oferta seja do da procura.

Depois e de forma mais sintética, pois iremos voltar a estes temas com mais calma, noutros artigos, será apontada a temática da qualidade residencial como aspecto fundamental da qualidade de vida, seguindo-se, numa sequência lógica, uma breve consideração sobre o protagonismo do bom desenho para uma boa habitação.

Finalmente, lança-se a ideia que a oposição entre fazer de novo e reabilitar habitação é uma falsa questão, designadamente, no âmbito da habitação de interesse social, e termina-se o artigo com algumas considerações sintéticas sobre a oportunidade desta aproximação ao “problema da habitação”.



Fig. 01: . Bairro de Alvalade, projecto urbano de Faria da Costa, anos quarenta do século XX, uma pequena cidade feita com grandes “miolos” de habitação de interesse social, provavelmente, o único plano verdadeiramente integrado.

Sobre a evolução das carências habitacionais quantitativas e qualitativas: o lado da oferta

Há ainda, hoje em dia, em Portugal e no “mundo ocidental” menos desenvolvido evidentes carências habitacionais quantitativas, e de total urgência, relativas a pessoas que habitam sem um mínimo de condições de salubridade e saúde física e mental.

Tais carências quantitativas devem ser objecto de uma reformulação em termos de critérios de cálculo e de medidas de enquadramento.

Não é mais aceitável qualquer “cedência” de habitação que não corresponda a um contrato exigente em termos de regras de bom uso e de contribuição para a amortização da habitação por parte dos seus habitantes. Este é um imperativo cívico directamente associado ao “direito a ter habitação” e que ganha expressão ainda mais evidente em tempos de crise económica. Há direitos e há deveres e terá de haver actuações eficazes quando os respectivos contratos não são cumpridos, pois haverá sempre outros cidadãos que precisam de habitação e querem cumprir esses contratos.

Também não é mais aceitável, ainda do lado da oferta de habitação de interesse social que existam habitações “sociais” devolutas ou manifestamente subaproveitadas ou ainda mal aproveitadas porque servindo pessoas que manifestamente delas não precisam, e o que parece é que as há, e em número significativo, sendo, portanto, urgente desenvolver medidas que façam voltar esse parque público, sem uso ou deficientemente usado, a uma ocupação eficaz e socialmente justa.

Ainda do lado da oferta, e naturalmente numa perspectiva “gémea” das que acabaram de ser apontadas, há que garantir um serviço habitacional eficaz, através de uma gestão de proximidade funcionalmente adequada e socialmente sensível, uma ideia que quer associar critérios correntes de gestão urbana e habitacional a uma perspectiva de apoio social e habitacional que esteja positivamente “em cima do acontecimento” de forma a ser útil a quem habita, por exemplo acorrendo rapidamente a problemas sociais críticos, e a assegurar a melhor manutenção do parque de habitação de interesse social público, garantindo assim a sua melhor capacidade de “volante” na prestação do serviço habitacional, tal como foi atrás referido.

Um prolongamento deste tipo de cuidados tem a ver com o acabamento e equipamento dos espaços públicos exteriores quando estes se encontrem abandonados ou deficientemente mantidos, mas sempre uma perspectiva de gestão que assegure o mais possível condições de continuidade de manutenção, pois não é possível nem socialmente aceitável continuar-se a financiar ciclicamente intervenções que são, depois, ciclicamente deterioradas.

A esta matéria se voltará em outros artigos desta série, referindo-se, desde já, que certos conjuntos habitacionais preexistentes e, designadamente, certos edifícios e conjuntos de “habitação social”, podem ser considerados como inviáveis nesse caminho de vivência sustentada de edifícios e espaço público e, portanto, terão de ser significativa ou totalmente reconvertidos, havendo, aqui, naturalmente, lugar à ponderação da opção pela demolição total ou parcial de um dado edifício ou conjunto urbano; mas sublinha-se que esta “última” opção tem de ser um caminho entre vários caminhos, que será escolhido apenas quando as outras opções se revelem inviáveis em termos da intervenção inicial e da respectiva manutenção, e quando haja lugar a riscos evidentes de retorno à situação inicial de degradação social e física.

Novamente do lado da oferta há que ter o maior rigor, seja no apertar da malha de análise sobre as necessidades habitacionais detectadas, reduzindo-se, ao máximo, as situações de abuso no acesso a habitação de interesse social e actuando-se eficazmente na reposição da legalidade sempre que se detecte uma situação desse tipo. Neste perfil de actuação parece ser também de favorecer as medidas existentes associadas à perda de direito a habitação quando se detectem actuações ilegais por parte de quem teve direito a habitação de interesse social; e será de ter em conta as formas de actuação aplicadas noutros países europeus no sentido de um crescendo de rigor no enquadramento habitacional e de disponibilização de realojamentos específicos em situações de manifesta criação de instabilidade e violência nos conjuntos de realojamento por parte de grupos e pessoas que sejam identificados – afinal, como se sabe, uma única família pode arriscar a paz social de um grande conjunto habitacional, uma situação que parece não dever ser tolerável.

E, finalmente, e ainda do lado da oferta de habitação de interesse social considera-se que não mais se deve disponibilizar uma solução física com qualidade eventualmente duvidosa, mas sim um verdadeiro serviço habitacional e urbano, associado a um excelente desenho arquitectónico, pois só assim se disponibiliza habitação e habitar numa perspectiva expressivamente sustentada, tendo em conta quem habita e aí encontra uma solução o mais possível “à medida”, ou pelo menos não formatada para o inexistente “cidadão médio”, e tendo em conta a urgente (re)vitalização das nossas cidades, com mais habitantes, com mais pequenas e diferentes intervenções “mistas” de habitações tipologicamente variadas e equipamentos de proximidade, com habitantes mais diversificados, com mais vida “na rua” e com mais serviços urbanos. Chega de bairros sociais segregados, de periferias mortas e de centros urbanos vazios.

Sobre a evolução das carências habitacionais quantitativas e qualitativas: o lado da procura
Sobre a procura de habitação, com especial enfoque numa procura justificada por significativas carências socioeconómicas e culturais há que ter em conta, em primeiro lugar, a existência de um grande número de pessoas e famílias mal alojadas, ainda que não habitando nas tradicionais barracas, que, em Portugal, foram há poucos anos objecto de um plano específico de erradicação.

São pessoas que vivem em casas sem quaisquer condições, em casas abarracadas, e em péssimas condições de sobreocupação e/ou de falta de privacidade e de condições mínimas de funcionalidade e de expressão da sua identidade em pequenos quartos e em partes de casa.

Esta é a parte mais quantitativa das carências habitacionais ainda existentes em Portugal, que se refere a uma problemática muito difícil de “levantar”, mas muito crítica. E, de qualquer modo, importa ter em conta que as barracas continuam a surgir, em quantidades significativas e nos sítios mais inesperados – é por exemplo evidente o que tem vindo a acontecer em zonas periféricas ruralizadas onde tantas vezes por trás de sebes e junto a propriedades abandonadas se começam a acumular tendas e barracas num iniciar de um processo bem conhecido e que rapidamente ganha dimensões de actuação muito complicadas, e aqui haverá também um esforço fundamental a pedir à gestão municipal com apoio directo das forças de segurança, caso contrário qualquer dia teremos de ter um novo plano de erradicação de barracas.

Mas a procura de habitação por quem não pode aceder ao mercado habitacional está também, hoje em dia, a sofrer uma alteração e uma diversificação de características em termos de tipo geral de habitação que é pretendido. São os casais jovens e os jovens e adultos que vivem sós, são os numerosos idosos que pretendem viver em variadas condições de autonomia e comunidade, é o amplo leque de problemas de saúde que exigem internamento em residências assistidas e com cuidados específicos e por vezes muito exigentes, e é o muito amplo leque de tipos habitacionais que é desejado, associado a modos de vida específicos, mais rurais ou mais urbanos, mais “portugueses” ou culturalmente diversificados.

Atenção que não se tem em mente fazer habitação e especificamente habitação de interesse social praticamente à medida de cada pessoa e família, mas tem-se em mente a ideia firme de que não é possível continuar a aplicar soluções iguais e frequentemente mal concebidas para resolver os distintos problemas habitacionais atrás sintetizados – ainda há pouco tempo observei uma solução de habitação de interesse social em estudo para um país africano de língua oficial portuguesa em que nos pequenos “prédios” as cozinhas estavam ligadas às salas e estavam longe das janelas, podendo imaginar-se o que será cozinhar com processos tradicionais numa tal situação, e imaginar que tipo de ambiente seria produzido na respectiva sala-comum (este é apenas um exemplo entre muitos possíveis).

E não tenhamos qualquer dúvida que toda essa enorme e rica variedade de leques de exigências e desejos habitacionais e urbanos se reflecte num expressivo acréscimo dos “tradicionais” cálculos de carências de habitação de interesse social – pois quantas serão as pessoas hoje mal alojadas ou inadequadamente alojadas?

E atenção que faz todo o sentido que o acesso à habitação apoiado pelo Estado seja gradual e claramente “democratizado” e diversificado pois há muita gente que, de facto, deve ter direito a ser apoiada com uma habitação mais adequada e económica, pois esta faceta do apoio social pode ser determinante no alavancar de uma sua vida melhor, por estar verdadeiramente mais satisfeito com o seu habitar – da casa à vizinhança. E este é um tema fundamental neste retomar da discussão sobre “o problema da habitação”.

Ainda do lado da procura importa referir que, por um lado, só o Estado parece poder garantir essa melhor qualidade vivencial a quem não pode pagar a habitação de luxo ou a periferia tantas vezes “manhosa”, que, por outro lado, este papel estatal pode e deve ser desmultiplicado, e com muitas vantagens, através da actuação de cooperativas habitacionais e empresas – há excelentes exemplos desta prática –, e que, por outro lado, o apoio do Estado ao referido leque, muito amplo, de um habitar razoavelmente “à medida” pode e deve ser formatado e doseado de formas muito diversificadas de modo a que se apoiem melhor mais pessoas e mais famílias, e por acréscimo ganha-se a fundamental diversidade e mistura social, aquela que faz verdadeiras partes de cidade.

E não seria adequado rematar, para já, esta temática do que é hoje em dia a procura de habitação de interesse social sem referir que o espaço habitacional interior e exterior sofreu significativas mudanças nas últimas dezenas de anos, considerando-se que o principal valor de uma habitação, hoje em dia, se liga à sua capacidade de adaptação a diversos modos de vida e formas de ocupação, sendo de evitar todas as soluções excessivamente hierarquizadas e funcionalmente determinadas, e, naturalmente, esse valor habitativo tem também tudo a ver com a relação com a cidade viva e estimulante, pois tem de estar “morta e enterrada” qualquer ideia de fazer habitação apenas da porta de entrada para dentro.




Fig. 02: Faro, Alto de Santo António, uma pormenor do exemplar quarteirão da Cooperativa. Coobital, Arq.º José Lopes da Costa e Arq.º pais. José Brito; em finais do século XX e a ideia é que se aprendeu a fazer habitação de interesse social que realmente satisfaça quem a habita e integre o habitante na cidade.
Só que não há regra sem excepção e há, infelizmente, ainda muitas excepções desenvolvidas noutros locais por outros promotores, caracterizadas seja pelo mau desenho, ou pelo número excessivo de habitações, ou pela ausência de uma gestão adequada, ou pela inadequação das soluções aos habitantes, ou pela segregação relativamente à cidade.


Para além da oferta e da procura há outros aspectos determinantes para a resolução do “problema da habitação”.
Em seguida apontam-se, muito sumariamente, alguns aspectos considerados igualmente determinantes nos caminhos da resolução do “problema da habitação”. Estes aspectos são aqui, desde já, apenas brevemente registados, e serão objecto de desenvolvimento em futuros artigos desta série.

A qualidade residencial é um aspecto fundamental da qualidade de vida, mas não se deu ainda, entre nós, um passo firme e claro no caminho urgente de se considerar a qualidade residencial como um aspecto fundamental da qualidade de vida de todos nós, portanto, numa perspectiva qualitativa que está directamente ligada a uma qualidade arquitectónica residencial composta por aspectos mais e menos mensuráveis; e isto é considerando-se uma perspectiva racionalista desta quantificação, perspectiva esta que parece estar já em rápida e radical alteração.

O protagonismo do bom desenho para uma boa habitação é um dado que deveria estar já bem adquirido, mas, infelizmente, tal não acontece e, portanto, estamos ainda longe de poder viver uma cidade mais amigável, humanizada e eficaz, servida e produzida por condições afectivas e de “desenho”directamente associadas a uma aprofundada satisfação habitacional e aliadas à tão urgente e fundamental revalorização da imagem urbana.

A eventual oposição entre fazer de novo e reabilitar no âmbito da habitação de interesse social é uma falsa questão pois afinal o que conta é a intervenção “certa” no sítio “certo”, produzindo os melhores efeitos para os seus moradores e para a respectiva cidade. Neste sentido as acções de preenchimento, requalificação, regeneração, e inclusão de “pequenas” adendas ao tecido urbano parecem ser, hoje em dia, as mais adequadas e urgentes, mas não se deve fazer passar esta ideia através de uma deliberada redução da importância da construção nova e do esquecimento das necessárias acções de substituição radical de construções deterioradas e sem valor arquitectónico.

Há que ser coerente e diversificado no apoio a todo o leque de medidas necessárias para uma cidade melhor e mais viva e aqui tem de haver todo o lugar para o novo e para a reabilitação e, frequentemente, para a respectiva e mútua conjugação; mas cuidado que o novo em zonas centrais urbanas e a reabilitação não podem estar obrigados aos mesmos quadros reguladores exigidos ao novo em zona desafogada, pois os condicionamentos são extremamente diferentes.

Breves considerações complementares, sempre parcelares, sobre esta aproximação ao “problema da habitação”
Uma das ideias fundamentais nesta série de artigos estava já consubstanciada na dupla temática que foi abordada em 1948, no 1.º Congresso Nacional de Arquitectura, e refere-se a uma forte e íntima aliança entre a importância da Arquitectura no Plano Nacional e o Problema Português da Habitação, que constituíram, respectivamente, os dois únicos temas do referido congresso. Avançamos, assim, para a reafirmação da importância da Arquitectura habitacional, seja como desígnio arquitectónico, seja como objectivo cívico, numa perspectiva que recoloca ou reafirma a Arquitectura ao serviço da sociedade.

Outra das ideias a desenvolver nesta série de artigos refere-se ao sublinhar da importância da Arquitectura e da sua qualidade ao serviço de quem habita e da sua satisfação, como verdadeira ferramenta para uma vida melhor tanto no plano individual, como no nível familiar, vicinal e urbano. Uma arquitectura habitacional e, naturalmente, urbana, com verdadeiro interesse social, porque ao serviço de cada habitante, apoiando-o económica e eficazmente, satisfazendo os seus desejos habitacionais, mas também ao serviço da cidade que é de todos, numa opção por introduções de habitação duplamente úteis para quem as habita e para a cidade que por elas deverá ser melhor vitalizada e que com elas deverá ser mais agradável e atraente.

Notas:

(1) Em 1948, o 1.º Congresso Nacional de Arquitectura, promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos, tratou, essencialmente dois temas: o “Tema I – A Arquitectura no Plano Nacional”; e o “Tema II – O Problema Português da Habitação”.

Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 31 de Agosto de 2009
Edição de José Baptista Coelho

segunda-feira, agosto 24, 2009

260 - Cidade melhor harmonizada e humanizada: parte II - Infohabitar 260

Infohabitar, Ano V, n.º 260

Cidade melhor, harmonizada e humanizada, e o protagonismo de um espaço público bem desenhado – parte II

artigo de António Baptista Coelho

Cidade do peão, requalificação urbana, espaço público, harmonizar peões e veículos, uso do espaço público, habitar a cidade, escala humana

Label: Urbanismo de pormenor, cidade, peões, escala humana

Nota inicial: este artigo resulta de uma “releitura” de algumas pequenas partes de um extenso trabalho do autor, já editado e disponível na Livraria do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) com o título “Habitação Humanizada”.

Introdução

Neste artigo após uma breve perspectiva sobre o que foram os principais aspectos da evolução recente – talvez nos últimos 50 anos – da intervenção no espaço público, considerando-se, especificamente, o desígnio da humanização do habitar, passa-se para o apontamento da linha de actuação estratégica ligada à harmonização de tráfegos, uma linha que tem, naturalmente, tudo a ver, quer com a referida humanização do espaço urbano, quer com a perspectiva de uma cidade estruturalmente pedonalizada, que se defende nesta série de artigos, terminando-se o texto com uma breve reflexão sobre a importância da relação geral entre qualidade de desenho e habitar humanizado, uma relação que é também a base essencial de uma pedonalização viável.

Relembra-se que no primeiro artigo da série, que continua disponível no Infohabitar (editado na passada semana), se abordaram, globalmente, os cenários motivadores para o peão e a importância da boa “convivência” entre peões e veículos.

Na próxima semana pretende-se voltar a estas matérias, através de uma reflexão talvez mais “solta”, ou interiorizada, sobre os aspectos que poderão ir gradualmente (re)construindo a “estrutura” e os conteúdos fundamentais de uma cidade mais amigável e com uma verdadeira e estimulante escala humana em termos funcionais, ambientais e formais.



Fig. 01: uma vista de Hamburgo

A evolução da intervenção no espaço público e a humanização do habitar

Os espaços públicos conformam de maneira mais ou menos atraente a imagem sensível ou mesmo sensual que temos dos espaços citadinos e, tal como defende Michel de Sablet, “eles são locais das vidas mais diversas, oferecendo a maior liberdade de escolha de actividades, portanto, locais de liberdade, locais de socialização que a melhor célula de habitação nunca substituirá; prolongamentos da vida interior, os espaços públicos urbanos servem de receptáculo e mais ainda de vectores das múltiplas aspirações contraditórias dos citadinos que procuram sempre, mais ou menos conscientemente, estarem em relação estreita com a sua unidade de vizinhança, o seu bairro e a sua cidade.” (1)

Considerando-se o desígnio de se (re)fazer uma cidade mais harmonizada e humanizada, designadamente, através de um privilegiar cuidadoso dos usos e ambientes pedonais, a intervenção nos espaços públicos é imprescindível e pode mesmo ser determinante, mas uma intervenção “a sério”, que resolva questões de funcionamento da cidade das proximidades e da cidade maior, mas também questões de definição e caracterização de ambientes mais amigáveis, assim como, também, questões de desenho mais adequado, com mais valia humana e cultural.

Nesta perspectiva e relativamente à história recente da intervenção nos espaços públicos Michel de Sablet sublinha os seguintes aspectos que considera como mais caracterizadores das diversas “gerações” de tipos de intervenção no espaço público citadino (2):

– “A 1ª geração de espaços colectivos: ou a mediocridade sempre viva, o vazio grandiloquente, o espaço urbano lixo/resíduo, a arquitectura de cidade que se reduz e reduz o espaço público a volumes cortados pela arquitectura (contra-senso semântico e resultado morno) e as super-formas” (Sablet, p.31).

– “A 2ª geração de espaços colectivos: ou o miserabilismo, o culto intelectual do vazio monumental, a tradição clássica requentada, a grandiloquência e o pastiche monumentais exaltando o desprezo pela rua” (Sablet, p. 32).

– “A 3ª geração de espaços colectivos: ou a boa consciência, os redutores de escala recriam espaços com volumes interessantes, mas os grandes planos continuam a ser espaços de circulação, há um princípio de esforços para modelar sub-espaços entre os imóveis, mas ficamos pela organização da Carta de Atenas, e o reduzido e medíocre mobiliário tem um papel muito elementar” (Sablet, p. 33).

– “A 4ª geração de espaços colectivos: ou as atribulações da adolescência, a rua pedonal deixa de ser um modelo uniforme, os abrigos abrigam algo, a vegetação já não está «encaixada», a iluminação pública tem o seu papel, já não se trata de vias pedonais alinhadas, a água já não é elemento «estrangeiro»” (Sablet, p. 34).

– A 5ª geração de espaços colectivos ou a metamorfose urbana: Espaço verde? Praça? Fonte? O que importa. Concepção global e interpenetração das funções criam urbanidade (Sablet, p. 36).

– E uma outra geração “desalinhada”, mas significativa de “operações de renovação baseadas no zoning e no arejamento do tecido, que quebraram a continuidade da rede de espaços públicos e que muitas vezes equiparam, mas não resolveram” os mais diversos e críticos problemas urbanos (Sablet, p. 28).

Esta perspectiva, que aqui nos traz Michel de Sablet, de conhecimento da evolução das “famílias” formais/funcionais de intervenção nos espaços públicos, é claramente de “primeira linha” em termos de se reflectir sobre como melhor harmonizar e humanizar as nossas cidades, o autor dá-nos matéria para pensar sobre o que se fez nos espaços públicos ao longo de decénios, desde as intervenções praticamente “alienígenas” a uma actualidade em que já consideramos o espaço público urbano como verdadeiro protagonista de uma urgente qualidade de vida citadina na qual é fundamental dar um posição central aos habitantes e especificamente aos habitantes a pé, numa cidade do vagar que nos (re)conquiste em termos de hábitos e de afectos.

Nestas matérias importa aprender, tal como em outras áreas, com o que foi melhor e pior feito, designadamente, em Portugal e fora do país, havendo a noção de que, se em termos da edificação poderá não haver paralelismos muito significativos, nesta área do exterior público pode haver realmente muito a ganhar com o conhecimento aprofundado das muitas tentativas operacionais e soluções específicas tentadas e dos muitos resultados obtidos; e nesta perspectiva, por exemplo, uma obra, relativamente recente, de Virginie Picon-Lefebvre (3), sobre a concepção das formas urbanas mais recentes é, sem dúvida, um elemento útil a considerar.

E nesta perspectiva talvez falte, em Portugal, um estudo prático e de divulgação sobre o que de melhor se tem feito para se (re)criarem partes de cidade mais harmonizadas e amigáveis; um estudo onde terá, sem dúvida, lugar cativo uma pequena viagem pelo “nosso” vocabulário formal e funcional dos tradicionais elementos que fazem cidade – das travessas às pracetas –, visando também poder começar a entender como tais elementos se poderão converter positivamente a novos usos urbanos, mas sem perder as suas qualidades vivenciais e cívicas.


Fig. 02: a excelente intervenção pedonal no Rossio, em Lisboa.


Harmonização de tráfegos

Tal como se apontou, brevemente, no primeiro artigo desta série, a harmonização de tráfegos e a, associada, temática dos modos “suaves” de tráfego e dos modos de acalmia de tráfego são todos aspectos que merecem um adequado aprofundamento, pois têm uma actualidade evidente, seja em termos da agradabilidade e funcionalidade que podem induzir na vida nas cidades, seja nas suas importantes consequências em termos de circulação, acessibilidade, segurança e agradabilidade/conforto nas vizinhanças residenciais, onde têm evidentemente uma relação extremamente directa com os aspectos da humanização do habitar.

Apenas para avançar, um pouco mais, nesta temática de uma muito desejável aliança entre a humanização do habitar e a suavização – pode-se também designar humanização – do tráfego citadino, apontam-se, em seguida, algumas opiniões de Jane Jacobs (4) e de Spiro Kostof (5).

Jane Jacobs (1961) aborda vários temas essenciais na questão da harmonização de tráfegos:

– “É muito fácil atribuir a decadência (da cidade) ao trânsito… aos imigrantes.. ou aos caprichos da classe média. Os motivos da decadência das cidades são mais profundos e complexos. Dizem respeito ao que pensamos ser desejável e a à nossa ignorância a respeito do funcionamento das cidades… as mudanças devem ser contínuas, graduais, complexas e mais suaves” (Jacobs, p.353).

– “A separação entre peões e veículos só é possível contando-se com a redução estrondosa do número de veículos nas cidades. De contrário os estacionamentos, as garagens e as vias de acesso à volta das zonas pedonais … seriam medidas de desintegração e não de recuperação urbana” (Jacobs, p.383).

– “A vida atrai a vida, a separação dos pedestres não pode ser capricho (Jacobs, p.388). As ruas de pedestres se constituírem barreiras para os automóveis estacionados ou em movimento em volta de áreas intrinsecamente frágeis e fragmentadas podem ocasionar mais problemas do que solucioná-los” (Jacobs, p.298).

– “Ocorre pressão (positiva) sobre os automóveis quando se criam condições (de acalmia de tráfego) menos favoráveis para eles... A redução de automóveis tem de ser medida de base, mas ligada ao estímulo do uso do transporte público, e a pressão da cidade sobre o automóvel não pode ser arbitrária nem negativa e tem de ser uma medida gradual e com um amplo tempo de aplicação” (Jacobs, p.404).

– “(mais do que zonas pedonais) Calçadas largas são imprescindíveis… filas duplas de árvores… alargar e intensificar uso de calçadas com uso constante e o leito da rua seria assim automaticamente estreitado” (Jacobs, p.405).
...
Nestes textos Jane Jacobs põe em relevo a importância de se aprender com a boa cidade como fazer a cidade melhor, de certa forma numa comunhão de ideias com as últimas considerações de Sablet, pensando-se a cidade habitada verdadeiramente ao serviço de quem a habita, de quem a marca, de quem a sente em pormenor quando a percorre a pé e quando nela permanece, usando-a como se usa a própria casa.

Spiro Kostof (1992) aborda, também, vários temas essenciais na questão da harmonização de tráfegos, tendo em vista uma cidade mais amigável:

– “O mais importante aspecto do apoio ao peão (após todos os falhanços em áreas urbanas centrais e em zonas pedonais e comerciais específicas) liga-se não ao desenho de pólos comerciais, mas sim ao de vizinhanças residenciais ... através de um novo tipo de rua residencial designado woonerf, literalmente “living yard” (pátio residencial), por Niek De Boer da Universidade Técnica de Twente em 1963: uma rua cuja principal função não é a circulação e o estacionamento automóvel, mas sim o andar a pé e o recreio.
Nos meados dos anos 70 após vários ensaios o Woonerf foi nacionalmente adoptado na Holanda e mereceu um sinal de tráfego distinto. O pedido de redesenho/reconfiguração de uma determinada rua parte dos seus respectivos residentes. Elementos que distinguem claramente das restantes vias: pavimentos com aspecto ambíguo que distinguem da imagem da estrada; elementos de acalmia de tráfego de veículos; e inserção de verde urbano e de estacionamento repartido de forma a bloquear linhas de vista com continuidade...
O conceito na Alemanha transformou-se no de “rua viva/vivível” (Wohnstrasse) e acabou por ser exportado para os USA ... (e reinterpretado por) Duhany: ruas mudam de carácter do formal para o informal, volumes são bem definidos, vistas fechadas, há uma paisagem de rua partilhada com o carro, mas desenhada em torno das necessidades e dos prazeres pedonais ... e descobriram que é necessário nova regulamentação neste sentido pois de contrário estas ideias são frequentemente ilegais” (Kostof, pp.240 a 242).

– “No passado a rua era o lugar onde as classes sociais se misturavam. Era o palco de cerimónias solenes e espectáculos improvisados, de observação humana, de comércio e de recreio... esta rua do passado era um sítio pouco saneado, física e moralmente, mas era também escola e palco de urbanidade... Em tudo isto o contentor contava, com certeza, mas não era o que mais contava... É por isso que não entendo o reviver do contentor sem um compromisso solene de o reinvestirmos com verdadeiro vigor urbano, com urbanidade. Enquanto... escaparmos à tensão social, agendarmos encontros com amigos e alegremente passearmos sozinhos em caixas de metal reluzentes, climatizadas e musicais, a rua renascida será um local que gostamos de visitar talvez frequentemente, mas não habitar – um espaço de brincadeira, um museu.
E também constituirá o sítio de enterro das nossas esperanças de exorcizar a pobreza e os problemas ao confrontá-los diariamente; o sítio de enterro das nossas esperanças de aprender uns com os outros; o sítio de enterro da excitação não ensaiada, da acumulação do conhecimento dos modos de ser e viver e dos benefícios residuais de uma vida pública” (Kostof, p.243).

De certa forma Kostof aprofunda e justifica a necessidade e a urgência de termos uma cidade intensa e intimamente vivida e não haja dúvida que esta “nova” forma de pensar a cidade tem excelentes e “recentes” modelos realizados, por exemplo, em Portugal, como é o caso dos Bairros de Alvalade e de Olivais Norte/Encarnação em Lisboa, os dois com desenhos bem distintos, mas igualmente sensíveis a uma cidade melhor, porque mais agradável e humanizada.


Fig. 03: harmonização de tráfegos e velhas soluções ainda válidas.

Relação geral entre desenho e uma cidade mais amigável e humanizada


Entre as mais recentes lições de Herman Hertzberger e as mais velhas, mas igualmente, preciosas lições de Gordon Cullen passam muitas das preocupações para com uma cidade mais humanizada.

Tal como diz Herman Hertzberger nas suas Lições de Arquitectura: (6)

– “A arquitetura deve ser generosa e convidativa para todos, sem distinção… O arquiteto é como o médico … deve simplesmente providenciar para que aquilo que pratica faça com que alguém se sinta melhor” (p.267).

– “Devemos ter cuidado para não deixar buracos e cantos perdidos e sem utilidade, que como não servem para nenhum objetivo, são «inabitáveis». Um arquiteto não deve desperdiçar espaço… pelo contrário deve acrescentar espaço… também em lugares que em geral não despertam atenção, isto é, entre as coisas” (p.186).

– “Onde quer que haja desperdício de espaço para o trânsito, os edifícios se tornam isolados, distantes entre si, isso faz com que seja impossível que o espaço urbano evolua organicamente” (p. 192).

E ainda Hertzberger nas suas Lições de Arquitectura (p.193) citando Aldo van Eyck (1962): “Faça de cada coisa um lugar, faça de cada casa e de cada cidade uma porção de lugares, pois uma casa é uma cidade em miniatura e uma cidade é uma casa enorme. O espaço deve ser articulado para criar lugares … quanto mais articulação houver, menor será a unidade espacial, e, quantos mais centros de atenção existirem, mais o efeito total será individualizante.”

Uma cidade mais generosa e convidativa, uma cidade coesa, uma cidade sem espaços abandonados, uma cidade com imagens cuidadas e “desenhadas” ao serviço de uma cultura e de quem a habita no dia-a-dia, e aqui chegamos ao velho e bom Gordon Cullen (7), um autor cuja importância é hoje em dia urgente redescobrir e reafirmar, pois as suas ideias são essenciais para o aprofundamento da qualidade do desenho, da caracterização e da criação de uma cidade melhor e de uma paisagem urbana melhor pormenorizada; fiquemos então, brevemente, com Cullen em alguns dos caminhos vitais de estudo/projecto de imagem urbana por ele propostos:

– “Será possível manipular todos os matizes de escala e estilo, de materiais e cor, de carácter e individualidade e, justapondo-os, criar algo que seja verdadeiramente proveitoso para a colectividade” (p.12).

– “As estatísticas são coisas abstractas; ao ser transportadas para planos e depois os planos convertidos em edifícios, o resultado carece de vida. O resultado não será mais do que um diagrama tridimensional, no qual se exige que a pessoa humana viva” (p.12).

– “O conformismo mata, aniquila; a diferenciação, pelo contrário, é fonte de vida ... E tudo é unificado pelo fogo e pela vitalidade da imaginação humana, e assim torna-se possível fazer habitações para homens” (p.13).

– “A questão essencial é que na opinião do público o planeamento oficial é frio, técnico e estéril, enquanto que na minha opinião uma boa planificação não é senão uma rua ampla e direita, com árvores de copa recortada dos dois lados... e basta! E tudo é bem diverso. A composição de um conjunto urbano é potencialmente uma das mais emotivas e variadas fontes de prazer” (p.15).

– “Em primeiro lugar, há que «forçar» a paisagem urbana, é difícil manter um princípio geral e, em vez disso, é mais fácil acarinhar o particular. Subdividindo o conjunto nas partes componentes” (p.16).

– “A paisagem urbana constrói-se … Primeiro, objectivamente, através do senso comum e da lógica, baseados nos benévolos princípios da riqueza, da amenidade, da experiência e da privacidade ... Qual a base de partida? A única possível é estabelecer a forma com a qual o ser humano estabelece contacto com o que o rodeia. Clara e sobriamente, afirmando-se....(um sistema de relações)... Ao criar um sistema, devemos procurar essencialmente organizar o campo de tal forma que os fenómenos urbanos se integrem logicamente” (p. 194 e 195).

Deixemos os comentários sobre algumas destas fundamentais considerações de Gordon Cullen para próximos artigos desta série, pois há aqui caminhos de grande importância e actualidade e, para já, e num último desenvolvimento destas linhas de pensamento, neste caso referidas aos recentes estudos de Andres Duany (8), sublinhemos ainda que o desenho urbano pode ser considerado como verdadeira arte cívica, o que é, sem dúvida, uma perspectiva com grande interesse, que sempre esteve na mente de quem projecta, mas que frequentemente é mal aplicada.

E fiquemos, então, neste artigo, com a ideia final de se poder vir a recuperar esta noção de “arte cívica” como forma de encarar um desenho urbano ao serviço de uma adequada harmonização funcional e ambiental e de uma cidade claramente amigável e marcada pela escala e usos humanos.


Fig. 04: uma praceta de Roma.


Notas:

(1) Michel de Sablet, “Des espaces urbains agréables à vivre – places, rues, squares et jardins”, 1991, p.16.
(2) Michel de Sablet, “Des espaces urbains agréables à vivre – places, rues, squares et jardins”, 1991.
(3) Virginie Picon-Lefebvre, “Les espaces publics modernes”, 1997.
(4) Jane Jacobs, “Morte e vida das grandes cidades” , trad. Carlos Mendes Rosa, 2001 (1961).
(5) Spiro Kostof, “The City Assembled – The elements of urban form through history”, Londres, Thames & Hudson, 2004 (1992), p. 240-242.
(6) Herman Hertzberger, “Lições de Arquitetura”, 1996 (1991).
(7) Gordon Cullen, “El Paisaje Urbano – Tratado de estética urbanística”, Barcelona, 1977 (1971).
(8) Andres Duany, Elizabeth Plater-Zyberck e Robert Alminana, “New Civic Art : Elements of Town Planning”, 2003.
Infohabitar, Ano V, n.º 260

Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 23 de Agosto de 2009
Edição de José Baptista Coelho

sexta-feira, agosto 14, 2009

259 - Cidade melhor: o peão – parte I - Infohabitar 259

Infohabitar, Ano V, n.º 259



Cidade melhor, desígnios fundamentais numa cidade positivamente renovada: o habitante peão – parte I

artigo de António Baptista Coelho

Label: Urbanismo de pormenor, cidade, peões


Espaços, cenários e ambientes citadinos adequados e motivadores para o peão
A cidade habitada, das vizinhanças e dos bairros, a cidade viva das pracetas e das avenidas e a cidade atraente, seja pelas mais diversas actividades económicas e culturais, seja pelas suas paisagens urbanas estimulantes e caracterizadas, constituem, na prática, como é evidente, uma única realidade física e ambiental.

Uma tal realidade tem como base essencial o serviço funcional e a qualificação do dia-a-dia dos habitantes da cidade, e, portanto, tudo o que se faça ou que se privilegie deve confluir nesse sentido: tornar a vida na cidade mais funcional, mais agradável, mais positivamente caracterizada e mais enriquecedora, em termos das mais diversas experiências e com natural destaque para as socioculturais.

Neste sentido a cidade, os seus bairros e as suas vizinhanças devem ser (re)concebidas visando-se uma “cidade melhor” para os seus habitantes – “próprios e visitantes –, e neste objectivo é possível identificar um desígnio essencial que é facultar espaços, cenários e condições citadinas que sejam realmente adequados e motivadores para a pessoa e designadamente para a pessoa independentemente do seu “invólucro” ou meio mecânico de deslocação.

Este desígnio favorecedor da pessoa a pé tem várias justificações, destacando-se a razão básica de sermos peões, naturalmente, e não haver qualquer obrigatoriedade de uso dos veículos privados, mas também a razão fundamental de uma boa parte da população, os mais novos e os mais idosos, não ser tendencialmente uma população “automobilizada” e precisar, mesmo, de condições claramente positivas para uso pedonal da cidade, para poder ter um adequado desenvolvimento pessoal – no caso dos mais jovens – e adequadas condições de conforto, de animação urbana e de saúde – no caso dos mais idosos.



Fig. 01: um pormenor da cidade oferecida aos habitantes peões em Hamburgo.


Ainda uma outra razão para uma cidade que privilegie o peão é que a cidade feita para o automóvel é um cenário sem escala, sem humanização e sem capacidade de estímulo para a interacção social, havendo que se escolher entre funcionalidade veicular e agradabilidade e coesão humana, e a esta reflexão é fundamental juntar a ideia da cidade vivida a 50 km/h – ou mesmo a mais –, que nunca poderá ser uma cidade do convívio e do estar nos seus espaços públicos, uma cidade que, mais do que vivida é um sítio onde sobrevivemos refugiados nas células domésticas e com “breves” incursões aos centros comerciais, onde cada vez mais tudo se passa num “regime” de grande autonomização, isolamento e padronização de acções.

E a esta questão da velocidade e do isolamento no interior dos veículos privados, num prolongamento do referido isolamento doméstico, está ligada a perspectiva de uma cidade vivida ou consumida com pressa, onde parte do tempo se some nas deslocações, onde em casa a televisão bombardeia com uma programação sem-sentido e que faz dormir, e onde acaba, sempre, por não haver, realmente, tempo para se poder percorrer e, verdadeiramente, viver as vizinhanças e os espaços urbanos.

Mas a cidade pode e deve ser feita de espaços urbanos estrategicamente animados, que suportem uma cidade do vagar, que possa trazer o habitar, verdadeiramente, para o espaço exterior comum e público, transvasando, agradável e complementarmente das células privadas, estimulando, naturalmente, a observação, o passear, o lazer urbano “sem destino”, e, naturalmente, o convívio, numa outra fundamental dimensão do habitar com inúmeras e estimulantes nuances, que vão marcando as essenciais e dinâmicas sequências desde as vizinhanças aos centros urbanos.

Um pequeno ponto de situação: a convivência entre peão e automóvel
Neste momento em Portugal temos já algumas das nossas zonas predominantemente pedonais a serem utilizadas em continuidade há algumas décadas e seria a altura de se fazer um estudo técnico aprofundado sobre os aspectos identificados como mais negativos e mais positivos nessas intervenções, considerando-se a eventual desvitalização do tecido urbano próprio e envolvente, ou, pelo contrário, a sua dinamização e a melhoria da qualidade vivencial própria e indirecta induzida nas respectivas cidades e partes de cidades.

Um tal estudo seria estratégico para a eventual replicação de tais experiências de uma forma mais afinada e eficaz, seja em aspectos funcionais seja na criação de verdadeiras ambiências de vivência da rua com intensidade e continuidade. E um tal estudo ganha, hoje em dia, uma importância acrescida com a actualidade da implementação de meios de acessibilidade mais amigos do ambiente e mais compatíveis com a fruição do espaço urbano pelo habitante a pé e com vagar.

Finalmente, a oportunidade de um tal estudo também decorre de se estarem, provavelmente, a desenvolver operações de pedonalização e de introdução de novos meios de deslocação potencialmente mais amigáveis, mas com problemas de concepção por vezes críticos e que acabam por poder colocar em risco, a prazo (até por vezes curto), a opção pela predominância pedonal; um risco que é sem dúvida extremamente crítico, pois há, naturalmente, muito a ganhar em termos de uma cidade mais agradável, humanizada e viva com aquelas intenções de pedonalização.

Nesta perspectiva de ponto de situação cabe fazer, aqui, uma brevíssima referência à história das zonas pedonais no mundo, e nesta linha de actuação técnico-política, tal como refere Spiro Kostof, em “The City Assembled” (1), em cerca de dez anos, na Alemanha, entre 1966 e 1977, passou-se de cerca de 60 áreas centrais urbanas pedonais para 370, e a grande rua Sröget em Copenhaga, que se desenvolve entre a Câmara Municipal e a principal praça da cidade, foi um grande êxito, tendo sido gradual e continuamente acrescentada no apoio a um uso que ele próprio foi também mudando, desde um início mais “circulatório”, até um presente claramente de efectivo estar no exterior público – e estas são informações retiradas de vários recentes artigos do urbanista Jan Gehl sobre o assunto.

E lembremos, por exemplo, o que parecem ter sido as boas experiências de muitas ruas centrais de cidades portuguesas, assim como o extraordinário uso que têm os espaços pedonais dos “calçadões” de cidades brasileiras.



Fig. 02: uma imagem do “calçadão” de Fortaleza

Mas também não podemos esquecer que a pedonalização teve grandes fracassos em todo o mundo: na parte referida da obra de Kostof este autor refere que nos USA o Mall pedonal suburbano foi um semi-fracasso, mas muitos de nós já tiveram a oportunidade de viver o problema existente, por exemplo, nos espaços pedonais do centro de São Paulo; eu diria, os problemas, ou pelo menos a ausência de qualidade de uso pedonal, e mesmo em Portugal há intervenções pedonais que não resultaram ou resultaram apenas de forma muito deficiente. E, portanto é necessário aprender com todas estas experiências, tendo todo o cuidado na sua apreciação, designadamente, quando se trata de escalas e envolvências urbanas e sociais extremamente distintas.

Kostof, no referido estudo, oferece-nos uma excelente síntese, com sentido positivo/construtivo, da evolução das zonas mistas de peões e veículos que servem conjuntos residenciais, e aqui se localizará provavelmente outra linha de estudo com grande oportunidade, em termos da desejada aliança entre humanização do tráfego e humanização do habitar (2).
De certa forma podemos considerar que a pedonalização deve poder ter fortes raízes numa vivência próxima entre “casa” e espaço público amigável para o peão, numa condição que não nega, nem pode negar, a sua aplicação em espaços urbanos mais comerciais e animados, mas que exigirá, provavelmente, que nesses espaços haja influência directa de alguma habitação, que tenderá, sempre, a apropriar-se com intensidade e afectividade dos “seus” exteriores contíguos. E, complementarmente, talvez que o bom hábito da predominância pedonal ao “começar” na proximidade de grande número de espaços de residência possa predispor o habitante para encarar de forma mais natural e positiva o prolongar dessa predominância nas zonas centrais urbanas.

O grave erro de considerar o automóvel como "inimigo público"
Já há bastantes anos numa interessante acção técnica de discussão destas questões e depois de um responsável político ter aberto os trabalhos referindo qualquer coisa como “o automóvel é um inimigo público”, saindo, depois, como é habitual, por ter outro compromisso, um técnico estrangeiro, começou por comentar que tinha pena de não poder referir, directamente, àquela individualidade que ela estava errada, porque não faz qualquer sentido atribuir as culpas dos múltiplos problemas de congestionamento e deficiente qualidade ambiental aos veículos privados, actuando numa perspectiva “repressiva” sobre o mesmo, sem, antes e concertadamente se desenvolverem condições melhoradas e mesmo estimulantes de uso da cidade em bons transportes públicos e a pé, visando-se soluções coerentes e articuladas desde a escala “micro” das vizinhanças à macro das regiões.

A primeira acção a desenvolver é cativar o habitante para usar a sua vizinhança, o seu bairro, a sua cidade e mesmo a sua região, preferencialmente, a pé e em transportes públicos ou colectivos e só depois, então, actuar do lado das sanções e estimular, por diversas formas, a redução do uso dos veículos privados e designadamente dos automóveis e mesmo, quem sabe de determinados tipos de tráfego automóvel (exemplo, mais poluidor, menos útil, de atravessamento, etc.).

Naturalmente que esta sequência “de antes e depois” será sempre um pouco relativa e tem mais a ver com uma coordenação de acções do que com um ordem específica, mas lembro que o referido técnico sublinhava mesmo ser necessário cativar o habitante para usar a cidade em transporte público através de um serviço de elevada qualidade, designadamente, em termos de conforto e de segurança e só então, posteriormente e tendo-se ganho novos hábitos, então passar para acções específicas de redução do tráfegos de automóveis privados.

E pode-se juntar a esta matéria a ideia que será também só depois de se tornarem várias partes da cidade mais humanizadas, mais agradáveis para se circular a pé e se estar, mais “verdes”, mais mutuamente conjugadas, mais sossegadas e estrategicamente mais animadas e úteis, que se deverá passar para a referida fase da acção directa sobre a redução da circulação dos automóveis privados; e atenção que essa fase de “pedonalização preparatória” nunca poderá ser nem fundamentalista nem “cega”, por exemplo, às fundamentais funcionalidades de quem ainda habita a cidade mais central.



Fig. 03: numa vizinhança em Lubeck, mesmo um clima relativamente agreste não reduz a importância do desenvolvimento de uma afirmada vizinhança pedonal.

Sublinha-se, finalmente, que tudo isto só poderá ser viável numa perspectiva de cuidadoso faseamento e encadeamento das intervenções, numa retroacção de acções e avaliações e numa estratégia activa de constante desenvolvimento do espaço assim intervencionado, sem estagnações desmotivadoras; só assim os habitantes poderão ter a necessária paciência para esperar “pela sua vez”, vendo que o processo está realmente em curso.

Problemas de uma cidade automobilizada e virtualidades de uma cidade mais amiga do peão
Lançou-se já o que se julga ser um conjunto razoável de reflexões para este primeiro artigo, no Infohabitar, sobre o que tem de ser, urgentemente, uma cidade melhorada com base num conjunto de desígnios marcados pela ideia da predominância do “habitante peão” e conclui-se esta reflexão com uma citação do referido estudo de Spiro Kostof, na qual este autor cita alguns dos mentores do “novo urbanismo” sobre esta temática.

“O tráfego automóvel tornou-se a experiência central e incontornável do reino do espaço público ... e a regulamentação ao enfatizar o tráfego rápido e a abundância de zonas de estacionamento ... nas palavras de Duany e Plater-Zyberk «cria receitas virtuais de desintegração urbana». ... Duany e Plater-Zyberk propõem uma arma contra mais avanços do automóvel em território do peão: a TND a Traditional Neighborhood Development ordinance (código de Desenvolvimento Tradicional das Vizinhanças, DTV), um código genérico de urbanidade, consolidador da sabedoria vernacular de determinadas zonas urbanas preexistentes, desenvolvendo novos standards e dimensões para ruas. A habitação animadora da rua é reinventada no DTV como tipologia habitacional standard, o andar a pé é encorajado pela localização de lojas a distância flanante de casa, os passeios têm um mínimo de 3,7m quando há lojas e as árvores de arruamento são obrigatórias”. (3)

Afinal, como se entende, até parece que muito de tudo isto terá a ver com o aprofundar de um habitar mais adequado, cuidado e agradável, um aprofundar onde há aspectos dimensionais e outros, sendo que os dimensionais estão directamente ao serviço dos desígnios da conformação de uma cidade do habitar e do vagar.

Notas:([1]) Spiro Kostof, “The City Assembled – The elements of urban form through history”, Londres, Thames & Hudson, 2004 (1992), p. 240-242.
(2) Idem. Ibid.
(3) Idem. Ibid.

Label: Urbanismo de pormenor, cidade, peões
Infohabitar, Ano V, n.º 259
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 14 de Agosto de 2009
Edição de José Baptista Coelho

segunda-feira, agosto 10, 2009

258 - Revista Ambiente Construído - Vol. 9, N.º 2: artigos - Infohabitar 258

Infohabitar, Ano V, n.º 258

Porque se considera ser assunto de grande interesse, faz-se, em seguida, a divulgação pormenorizada de uma recente e importante edição na WWW de um novo número de uma excelente revista técnica em língua portuguesa:
o Ambiente Construído, Vol. 9, N.º 2 (2009)
A revista online Ambiente Construído editada sob responsabilidade da Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído cujo último número (especial, Vol. 9 N.º 2) trata a temática da "Qualidade do Projeto".

Os editores deste número do Ambiente Construído são a Prof.ª Arq.ª Sheila Walbe Ornstein da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – que, como é sabido, foi um dos primeiros autores a editar no nosso Infohabitar – e o Prof Dr. Carlos Torres Formoso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Como fica bem evidente no tema "Qualidade do Projeto", trata-se de uma matéria de grande actualidade e que é abordada, nesta revista, num amplo e estimulante leque de interessantes artigos, cujas quase 200 páginas de pdf (s) estão disponíveis, facilmente, já aqui, no link. da revista Ambiente Construído:
http://www.seer.ufrgs.br/index.php/ambienteconstruido/index

Sublinha-se, ainda, uma vez mais a estimulante relação entre esta edição do Ambiente Construído dedicada à Qualidade do Projeto e o próximo I Simpósio Brasileiro de Qualidade do Projeto no Ambiente Construído [SBQP 2009], que será realizado em São Carlos, São Paulo, de 18 a 20 de Novembro de 2009, em conjunto com o IX Workshop Brasileiro de Gestão do Processo de Projeto na Construção de Edifícios.



E informa-se que o Site deste evento está disponível em:
http://www.arquitetura.eesc.usp.br/ocs/index.php/SBQP2009/SBQP2009

Em seguida e com a devida autorização, que muito se agradece, dos editores deste número do Ambiente Construído, editam-se no Infohabitar os resumos de todos os artigos que integram a revista, sublinhando-se, uma vez mais o interesse bem evidente destes artigos para um ambiente construído que tudo tem a ganhar com uma qualidade de projecto devidamente enquadrada, informada, aprofundada e verificada, designadamente em termos de avaliações pós-ocupação e estudos de caso que identifiquem situações globalmente exemplares e significativamente replicáveis.

O editor do Infohabitar
António Baptista Coelho

Ambiente Construído, Vol. 9, No 2 (2009)
. (excerto do) Editorial
“Este número especial da Revista Ambiente Construído tem como tema a Qualidade do Projeto. Pretende celebrar o início das atividades do Grupo de Trabalho em Qualidade do Projeto (GTQP) da ANTAC, constituído em outubro de 2008.

Na chamada de trabalhos para este número foram destacados os seguintes temas: briefing e gestão de requisitos; natureza do processo de projeto; criatividade no processo de projeto; definição do escopo de projeto; avaliação de projetos; desenvolvimento do produto na construção civil; práticas profissionais de projeto; coordenação e compatibilização de projetos; modelagem do processo do projeto; processos colaborativos e engenharia simultânea; gestão da qualidade e certificação na atividade de projeto; tecnologia da informação para apoiar o processo de projeto; avaliação pós-ocupação e indicadores de qualidade do projeto.
...”
Sheila Walbe Ornstein, Co-editora convidada, FAUUSP
Carlos Torres Formoso, Editor-chefe, NORIE - UFGRS

Artigos e respectivos resumos:
. Flexibility as a design aspiration: the facilities management perspectiveautor: Edward Finch

O conceito de flexibilidade como aspiração de projeto é discutido com freqüência na literatura sobre Arquitetura. No entanto, é invariavelmente os profissionais de gestão de facilities que herdam a solução da edificação: estes são os que acabam sofrendo as conseqüências das soluções flexíveis ou insolúveis. Neste sentido, os edifícios não são soluções acabadas, mas em desenvolvimento.

Um projeto de edificação flexível é aquele que pode se adaptar a situações que se alteram. No entanto, o dilema do projetista é antecipar-se às prováveis mudanças. Como tal, o projetista assume o papel de futurólogo”, ”vidente tecnológico” ou analista de mega-tendências.
O objetivo deste artigo é apresentar a perspectiva de flexibilidade da gestão de facilities. Sugere-se como os projetistas podem ajudar a produzir uma solução de projeto mais “maleável” e que o conceito de flexibilidade universal é técnica e economicamente inatingível. Projetar para a flexibilidade requer o conhecimento de múltiplos estados futuros, tanto os possíveis, como os prováveis.

. Quality of design and usability: a vetruvian twin
autor: Theo J. M. van Voordt
Este artigo explora diferentes indicadores de qualidade do projeto arquitetônico usados em debates e avaliações de projetos na Holanda. Além da antiga tríade vitruviana da utilitas, firmitas e venustas, é defendida uma visão mais ampla quanto à qualidade do projeto arquitetônico.

Como as construções vão muito além da “arte livre”, a usabilidade e a opinião do usuário, em especial, devem ser incluídas entre os indicadores de qualidade do projeto. O marco teórico dos indicadores de qualidade foi utilizado para refletir sobre os critérios que foram aplicados para selecionar o projeto da nova prefeitura e biblioteca de Deventer.

Uma comparação entre a teoria e a prática mostra que há divergências entre uma avaliação integral da qualidade usando múltiplos critérios, preferências e interesses pessoais e restrições, como limitação de tempo, dinheiro e informação. Ao mesmo tempo, avaliações integradas de projetos (ex ante) ou de construções em uso (ex post) são essenciais para acumular um corpo de conhecimento sobre como sintetizar forma, função e construção dentro dos limites das restrições do projeto.

. Discussão sobre a importância do programa de necessidades no processo de projeto em arquitetura
autores: Daniel de Carvalho Moreira, Doris Catherine Cornelie Knatz Kowaltowski


O programa de necessidades cumpre um importante papel no projeto de
arquitetura e contribui para que o projetista considere a complexidade envolvida na concepção de espaços urbanos e de edifícios.

Durante a década de 1950, arquitetos e engenheiros, atentos ao panorama procuravam aplicar novas técnicas ao desenvolvimento do projeto em arquitetura. Organizaram-se, a partir de várias conferências, grupos de estudo sobre métodos de projeto e o assunto tomou rumos diversos nos quarenta anos seguintes, inclusive uma vertente dedicada ao programa arquitetônico.
No Brasil, tais métodos de projeto não tiveram repercussão direta na atividade profissional dos escritórios de projeto, tampouco sobre programas de ensino ou pesquisa das escolas de engenharia e arquitetura. Este trabalho discute o programa de necessidades e sua contribuição no processo de projeto em arquitetura, através da discussão de métodos para seu desenvolvimento, das normas que definem seus conteúdos e da sua forma de apresentação, visando a efetiva aplicação dos seus conceitos.

. The gaps between healthcare service and building design: a state of the art review
autores: Patrícia Tzortzopoulos, Ricardo Codinhoto, Mike Kagioglou, John Rooke, Lauri Koskela

Os edifícios hospitalares tem diversos objetivos, dentre os quais a provisão de um ambiente apropriado à realização dos serviços de saúde, que contribua para o aumento da eficiência destes serviços e para a melhoria do fluxo de pacientes e da experiência dos mesmos.
A melhoria na eficiência dos serviços está relacionada a edifícios modernos, com melhor layout e adjacências entre departamentos, bem como a processos clínicos eficientes e sistemas de informação adequados. No entanto, muitas vezes esses objetivos não são atingidos devido à complexidade dos requisitos de projeto e da gestão dos intervenientes.

O presente artigo tem como objetivo buscar entender, através da literatura existente, como os processos de projeto dos serviços de saúde e da edificação para saúde podem ser melhor integrados, e como a melhoria do desempenho dos serviços está relacionada à flexibilidade de adaptação da edificação em relação a futuras alterações ou mudanças.
Os resultados indicam que barreiras funcionais no processo de projeto restringem tal integração, assim como a adoção de soluções inovadoras. Além disto, existe a necessidade de uma abordagem que apoie o desenvolvimento integrado dos projetos dos serviços e da edificação com foco nas questões operacionais (e.g. flexibilidade e durabilidade) que satisfaçam diversas necessidades ao longo do tempo.

. Desenvolvimento integrado de projeto, gerenciamento de obra e manutenção de edifícios hospitalaresautores: Michele Caroline Bueno Ferrari Caixeta, Alexandra Figueiredo, Márcio Minto Fabrício
As edificações hospitalares são complexas e possuem uma grande importância social e econômica. Além disto, o rápido avanço da tecnologia e dos procedimentos médicos fazem com que a produção destas edificações demandem novas formas de gerenciamento e desenvolvimento.
Esta pesquisa busca investigar e caracterizar novos modelos de estruturação e integração das atividades de desenvolvimento do produto para esse tipo de edificação, considerando a sua inerente complexidade. Assim, o objetivo do presente trabalho é analisar o processo de desenvolvimento de edifícios hospitalares de médio porte, considerando-se as macrofases de projeto, gerenciamento da obra e gerenciamento de manutenção, através de um estudo de caso descritivo realizado numa empresa especializada em projetos hospitalares. Desta forma, pode-se obter uma visão integrada do processo de desenvolvimento desse tipo de produto.

Como resultado, são apresentados os modelos de cada uma das macrofases do processo de desenvolvimento dos empreendimentos estudados de forma a constituir uma referencia genérica para o desenvolvimento integrado de novos empreendimentos hospitalares. Assim, o trabalho contribui para discussão sobre a gestão do processo de projeto em geral e, particularmente, das práticas de desenvolvimento de projetos hospitalares.

. Indicadores de qualidade ambiental para hospitais-diaautores: Patrícia Biasi Cavalcanti, Giselle Arteiro Nielsen Azevedo, Vera Helena Moro Bins Ely
O presente artigo apresenta os resultados de visitas exploratórias realizadas em 31 unidades de hospital-dia e de quimioterapia do Rio e Janeiro, São Paulo e Florianópolis. Esta pesquisa teve como objetivo definir aspectos determinantes da qualidade ambiental e da apropriação na percepção de seus usuários. Foram realizadas observações diretas e entrevistas semi-estruturadas, focando em aspectos organizacionais, perceptivos, comportamentais e ambientais.

O trabalho fundamenta-se no conceito de distrações positivas, interpretando-o como a possibilidade de proporcionar uma postura mais ativa ao paciente de forma que ele possa desviar seu pensamento do processo de tratamento e da própria dor. As visitas confirmaram que os ambientes de hospital-dia não costumam estar capacitados para atividades de interesse dos pacientes.
Além disto, os resultados permitiram identificar atributos ambientais de grande relevância para os usuários, tais como: privacidade, controle das condições ambientais, polivalência e variabilidade da organização e arranjos espaciais. Estes resultados podem assim contribuir para a humanização destes ambientes . Discute-se sobre a possibilidade de que o hospital-dia torne-se uma extensão dos locais que o indivíduo vivencia em seu cotidiano, permitindo usos que são parte de sua rotina.

. A natureza do valor desejado na habitação socialautores: Ariovaldo Denis Granja, Doris Catharine Cornelie Knatz Kowaltowski, Silvia Aparecida Mikami Gonçalves Pina, Patricia Stella Pucharelli Fontanini, Lia Barros, Dina de Paoli, Ana Mitsuko Jacomit, Rafaela Massei Rodrigues Maçans
Aumentar a qualidade e a entrega de valor no ambiente construído pressupõe um processo contínuo de aperfeiçoamento para a presença efetiva de benefícios aos ocupantes.
Este artigo apresenta um estudo obre a natureza do valor desejado de usuários de conjuntos de interesse social, que adota como referencia sua natureza subjetiva e multidimensional na percepção do morador.

O objetivo da pesquisa é verificar a potencialidade do conceito de valor desejado para a introdução de melhorias nos projetos habitacionais. No método de pesquisa foram utilizadas a técnica de pesquisa declarada com cartões ilustrados e entrevistas semi-estruturadas sobre questões socioeconômicas como instrumentos de coleta de dados. A amostra consistiu de 195 respondentes em quatro conjuntos habitacionais na região de Campinas, SP. Seguiram-se inferências estatísticas com base em intervalos de confiança para a determinação da importância dos itens de valor e análise de conglomerados para se determinarem as associações entre os itens em grupos maiores.
O resultado do estudo evidenciou a prioridade do item segurança para agregação de valor, seguido da convivência com a natureza, gastos operacionais menores e diminuição de nível de ruído.

. O processo projetual e a percepção dos usuários: o uso de modelos tridimensionais físicos na elaboração de projetos de habitação socialautor: César Imai
O presente artigo examina as relações existentes entre o projetista e o futuro morador residencial dentro de um processo projetual que tem como proposta facilitar a comunicação por meio de sistemas de representação que utilizam modelos físicos tridimensionais flexíveis (maquetes).

Busca-se uma melhor compreensão sobre a percepção espacial do usuário leigo e investigar como a representação pode contribuir ou dificultar um processo projetual participativo. O método de pesquisa utilizado baseia-se em análises comportamentais registradas durante o processo projetual, por meio de gravações em vídeo, pelo estudo dos esboços dos projetos desenhados previamente pelos futuros moradores (com seus aspectos de compreensão espacial), da presença (ou ausência) de domínio técnico nessa representação e, finalmente, pela comparação entre esses esboços e os projetos finais.

Os resultados alcançados indicam uma busca da idealização do espaço da moradia, fruto dos modelos pré-concebidos por esses usuários, que foram baseados no seu conhecimento prévio e nas suas experiências de vida em relação à habitação. Esses exemplos indicam mais uma busca em prol do alcance de um sonho concretizado pela edificação, indicando muitas vezes ser uma conseqüência de um modelo de consumo divulgado pelos meios de comunicação ou uma busca de ascensão social representada pelas características da habitação.

. Avaliando a habitação: relações entre qualidade, projeto e avaliação pós-ocupação em apartamentosautor: Simone Barbosa Villa

Este artigo trata da elaboração de metodologia para Avaliação Pós-cupação (APO) em edifícios de apartamentos destinados à classe média edificados em Ribeirão Preto – SP, a partir de 2000, visando contribuir para a criação de ferramentas eficazes para retroalimentação destes projetos.

O objetivo principal da aplicação da APO foi avaliar a qualidade dos espaços internos e coletivos dos apartamentos, buscando estabelecer uma relação entre o comportamento do usuário e o projeto idealizado pelos vários agentes do mercado imobiliário.

A metodologia proposta foi elaborada a partir de ampla revisão bibliográfica sobre avaliação pós-ocupação e processo de projeto, assim como na análise crítica da produção de edifícios de apartamentos nas cidades de São Paulo e Ribeirão Preto no período proposto. A aplicação desta metodologia permitiu concluir que o projeto arquitetônico idealizado para os edifícios de apartamentos atuais não tem atendido de maneira satisfatória às reais necessidades dos usuários, destacando assim a premência de uma ampla revisão no processo de criação e de gestão do processo de projeto, ensejando que se desenvolvam procedimentos que incluam bancos de dados alimentados por APOs e também uma participação mais efetiva do arquiteto a frente deste processo.

. Apartamentos paulistanos: um olhar sobre a produção privada recenteautores: Fábio Queiroz, Marcelo Tramontano
Este artigo focaliza a produção de apartamentos pela iniciativa privada da cidade de São Paulo, entre os anos de 2000 e 2008, procurando entender aspectos do mercado imobiliário que interfiram ou determinem o desenho e as características das unidades.

É realizada uma leitura sobre estratégias para o planejamento e a comercialização de novos produtos, partindo de estudos de diversos autores, de dados de relatórios da EMBRAESP - Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio, da análise de material publicitário de lançamentos e de uma base de dados sobre exemplares paulistanos de apartamentos, além de trabalhos acadêmicos, em especial as pesquisas sobre o tema desenvolvidas no Nomads.usp - Núcleo de Estudos de Habitares Interativos.

Conclui-se que , são priorizadas no mercado estratégias que visam a garantir e agilizar a comercialização das unidades e o retorno financeiro de investidores, em detrimento da observação de características relacionadas à qualidade espacial e arquitetônica e que se relacionem ao uso das unidades por seus futuros moradores.

. Arquitetura e desempenho luminoso: CENPES II, o novo centro de pesquisas da Petrobras, no Rio de Janeiro, Brasil.autores: Norberto Corrêa da Silva Moura, Anna Christina Miana, Joana Soares Goncalves, Denise Silva Duarte
Este artigo apresenta os resultados da avaliação de desempenho de iluminação natural do projeto do novo centro de pesquisas da Petrobras, CENPES II, no clima tropical do Rio de Janeiro, sob as condições de céu típico parcialmente nublado e com grande luminosidade.

O projeto arquitetônico tinha mais de 100.000 m2 de área construída, distribuída entre dez novos edifícios. De acordo com o programa de necessidades, o acesso da iluminação natural deveria ser maximizado em todos os espaços interiores, sempre que permitido pelas exigências da função, oferecendo conforto visual e eficiência energética. Nesse caso, os desafios do projeto no que tange ao desempenho ambiental estão relacionados à necessidade de proteção solar e à não-ocorrência de ofuscamento, devido às condições climáticas e ao céu com grande luminosidade.

Este artigo está focado no desempenho dos dois edifícios principais do complexo. As avaliações de iluminação foram realizadas com o suporte de técnicas de simulação computacional, sendo realizadas comparações com critérios de desempenho nacionais e internacionais. Ao final, os estudos mostraram os efeitos positivos da adoção de algumas estratégias de projeto clássicas, que são pouco comuns na prática da arquitetura comercial brasileira.


Infohabitar, Ano V, n.º 258Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 10 de Agosto de 2009Edição de José Baptista Coelho