terça-feira, maio 26, 2020

Sobre a importância da diversidade na organização habitacional – Infohabitar # 731


Ligação direta (clicar) para:  725 Artigos Interactivos, edição revista, ilustrada e comentada - 38 temas e mais de 100 autores.


Infohabitar, Ano XVI, n.º 731

Sobre a importância da diversidade na organização habitacional – Infohabitar # 731

Por António Baptista Coelho (texto e imagens)


Notas prévias:
Caros leitores da Infohabitar e estimados amigos,
Esperando que estejam todos de saúde, e com um muito especial abraço de força, de confiança no futuro e de saudade aos muitos amigos e leitores desse grande País Irmão.
Continuamos um “retorno” a uma abordagem relativamente sistematizada dos espaços domésticos, feito tendo por base alguns artigos já aqui editados e que foram e serão, naturalmente, extensamente revistos, desenvolvidos e “recomentados”, para esta ocasião editorial.
Este relativo “retorno” – relativo, porque o tema dos mundos domésticos esteve, está e estará sempre presente na Infohabitar – justifica-se, entre outras razões, pelo evidente e novo protagonismo que esses nossos espaços de vida assumiram nas longas semanas do nosso confinamento; um relevo que importa sentir em profundidade e aproveitar em tudo aquilo que possa contribuir para uma adequada e bem ponderada revisão programática, quantitativa, qualitativa e objetivada dos nossos mundos domésticos mais privados, “pessoais” e familiares.
Esperando que estes artigos agradem aos nossos estimados leitores e lembrando-se, sempre, que serão muito bem-vindas eventuais ideias comentadas a propósito destes artigos e mesmo propostas de novos artigos (a enviar para abc.infohabitar@gmail.com ao meu cuidado),
despeço-me, até à próxima semana, com saudações calorosas e desejos de boa saúde,
Lisboa, Encarnação, em 25 de maio de 2020
António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar


 PS: e, já agora, atentem que já ultrapassámos as 1.200.000 consultas - page-views

Sobre a importância da diversidade na organização habitacional – Infohabitar # 731


Mais do que tudo o que, em seguida, se aponte sobre as matérias associáveis à organização doméstica e à sua influência numa expressiva satisfação dos habitantes, na fruição doméstica há aspetos ligados ao que podemos considerar como referidos à diversidade na organização dos espaços domésticos que importa sublinhar por se considerarem determinantes num tal resultado.

Organização espacial habitacional e qualidade arquitetónica

O primeiro aspeto é que a qualidade da organização espacial e da pormenorização se ligue, intimamente, a uma adequada ideia de habitar e de viver a casa, por outras palavras é fundamental que a função siga a forma, não perdendo, naturalmente, eficácia, porque nós habitantes vivemos as casas, intensa e profundamente e, portanto, a forma interior das casas tem de ser algo fortemente coerente e equilibrado; matéria que importa vir a desenvolver posteriormente.
Para já, no entanto, interessa apontar que o próprio sentido de diversificação de usos e apropriações domésticas pode e deve estar “embebido” na organização global da habitação; e tal objetivo é razoavelmente simples de considerar, se visualizarmos espaços de vivência doméstica rigidamente estruturadores de determinadas formas de habitar, porque dimensionalmente “estritos”/mínimos e super-hierarquizados: considerando-se, naturalmente, que habitações formal e funcionalmente diversificadas serão caracterizadas pela antítese de tais “qualidades”.

Adaptabilidade habitacional passiva

Um outro aspeto a ter em conta, quando se visa a diversificação básica do espaço doméstico habitacional, é a enorme importância que tem a adaptabilidade passiva numa habitação, uma condição que lhe permite satisfazer um significativo leque de funções nos mesmos espaços e, tão importante como isso, um amplo leque de ocupações específicas por mobiliário em cada espaço.
Esta adaptabilidade passiva, que é motor de uma apropriação extremamente ativa, baseia-se em condições que estão associadas, quer a uma organização e/ou estruturação doméstica significativamente neutral, embora bem afirmada, quer a condições de espaciosidade e de dimensionamento cuidadas; e tanto mais cuidadas quanto menor for a quantidade de espaço que esteja disponível – o que obriga a um grande cuidado por exemplo quando tratamos de habitação de interesse social; e não tenhamos quaisquer dúvidas de que, muitas vezes, alguns, poucos centímetros suplementares, desde que judiciosamente planeados, podem dinamizar exponencialmente o potencial de adaptabilidade de um dado espaço doméstico, enquanto o sentido de abertura de uma porta e a relação entre vão e a parede contígua podem ser, igualmente, motivos de maximização de uma adaptabilidade natural.

Funcionalidade habitacional

Outro aspeto tem a ver com a maximização das condições funcionais associadas a instalações e equipamentos, à capacidade de arrumação e a uma grande facilidade de execução das tarefas domésticas mais intensas e mais exigentes, como é o caso da preparação de refeições, do tratamento de roupas e da limpeza doméstica.
Realmente é hoje em dia fundamental que todo este leque de condições seja garantido de uma forma maximizada e não há desculpa para que isso não aconteça pois todas essas funções estão já exaustivamente estudadas e existem documentos claros que as elucidam.
De certa forma trata-se de “concentrar” e de super-funcionalizar todas as tarefas domésticas relativamente obrigatórias; mas atenção, que não podemos deixar de as tratar como expressivamente realizadas em ambiente doméstico confortável, potencialmente bem apropriadas e claramente submetidas a um sentido global “de casa”; e, alternativamente, até, “embebidas” de modo a que nos possamos delas esquecer, se assim o quisermos.
Mas não tenhamos dúvida de que se quisermos ter habitações potencialmente adaptáveis a múltiplos gostos e formas de habitar, há que servir muito bem o respetivo funcionamento doméstico em tudo aquilo que, afinal, é comum a todas as formas de habitar; caso contrário as exigências funcionais irão, frequentemente, “transbordar” e invadir, gradualmente, toda a habitação, deixando muito pouco espaço e poucas condições para a podermos marcar com os nossos sonhos e com as nossas opções em termos de modos de vida.

Acessibilidade habitacional

Ainda outro aspeto desta reflexão sobre como potencial a diversidade organizacional doméstica, decorre em boa parte das considerações que acabaram de ser apontadas e tem a ver com a disponibilização de condições globais de acessibilidade no interior da habitação, tema este sobre o qual há também já muito dos elementos de apoio técnico necessários; e, afinal, a funcionalidade essencial para pessoas com dificuldade na movimentação é sempre uma funcionalidade acrescida para aqueles que não têm tais limitações, uma matéria frequentemente esquecida quando se trada deste assunto.
E só quem nunca habitou espaços domésticos bem qualificados por acessibilidades alternativas do exterior ao interior doméstico e até no próprio interior doméstico poderá duvidar do interesse desta consideração; o potencial em termos de diversidade de acessos atribui a uma habitação uma qualidade especial, quase uma dimensão especial, bem distinta de acessibilidades únicas e rigidamente hierarquizadas.

Importância da organização habitacional

Salienta-se, ainda, que os primeiros dois aspetos, que foram apontados neste artigo, englobam, claramente, os últimos, pois é, afinal, de uma organização espacial bem estruturada e adaptável que pode resultar uma casa adequada, e sobre isto basta dizer que há muitas casas realmente adequadas que cumprem essas duas primeiras condições e não as últimas.
Afinal, e tal como se tem apontado, a função não é tudo, acaba mesmo por ser muito pouco, designadamente, quando estamos em presença de uma boa Arquitetura habitacional, mas se pudermos respeitar um cuidadoso leque de objetivos funcionais é, naturalmente, preferível,  e será mesmo essencial quando se trate de uma habitação nova.
E, já agora, e a propósito, quando estamos em presença de uma “velha” habitação, arquitectonicamente positiva e organizacional e funcionalmente bem marcada – por vezes verdadeiramente “única” a este nível – toda esta reflexão deve ser bem matizada pela essencial oferta de um modo bem próprio de habitar, que pode ser proporcionado e verdadeiramente habilitado, apenas, por aquele espaço doméstico e não por outro; e é interessante constatar que, muitas vezes, é a partir deste ponto de partida primeiro formal e só depois funcional e muito próprio que resultam modos de habitar privados e familiares diversificados, ricos e “únicos”.


Fig. 01: considerar a “Habitação” como espaço distinto e sempre (re)imaginável, logo diversificado e diversificável em múltiplas dimensões de apropriação.

Habitação como espaço distinto e imaginável


Lembrando um dos muitos essenciais pensamentos de de Christian Norberg-Schulz, sobre um habitar tão humano como arquitectónico, afinal, a casa não é um refúgio funcional, um "não lugar" uniforme, mas exige um espaço distinto e [verdadeiramente] uma cena que se possa imaginar. (1)
Evidentemente que uma tal capacidade de imaginação está na base da diversidade habitacional, quer como base de habilitação para essa capacidade de sonhar, no sentido de construir pequenos mundos imaginados, quer como resultado final enriquecedor e fio condutor para a continuidade de tais sonhos.
E esse espaço "distinto e imaginável", portanto, base de algum sonho de como se deseja habitar, tem já uma longa história a registar, pois já passaram mais de 10.000 anos dsde o início de uma sua construção mais premeditada em termos de espaços e ambientes comésticos, e sobre estes tantos anos de evolução, que como em tantas outras áreas tiveram uma enorme dinâmica no passado Século XX , podemos citar uma síntese de Claude Lamure, que aponta ter acontecido uma diferenciação progressiva do espaço, e uma evolução genérica de um único compartimento multifuncional até ambientes muito compartimentados e funcionalmente especializados, ou mesmo espacializados (podemos nós comentar). (2)
E não é possível deixar de comentar que tal evolução é, em si própria, um verdadeiro fluxo de diversificação habitacional; sendo que de uma estafada cartilha (uni)funcional – podemos ainda considerar – poderemos agora avançar para uma expressiva e relativa microfuncionalização e para uma cuidada mas bem assumida diversificação plurifuncional doméstica.

Da unidade à diferenciação do espaço habitacional

Será, portanto, desta base funcional, de um espaço doméstico único, amplo e indiferenciado, onde aconteciam todas as funções e outras matérias domésticas nas pequenas casas de terra de Çatal Huiuk, na actual Turquia, há cerca de 10.000 anos, que fomos evoluindo, consoante as nossas culturas, as nossas paisagens de habitar e os nossos meios financeiros e outros, até à enorme casa altamente diferenciada nos mais diversos tipos de compartimentos e outros espaços domésticos e para-domésticos, tecnológicos e “inteligentes”, que se diz terem integrado uma grande casa que Bill Gates desenvolveu para seu uso pessoal, há já alguns anos.
Mas esta evolução traz-nos, hoje, também a redescoberta de um certo novo sentido de amplo espaço pouco diferenciado ou muito comunicante que carateriza, por exemplo, a recente corrente dos lofts habitacionais, que acabam, afinal, por recriar o tal espaço único, mas agora com uma enorme amplitude de volume de ar interior e com todas as mais recentes tecnologias.
E o evidente “segredo” será tentar tais qualidades de grande diversificação e multiplicação formal e funcional doméstica em espaços dimensionalmente delimitados;  não tenhamos quaisquer dúvidas de que tal passo só é possível através de uma grande, de uma excelente arquitectura habitacional!

Influência da habitação no habitante

Esta é uma matéria à qual iremos tentar voltar e aprofundar, um dia, porque ela o merece, mas a ideia desta referência, da influência direta e indireta da casa sobre o seu habitante – nesta entrada temática às matérias dos aspectos domésticos que poderão ser mais indutores de verdadeira diversificação, adequação e satisfação residencial, tem a ver com a ideia, que defendemos, de a organização doméstica, ou o caráter da organização doméstica e, naturalmente, depois, a sua própria espacialização, constituírem matéria crucial:
. quer numa forte adequação a modos de vida;
. quer na construção de uma caraterização residencial e doméstica expressivamente influenciadora – determinante nessa influência que se julga que a casca do caracol tem sobre o caracol humano (lembrando-se uma noção lançada por Amália Rodriques ao referir-se à sua casa).
E neste jogo de relações a ideia, que se julga poder ficar como base de sequenciais reflexões, é que os aspetos funcionais têm a sua importância, mas há muito mais para lá, ou ao lado, dos aspetos estritamente funcionais; e  por isto se dá, aqui, algum desenvolvimento a estas matérias.

Organização doméstica: opções básicas

Claude Lamure oferece-nos algumas linhas de reflexão nesta perspectiva de preocupações com uma organização doméstica verdadeiramente satisfatória e consequentemente diversificada e/ou diversificadora, e diz-nos que: (3)
. "podemos distinguir, frequentemente, espaços que agrupam diversos compartimentos e que se diferenciam de formas várias" (ex., várias funções, características mais conviviais ou mais íntimas, etc.);
. que "inversamente, num mesmo compartimento, diversos espaços ou cantos/recantos podem ser caraterizados por diversos critérios: apropriação por este ou aquele membro da família, tipo de actividade, ou de decoração".
. e que, "mais globalmente, as zonas bem diferenciáveis são aquelas que são acústica e visualmente isoláveis".
Ora temos, assim, um caminho que parece ser agradavelmente simples e coerente numa estruturação de espaços domésticos: zonas mais, ou menos, conviviais ou “sociais”, possibilidade de desenvolver subespaços caracterizados, dentro de outros espaços maiores, e eleição dos isolamentos visual e acústico como elementos fundamentais na criação de diferentes zonas domésticas.
Seguindo-se, assim, um filão organizativo muito mais de conforto ambiental, do que “simplesmente” funcional; e poderemos, até, incluir a funcionalidade num alargado e adequado sentido de conforto.


 Fig. 02: as opções de organização de uma habitação jogam-se em múltiplos aspetos dimensionais, relacionais, de conforto ambiental e de funcionalidades; e as opções de organização de uma habitação têm de ser, também, opções formais de criação de determinados “ambientes” domésticos.

Várias opiniões sobre as opções de organização da habitação

A ideia que fica é que, sinteticamente, estará, talvez, quase tudo nessa reflexão de Lamure.
No entanto, nestas matérias tão sensíveis, que muito têm a ver com os aspetos específicos de cada intervenção e de cada ideia de habitar a cidade, a vizinhança e o edifícios, haverá muito a ganhar com a integração de outras reflexões de outros projectistas e estudiosos nestas matérias e por isso, a seguir, se integram e comentam, com grande brevidade, algumas outras ideias sobre a organização dos mundos domésticos, numa ordem que tenta dar relevo aos aspetos julgados mais importantes no objetivo de aproximação a uma casa que possa ajudar a uma vida doméstica mais adequada, porque diversificada, agradável e estimulante.

Da casa que estrutura formas de habitar à casa adaptável

E, assim, se evidencia a questão básica de uma ideia de casa que é gerada por quem a projecta e que pode entrar em conflito, e frequentemente entra, com a ideia de casa do próprio habitante, e neste balanço entre ideias de casa, e na opinião de Harald Deilmann (4), quem projecta pode seguir duas vias distintas:
. ou comunica ao habitante as suas ideias de "habitabilidade" de uma forma positiva e convincente, clarificando o interesse de certas soluções, eventualmente, menos frequentes e salientando a mais-valia de uma solução mais caracterizada e plena de identidade;
. ou avança numa estratégia de adaptabilidade doméstica dos espaços previstos a um amplo leque de modos de vida e de usos da habitação, adaptabilidade esta que pode jogar quer numa ideia de neutralidade organizativa (espaços com condições dimensionais e de acessibilidade adequadas a diversos usos), quer em soluções ativas de ligação e de separação entre diversos espaços, quer, naturalmente, numa aliança entre estes dois tipos de soluções.

Opções domésticas e adequação aos modos de vida

E nesta matéria da adaptabilidade doméstica Claude Lamure, interpretando vários trabalhos franceses e, nomeadamente, os sempre incontornáveis estudos de Chombart de Lauwe sobre a adaptabilidade das habitações aos modos de vida, propõe um conjunto de possibilidades que as habitações, podem/devem oferecer às famílias ("Adaptation du Logement à la Vie Familiale", pp. 43 e 44): (5)
(i) de arranjo e apropriação de um espaço que seja suficiente;
(ii) de independência de grupos humanos no interior das habitações;
(iii) de uma graduação da privacidade no interior de cada alojamento;
(iv) de repouso e descontracção;
(v) de separação operacional das funções;
(vi) de atenuação das limitações materiais;
(vii) de prestígio (social);
(viii) de adaptabilidade da estrutura do fogo e dos seus arranjos às estruturas familiares;
(ix) e de relações sociais exteriores.

Em próximas edições desta série apresentaremos e comentaremos outras reflexões de outros projectistas e estudiosos nestas matérias, sobre aspetos considerados estruturantes nas opções de organização dos espaços domésticos, numa perspetiva que tenta aprofundar a grande diversidade de soluções que se oferecem e que propiciam uma vida doméstica mais adequada, agradável e estimulante.

Notas:
(1) Christian Norberg-Schulz, "Habiter", p. 105.
(2) Claude Lamure, "Adaptation du Logement à la Vie Familiale", p. 106.
(3) Claude Lamure, "Adaptation du Logement à la Vie Familiale", p. 105.
(4) Harald Deilmann; J. Kirschenmann; H. Pfeiffer, "The Dw elling / Dwelling-types, Building-types", p. 32.
(5) Claude Lamure, "Adaptation du Logement à la Vie Familiale", pp. 43 e 44.


Uma primeira versão, bastante menos desenvolvida, deste artigo foi publicada no número 471 da Infohabitar, em 9 de Fevereiro de 2014.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos autores dos artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos mesmos artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é, igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que deverão referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.


Infohabitar, Ano XVI, n.º 731

Sobre a importância da diversidade na organização habitacional – Infohabitar # 731


Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Arquitecto/ESBAL – Escola Superior de Belas Artes de Lisboa –, doutor em Arquitectura/FAUP – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto –, Investigador Principal com Habilitação em Arquitectura e Urbanismo no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), em Lisboa.


Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).

terça-feira, maio 19, 2020

Sobre a temática das novas formas de habitar – Infohabitar # 730


Ligação direta (clicar) para:  725 Artigos Interactivos, edição revista, ilustrada e comentada - 38 temas e mais de 100 autores.



Infohabitar, Ano XVI, n.º 730

 

Sobre a temática das novas formas de habitar – Infohabitar # 730

Por António Baptista Coelho (texto e imagens)

Notas prévias:
Caros leitores da Infohabitar, estimados amigos,
Esperando que estejam todos de saúde,
Continuamos um “retorno” a uma abordagem relativamente sistematizada dos espaços domésticos, feito tendo por base alguns artigos já aqui editados e que foram e serão, naturalmente, extensamente revistos, desenvolvidos e “recomentados”, para esta ocasião editorial.
Este relativo “retorno” – relativo, porque o tema dos mundos domésticos esteve, está e estará sempre presente na Infohabitar – justifica-se, entre outras razões, pelo evidente e novo protagonismo que esses nossos espaços de vida assumiram nas longas semanas do nosso confinamento; um relevo que importa sentir em profundidade e aproveitar em tudo aquilo que possa contribuir para uma adequada e bem ponderada revisão programática, quantitativa, qualitativa e objetivada dos nossos mundos domésticos mais privados, “pessoais” e familiares.
Esperando que estes artigos agradem aos nossos estimados leitores e lembrando-se, sempre, que serão muito bem-vindas eventuais ideias comentadas a propósito destes artigos e mesmo propostas de novos artigos (a enviar para abc.infohabitar@gmail.com ao meu cuidado),
despeço-me, até à próxima semana, com saudações calorosas e desejos de muita força e de boa saúde,
Lisboa, Encarnação, em 18 de maio de 2020
António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar

- e relativamente a esta data, permitam-me lembrar, com saudade, a memória do meu pai, grande amigo e primeiro professor de Arquitectura, António Baptista Coelho, que hoje faria anos -


Sobre a temática das novas formas de habitar – Infohabitar # 730


Organização da habitação

A organização e a caracterização de um espaço doméstico pode seguir determinados “hábitos” de funcionalidade doméstica, e aqui tanto há hábitos que decorreram da evolução da vivência doméstica ao longo de alguns milénios, como outros que, praticamente, acabaram de nascer pois podemos dizer que foram, de certo modo, “inventados”  em finais do séc. XIX e, designadamente, no séc. XX.
Podemos ainda considerar nesta matéria, dos “hábitos” de funcionalidade doméstica, que estes deveriam poder depender e decorrer bastante mais das formas de habitar características de cada família e, consequentemente, de cada grupo sociocultural, do que, por regra, é proporcionado, tendo-se em conta a organização funcional, tão frequentemente, rígida e “uniformizadora” que está expressivamente inscrita na estruturação e na formalização do espaço construído de cada habitação e, designadamente, na sua organização de gradações de privacidade e nos respetivos conteúdos funcionais “inscritos” no dimensionamento e no equipamento de cada compartimento.
Alternativamente, a organização e a caracterização de um espaço doméstico pode passar por uma verdadeira reinvenção bem fundamentada das respectivas funções, ambientes, associações espaciais e simbólicas e condições específicas de desenvolvimento de diversos espaços de actividade e de cena, numa perspetiva de aplicação discutida do que podemos designar, aqui, como “Grandes Opções Domésticas” - matéria que abordaremos, especificamente, em vários artigos desta série editorial.
E também alternativamente a organização e a caracterização de um espaço doméstico pode passar por uma sua sábia estruturação em termos de hierarquias de privacidade/acessibilidade e de aspetos básicos de dimensionamento mínimo/razoável, que privilegiem a maximização da adaptabilidade e das capacidades de apropriação e de conversão (espaciais e funcionais) domésticas.

Cidade e habitação

Essa possibilidade, desejavelmente, muito ampla de diversidade de apropriação e de conversão/adequação no interior doméstico é, realmente, a base do enorme interesse de que se pode, ainda, vir a revestir o acto de habitar, um interesse potenciado, hoje em dia pela noção de que é a habitação que faz cidade adequada, condição essencial no nosso século das cidades e das mega-cidades frequente e criticamente caóticas; e daí se retira a crítica oportunidade que têm e terão, por exemplo, as exposições habitacionais e os amplos fóruns de discussão sobre estas matérias.
Realmente o podermos ter e sentir, constantemente, um adequado sítio doméstico, permite-nos poder estar habilitados e positivamente preparados para a “exploração” e o uso mais intenso e prolongado dos espaços de vizinhança de proximidade e, consequentemente, dos espaços mais citadinos; atuando, assim, a nossa habitação como um “porto seguro”, bem identitário e apropriado, sempre disponível e acolhedor no princípio e no fim das nossa deambulações urbanas – de certo modo proporcionando-nos uma interessante e igualmente satisfatória dupla vida em duas ou mesmo três dimensões que, desejavelmente, deveriam, ser tão estimulantes como diversas: o mundo doméstico; a envolvente vicinal do mundo doméstico e espaço preparatório do mundo urbano; e o mundo urbano.
Referindo-nos especificamente à defendida clara abertura de perspectivas e de liberdade na organização e nos conteúdos domésticos importa salientar que boa parte, se não a totalidade, dos regulamentos que enquadram, por vezes de forma que se julga ser excessivamente rígida, a concepção do espaço doméstico privativo nasceram devido a justas e vitais preocupações ligadas à higiene, à saúde, à segurança e à defesa dos habitantes relativamente à sua frequente exploração económica através do seu alojamento em condições dimensional e ambientalmente patológicas; condições estas que muito se ligam aos respetivos quadros urbanos.
E assim se evidencia, mais uma vez, a ligação íntima e bissequencial, que une os espaços domésticos, vicinais e urbanos; afinal, todos eles essenciais espaços de habitar.

Regulamentação da habitação – novos caminhos

Ora, hoje em dia, é possível proteger os habitantes de boa parte, ou mesmo da totalidade, dessas negativas condições urbanísticas e de habitar através de outras medidas técnicas, construtivas e normativas que não aquelas que definem uniformemente e quase “milimetricamente” a organização doméstica, compartimento a compartimento e espaço a espaço.
E todos sabemos que as diversas instalações que servem o habitar, incluindo as sanitárias, conheceram enormes avanços nos últimos 100 anos, assim como as estratégias de ventilação, as prescrições relativas a condições de higiene e saúde associadas aos acabamentos e, naturalmente, todo o enorme compêndio de novas soluções construtivas e de pormenorização; e portanto o que aqui se defende é que para garantir as apropriadas e necessárias condições de higiene e de saúde no habitar doméstico não é hoje necessário seguir, como regra única, prescrições justificadas por condições por vezes até já relativamente ultrapassadas, por proporcionarem, em alguns casos, soluções espaciais e técnicas alternativas e eventualmente mais adequadas à crescente diversidade de modos e desejos de habitar casa, cidade e paisagem.



Fig. 01: apontamento de espaço doméstico baseado, livremente, em situações reais. Pretende-se, aqui, focar o sentido de “porto seguro” que nos pode e deve ser trazido pelas memórias e mesmo pelas possíveis visualizações da aproximação e dos vãos exteriores dos nossos espaços domésticos; afinal, os contactos com mundos domésticos que sejam verdadeiramente satisfatórios e desejados deveriam ser claramente dignificadores e evidenciadores dessas condições e, evidentemente, nunca reduzidos a meras relações funcionais de acessibilidade.


Novos modos e desejos de habitar e velhas soluções recuperadas

Mas, para além desta perspetiva, talvez seja chegada a altura, numa altura de tantas inovações e possibilidades tecnológicas em termos de climatização, ventilação, isolamentos e instalações, de poder começar a reequacionar as próprias opções básicas de organização doméstica; ou, pelo menos, é bem a altura de acabar com modelos quase-únicos e de começar a disponibilizar uma verdadeira e atraente diversidade de grandes opções domésticas.
E a título de exemplos, que se julgam simples e atraentes, aponta-se a reinterpretação da ideia de “hall” doméstico, no sentido de espaço de entrada e de eventual reunião mais ampla, ou, alternativamente de desenvolvimento de um verdadeiro espaço de “descompressão” e transição ambiental entre exterior comum ou público e interior mais privado; e uma ideia/função que depois se pode desdobrar numa pequena saleta – o velho “parlour” – e numa cozinha e zona de refeições, cuja duplicidade funcional possa ser, eventualmente, graduada conforme a dimensão da habitação e até a ocasião de vivência – mais formal ou mais familiar/informal.
E entenda-se que este exemplo é, isso mesmo, apenas um exemplo, embora fundado numa tradição de viver doméstico que passou de um único espaço de habitar, ou de dois espaços sendo um privado do casal e outro comum aos restantes habitantes da casa, para uma especialização e respectiva espacialização fundada essencialmente nos aspectos da privacidade dos quartos e da função social – e eventualmente convivial – do receber (um receber que implica convívio), isto ainda na alta idade média e referido às grandes casas, para, depois, se desenvolver uma funcionalização de todas as habitações, incluindo as mais pequenas.
E o que se quer deixar aqui apontado é que, atualmente, talvez seja a altura de retomar algum desse “caos” equilibrado em termos de funções domésticas. Um “caos” que habilite adaptabilidade e apropriação individual e em grupo e que seja servido e tornado possível por uma excelente estruturação e controlo do conforto e da saúde ambiental domésticas.
Importa, no entanto, sublinhar que tais novos caminhos não podem seguir o mau exemplo do anterior funcionalismo organizativo, rigidamente hierarquizado e de “modelo único”, mas sim têm de ser aplicados adequada e cuidadosamente em relação e ao serviço dos tais novos modos e desejos de habitar, ou de formas específicas de viver a habitação; e quem projeta tem de ter a capacidade de julgar da adequação ou inadequação destes caminhos, considerando as caraterísticas dos moradores conhecidos ou prováveis.
É, ainda, interessante refletir sobre o interesse humano e doméstico da cuidada e relativa recuperação de “velhas” soluções de espaços e microespaços do habitar, seja em termos dos seus expressivos conteúdos funcionais e ambientais mais conviviais (ex., em termos da associação entre trabalho doméstico e convívio informal) ou de maior privacidade e recolhimento e/ou funcionalidade (ex., espaços de trabalho profissional em ambiente doméstico), seja no que se refere aos seus respetivos contornos e elementos formais e funcionais (ex., renovados elementos de mobiliário com variadas valências e  não apenas os “estafados” e “mínimos” elementos correntes de mobiliário).

Funções habitacionais renovadas e novos espaços habitacionais


Centrando-nos, agora, na referida e, naturalmente, sempre relativa reinvenção das funções, dos ambientes, das associações e dos espaços de exercício do habitar doméstico, há que sublinhar que esta ideia se liga:
·        quer a uma nova espacialização e funcionalização de determinados compartimentos, transformando, por exemplo, a cozinha num amplo espaço multifuncional e convivial, e a sala-comum num pequeno complexo de diversas áreas de actividade distintas e potencialmente “privatizadas” (ex., cadeirão de leitura bem localizado e com equipamentos de apoio), embora unificáveis numa grande área “comum” de convívio doméstico;
·        quer a uma estratégia de sistemática conversão de muitas outras áreas ou microáreas domésticas em espaços estimulantemente inovadores, porque concretizam a associação de funções e de ideias diversificadas; por exemplo, uma semi-cave que se transforma numa sala familiar, de trabalho e para dormir de convidados e um lavabo social que é tratado muito mais como um espaço de recepção e representativo, do que como uma vulgar e pequena casa de banho e, já agora, também em espaço de apoio a uma razoável “descontaminação” quando se chega a casa.
O que se acabou de apontar tem a ver, por um lado, com a ideia que se tem apontado, nestes textos, sobre a função não ser tudo, quando abordamos o habitat humano, e revelar ser mesmo bastante pouco; uma ideia que se julga ser bastante adequada seja na própria cidade e nos seus bairros, seja nas vizinhanças residenciais e urbanas, seja nos edifícios habitacionais e, finalmente, e naturalmente, de forma destacada, nos interiores domésticos.





Fig. 02: apontamento de Braga na proximidade do Arco da Porta Nova, um espaço urbano vivo, bem pedonalizado, diverso e multifuncional. E, a propósito, parece ser oportuno referir que para ser realmente estimulante e atraente o espaço urbano tem de ter e evidenciar espaços “quase domésticos” na sua expressiva e múltipla capacidade de uso pela pessoa a pé e, naturalmente, pela sua assinalável escala humana.  

Funcionalismo no habitar – passado criticável e realidade a alterar

Lembremos, novamente, como o funcionalismo fez e faz sofrer os habitantes das cidades, tentando “impingir-lhes” tipos de organização e conteúdos funcionais por vezes aberrantes, porque tão distintos das misturas funcionais diversificadas que são as mais humanas e que se ligam aos núcleos e novelos funcionais diversificados, que são os verdadeiros motores e caracterizadores de cidades vivas e estimulantes.
E se tal aconteceu à escala da cidade, com tantos aberrantes porque excessivos e pouco naturais zonamentos, o que dizer da escala do edificado, abandonada à fúria especulativa do “pronto-a-habitar”, feito “à medida” de famílias-tipo cada vez mais inexistentes e sempre “à medida” de uma indústria da construção habitacional, que, naturalmente, preferiu um produto mobiliário estandardizado; num processo uniformizador que, por exemplo, nos oferece o famoso leque tipológico do T0 ao T5, com eventuais e pouco frequentes soluções intermédias, marcado pela omnipresente zona íntima e por uma estruturação funcional rigidamente hierarquizada e repetida.
Habitações que deixaram de ser verdadeiramente caraterizadas, pela sua dimensão e pelos seus “partidos” de estruturação e ambientais, para se reduzirem a uma espécie de “centopeias” domésticas, cujas cabeças são, por regra, iguais ou muito semelhantes e que, depois, se prolongam por uma sequência de quartos mais ou menos alongada.

Habitar e inovação – habitar e adequação

Tal realidade, marcada verdadeiramente pela consideração da habitação e do habitar como verdadeiros produtos de consumo, foi apenas “combatida” em opções, mais ou menos, experimentalistas e/ou de extremo bom-senso e grande qualidade arquitetónica, associadas, frequentemente, a intervenções de habitação de interesse social e, por vezes (pontualmente), a habitação para grupos sociais mais favorecidos e/ou em habitações feitas realmente à medida dos seus futuros habitantes e por excelentes e bem informados e formados Arquitectos.
Ações estas de criação de estimulantes espaços habitacionais que privilegiam o desenvolvimento de um mundo familiar e pessoal que deve e pode ser uma realidade feita para servir e estimular as necessidades e os sonhos de habitar, bem como a mutação dos mesmos ao longo dos anos -  e esta capacidade de quase contínua (re)conversão formal e funcional da habitação ao longo dos decénios, servindo a mesma ou diversas famílias, constitui um extraordinário suplemento físico, de apropriação e de alma aos respetivos habitantes, que deveria ser muito mais interiorizado e considerado; e quando não existe traduz-se, afinal, por vezes, na transformação da habitação numa espécie de “para-camisa de forças” doméstica.  
E essa recriação de estimulantes espaços habitacionais que privilegiem o desenvolvimento e a mutação de variados mundos familiares e pessoais é possível, frequentemente, através de soluções, que por vezes parecem tão simples, como fusões e separações de espaços e de estruturas de circulação, caraterizações ambientais marcantes, designadamente em termos de sentido/”adn” doméstico, e de inovadoras integrações de instalações que potenciem essa mesma capacidade de mutação e adequação; uma simplicidade que, evidentemente, só é possível com boa Arquitectura.
Afinal e tal como escreveu Christian Norberg-Schulz, a casa não é e não pode ser um refúgio funcional, um "não lugar" uniforme, mas exige um espaço distinto e uma cena que se possa imaginar (1).

Notas:
(1) Christian Norberg-Schulz, "Habiter", p. 105.

 


Uma primeira versão, bastante menos desenvolvida, deste artigo foi publicada no número 470 da Infohabitar, em 3 de Fevereiro de 2014.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos autores dos artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos mesmos artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é, igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que deverão referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.


Infohabitar, Ano XVI, n.º 730

Sobre a temática das novas formas de habitar – Infohabitar # 730


Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Arquitecto/ESBAL – Escola Superior de Belas Artes de Lisboa –, doutor em Arquitectura/FAUP – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto –, Investigador Principal com Habilitação em Arquitectura e Urbanismo no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), em Lisboa.


Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).

terça-feira, maio 12, 2020

Mundos domésticos e pessoais: habitação e espaços da habitação – Infohabitar # 729


Ligação direta (clicar) para:  725 Artigos Interactivos, edição revista, ilustrada e comentada - 38 temas e mais de 100 autores.


Infohabitar, Ano XVI, n.º 729

Mundos domésticos e pessoais: habitação e espaços da habitação, aspetos gerais e temas de desenvolvimento (edição revista e aumentada) – Infohabitar # 729

Por António Baptista Coelho (texto e imagens)

Notas prévias:
Caros leitores da Infohabitar, estimados amigos,
Esperando que estejam todos de saúde, ou a recuperá-la com passos firmes, reafirma-se que a nossa revista mantém a sua regularidade semanal e irá, neste e nos seus próximos números revisitar a temática dos espaços domésticos, que sempre foi uma das nossas matérias editoriais “centrais” e mesmo uma quase razão de ser do nosso nascimento há cerca de 16 anos.
Este “retorno” aos espaços domésticos, que é feito tendo por base alguns artigos já aqui editados e que foram e serão, naturalmente, revistos e desenvolvidos, justifica-se, entre outras razões, pelo evidente e novo protagonismo que esses nossos espaços de vida assumiram nas longas semanas do nosso confinamento; um relevo que importa sentir em profundidade e aproveitar em tudo aquilo que possa contribuir para uma adequada e bem ponderada revisão programática, quantitativa, qualitativa e objetivada dos nossos mundos domésticos mais privados, “pessoais” e familiares.
Esperando que estes artigos possam ser considerados interessantes e oportunos pelos estimados leitores e lembrando-se que serão muito bem-vindas eventuais ideias comentadas a propósito destes artigos e mesmo propostas de novos artigos (a enviar para abc.infohabitar@gmail.com ao meu cuidado),
despeço-me, até à próxima semana, com saudações calorosas e desejos de muita força e de boa saúde,
Lisboa, Encarnação, em 10 de maio de 2020
António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar


Mundos domésticos e pessoais: habitação e espaços da habitação, aspetos gerais e temas de desenvolvimento

Sobre o fazer dos nossos pequenos mundos domésticos o arquitecto e habitante P. Céleste refere que se trata “de ocupar um sítio, de estar em sua casa, de produzir uma habitação calorosa. O contexto é o que nos anima. [escreve ele]
Há peças que devem ver o exterior e esse exterior deve fazer sonhar. Há que ter atenção a uma distribuição simples que proporcione dar um nome a cada peça e que se ligue a comportamentos habitacionais muito flexíveis [ ...
...] é preciso encontrar uma certa forma de deambulação, estar atento à arte de colocar uma porta, uma janela, atento aos gestos quotidianos.
O habitar de hoje não é mais pensado como no século XIX para a festa e a recepção, mas para a relação com a vida quotidiana” (1) – os sublinhados são do autor do artigo.

Organizações da habitação

Falar de organizações da casa, atualmente, poderia ou deveria ser falar de uma reflexão e inovação contínuas, sempre no sentido de se procurar uma adequação contínua, pois já é tempo de (voltar a) pensar a casa com verdadeira e exigente liberdade.
Esta matéria parece ser óbvia, mas só o será superficialmente, pois continuamos a imaginar e conceber habitações numa “lógica” quase estritamente funcionalista e rigidamente hierarquizada e praticamente nem notamos o que estamos a fazer, pois toda a nossa formação foi feita nesse sentido de funcionalização e “mecanização” do espaço doméstico, um espaço que deveria ser um tal “estojo”, mas extremamente versátil, das nossas variadas identidades.
E note-se, aqui, o potencial conflito entre um ambiente que tanto nos deve envolver e proteger, adequando-se a necessidades, como deve poder evoluir ao serviço da mutação dessas necessidades e da (re)formulação dos nossos desejos habitacionais – e mesmo nesta formulação de “nossos” desejos habitacionais ou de habitar (que não são bem a mesma coisa), importa considerar a nossa parte bem própria e individual (que serão provavelmente tantas quantos os coabitantes) e a parte comum que também tem de marcar o nosso habitar.
Há, naturalmente, alguns aspectos que são fundamentais em termos de privacidade, funcionalidade e conforto, mas estes são, de certa forma, facilmente sintetizáveis numa pequena listagem de aspectos dimensionais mínimos (ex., larguras de compartimentos) e de recomendações, ou, melhor dito, esclarecimentos no sentido de se alertar para que determinados posicionamentos de determinados compartimentos (ex., casas de banho) poderão ter influências negativas nos jogos de privacidade e de adaptabilidade interiores e que há que ter em conta relações privilegiadas e protegidas entre alguns compartimentos (ex, entre quartos de dormir e casas de banho).
Mas estamos, realmente e frequentemente, já bem longe das situações em que as “instalações sanitárias” eram tendencialmente zonas higienicamente críticas e que convinha afastar e “esconder” o mais possível e onde as cozinhas eram espaços “oficinais” dificilmente integráveis com as zonas de estar; isto só para dar dois exemplos de mudança doméstica profunda.
Mas mesmo a este nível há bem recentes e importantes mutações no privilegiar de uma casa de banho estrategicamente situada bem próximo da entrada da habitação e que não seja apenas um lavabo, mas sim podendo proporcionar como que um espaço de “descompressão” e higienização quando da chegada a casa.
O resto, o resto que é quase tudo numa “inovadora” conceção dos espaços domésticos, deveria ser flexibilizado no âmbito das supostas e diversas capacidades criativas dos projectistas e dirigido para os modos de querer viver mais específicos dos habitantes; naturalmente com a excepção de situações, devidamente identificadas, onde haja que ter em conta condições específicas e potenciais de uso da casa que recomendem cuidados particularizados, designadamente, em termos de relações entre espaços, uso e manutenção da habitação e sua durabilidade.
E atente-se que, tal como bem sabemos, mesmo nestas condições de justificada e cuidadosa adequação a modos de vida e usos da casa muito específicos e exigentes, o referido e “cego” excesso funcionalista, fazia, muito frequentemente, “vista grossa”,  ignorando deliberadamente tais contextos e aplicando-lhes a mesma receita global de habitar – da vizinhança, ao edifícios e ao espaço doméstico.

Flexibilização e adaptabilidade doméstica

Importa sublinhar que tais caminhos de flexibilização e ampla adaptabilidade doméstica não significam, naturalmente, qualquer abandono dos objectivos de qualidade residencial, mas sim um claro acréscimo dos mesmos, pois há todo um mundo de possibilidades de viver a casa, algumas delas aqui apontadas, que podem proporcionar uma satisfação e uma apropriação muito mais intensa por parte dos moradores.
O que se fez durante muitas dezenas de anos, designadamente, do século XX foi negar a existência de um tal mundo da identidade e da adaptabilidade, que está à vista de todos em tantos exemplos de arquitectura tradicional, quanta dela até, por vezes, justificadamente não-regulamentar, e em tantos outros exemplos daqueles grandes arquitectos que fizeram grande arquitectura doméstica, mas que preconizaram ideias que não foram verdadeiramente entendidas e que não puderam ser, assim, reinterpretadas, por uma maioria de colegas menos criativos e que acabaram por beber essas “regras” como elemento facilitador de uma prática de projecto rigidamente funcionalista, até porque veiculada em termos regulamentares numa opção que é, frequentemente, arquitectonicamente “árida”.
Poderíamos até imaginar que, no limite, não seriam precisos arquitetos, para fazer essa arquitetura doméstica “automatizada”, ou então o habitar poderia “reduzir-se” a uma indústria do tipo da automobilística em que se concebem, rigorosamente, “meia dúzia” de modelos (mais desportivos, mais familiares, mais económicos, etc.), que são, depois, globalmente disponibilizados; mas, pelo menos, o autor destas linhas e julga-se muito mais pessoas acreditam que o habitar novo e o reabilitado não têm este tipo de caraterísticas, pois deverão ser o tal “estojo” adaptativo da nossa identidade e história e também, cumulativa e evidentemente, elementos protagonistas da nossa cidade e da nossa cultura.
Nada disto quer fazer reduzir a fundamental importância das matérias regulamentares ligadas a aspectos essenciais de segurança, saúde e bem-estar, no entanto considera-se que deve continuar a haver uma verdadeira possibilidade de reinterpretar arquitectonicamente tais matérias e, além disso ou, melhor, antes disso, haveria que rever alguns desses corpos regulamentares à luz de uma prática consistente e de um enquadramento científico verdadeiramente mais aprofundado e culturalmente mais fundamentado.
Tudo isto se julga pertinente quando estamos a passar a soleira da casa e quando, à nossa frente, imaginamos, por um lado, a infinidade de soluções domésticas repetidas até à náusea, numa espécie de solução-tipo geral de habitação, naturalmente, com libertadoras variações criativas e estimulantes, enquanto, por outro lado, lembramos ainda tantas soluções que fomos visitando ou vendo em livros e revistas e onde não há essa solução global estereotipada – uma espécie de “esquerdo-direito” doméstico – mas sim uma enorme diversidade de oferta de relações, espaços, microespaços e pormenores protagonistas, que marcam positivamente as casas e quem as habita ou até apenas as visita, reforçando-lhes, designadamente, os seus aspetos de identidade e de apropriação e, acredite-se, frequente e associadamente os tais tão empolados aspetos funcionais; assistindo-se a uma procura espacial e ambiental em que os referidos suplementos de alma de identidade e “personalização”, acabam por gerar inesperadas e excelentes funcionalidades.




Fig. 01: uma habitação expressivamente habilitadora em termos de diversidade de oferta de relações, espaços e pormenores protagonistas, que marcam positivamente as casas e quem as habita ou até apenas as visita, reforçando-lhes, designadamente, os seus aspetos de identidade e de apropriação.

 Espaços domésticos bem caraterizados

Sendo assim, não se aborda neste texto um qualquer menu de soluções a aplicar conforme um outro menu de necessidades, mas “apenas” se vai, aqui, desenvolvendo uma pequena viagem por mundos domésticos positivamente caracterizados, onde cada espaço e cada relação nos emociona e nos serve plenamente; sendo que a mistura de tais espaços e ambientes a acaba por ser, quase sempre, muito mais significativa do que a simples soma funcional das suas respetivas partes e ficará, naturalmente, ao livre arbítrio dos leitores e à capacidade que possam ter de poderem influenciar as suas casas.
Por isso se optou por uma exposição que “inverte”, um pouco, as regras normais em trabalhos técnicos e científicos, porque se irá tratar daquilo que marca espacial e ambientalmente as diversas zonas da casa, em termos de notas gerais bem entendíveis por todos e não apenas por projectistas e investigadores, remetendo-se para “pé-de-página” as indicações mais objectivas e especificadas, sempre que se considere que tais indicações poderão ser úteis para concretizar as ideias de vida e ambiente doméstico a que se referem.
E não é excessivo referir que outros estudos se dedicam especificamente aos aspetos mais objectivos do habitar e dos espaços domésticos, como por exemplo o livro intitulado “Do bairro e da vizinhança à habitação”, que foi publicado pelo LNEC no já “longínquo” ano de 1998 (ITA 2); e mesmo neste estudo houve o cuidado de disponibilizar várias possibilidades e opções funcionais para cada espaço doméstico, referidas por diversos autores.
Mas na mesma séria editorial do LNEC um livro mais recente, a “Habitação e Arquitetura: Contributos para uma habitação e um espaço urbano com mais qualidade” (ITA 12 de 2012), aborda estas matérias com um sentido muito mais verdadeiro, porque qualitativo e tendencialmente integrado, enquanto ainda outro estudo do LNEC (que estão disponível numa forma desenvolvida na Livraria do LNEC) procura direcionar estas temáticas segundo um fio condutor vitalmente marcado pela necessidade e pela esperança de podermos habitar espaços expressivamente humanizados – “Entre casa e cidade, a humanização do habitar”, disponível na dafne editora, opúsculos - Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura, opúsculo 18, 2009. (www.dafne.com.pt/pdf_upload/opusculo_18.pdf )
De certa forma, em todos estes estudos já editados e como base do presente texto assume-se a ideia de uma técnica de bem-fazer habitação e habitar que esteja expressivamente subordinada ao objectivo fundamental de se viver melhor, na casa de cada um, de acordo com os melhores objectivos de vivência doméstica que felizmente encontramos em tantos exemplos, frequentemente até de habitação de interesse social, desmistificando-se, deste modo, que tais objectivos são difíceis em termos de custo e em termos de “impossibilidades” funcionais e abrindo-se, assim, caminho para que cada um possa (re)inventar, pelo menos parcialmente, o seu sítio doméstico sonhado e desejado.

Habitação e apropriação

A batalha seguinte será tentar concretizar tais ideias no mundo doméstico de cada um, mas uma guerra tem sempre várias batalhas e para as começar a ganhar é essencial apostar numa informação esclarecida e eficaz.
Lembremos que se começou esta viagem – e esta série editorial (“Habitar e viver melhor”) – na vizinhança urbana e, depois, ao longo do edifício, que são mundos onde naturalmente terá de haver ordem e equilíbrio gerais e consensuais e onde a apropriação por cada um, será bem-vinda, mas desde que bem regrada, concentrada e positivamente cumulativa em termos de atractividade e de identidade local; mas agora, dentro das nossas casas, estamos num mundo “mais nosso”, que deve privilegiar uma adequada apropriação individualizada dos seus diversos espaços e elementos particularizados.
Importa referir, ainda, o facto de que temos sempre tendência a imaginar uma casa numa perspectiva organizativa rígida: por exemplo, imaginamos entrar para um vestíbulo e daí passar para o resto da habitação, mas quando encaramos uma situação “tradicional” de entrada directa para uma sala de jantar que é também sítio de boas-vindas não estranhamos esta “quebra” de sequências. E este é um exemplo que pode ir mais longe, naturalmente, e que aqui se “ilustra” lembrando-se a entrada de uma habitação em Malmö, que dava directamente para uma ampla cozinha e sala de família: não havia outra entrada e os visitantes estranhavam, logo na altura, mas as reacções pareciam, depois, globalmente positivas, quando os visitantes começavam a entender a estrutura inovadora daquela habitação.
E será, assim, nesta perspetiva de uma inovação bem fundamentada e referenciada à nossa cultura habitacional e doméstica que procuraremos ir estruturando neste texto e em próximos artigos sobre os espaços domésticos de um “habitar e viver melhor”.





Fig. 02: uma habitação que sirva e se evidencie, designadamente, como “estojo” global e particularizado, mas versátil, devidamente estimulante, agradável e funcional dos espaços, elementos e comportamentos que integram as nossas vidas – uma habitação muito mais feita de relações entre comportamentos do que entre compartimentos.

 


Grandes temas para a revisão dos espaços domésticos

Retomando o excelente parágrafo do arquiteto P. Céleste, acima apontado, é essencial que nos interiores domésticos possamos “estar em sua (nossa) casa (o “nossa” é responsabilidade do autor destas linhas) e numa “habitação calorosa”, sendo que “o contexto é o que nos anima” e, nesse contexto, o “exterior deve fazer sonhar”, e há que privilegiar uma “distribuição simples que proporcione dar um nome a cada peça e que se ligue a comportamentos habitacionais muito flexíveis” e “é preciso encontrar uma certa forma de deambulação, estar atento à arte de colocar uma porta, uma janelaatento aos gestos quotidianos.” (2)

Regista-se que esta “repetição” sincopada das palavras do citado autor parece sintetizar muito daquilo que se tenta sublinhar neste artigo e que se irá procurar desenvolver, mais um pouco, já de seguida e em próximos artigos desta série e salienta-se, desde já, que em 10 aspetos considerados no texto acima (referidos em seguida na mesma ordem usada no referido parágrafo), apenas dois se podem considerar com natureza mais objetiva e mesmo assim a questão de uma “distribuição simples” e da adequação aos “gestos quotidianos” incluem, também, muitos e amplos aspetos menos objetivos:

(i) apropriação geral;
(ii) atratividade e domesticidade;
(iii) integração;
(iv) comunicabilidade e estímulo ao desejo/sonho no habitar;
(v) racionalidade e acessibilidade – “distribuição simples”;
(vi) apropriação específica e reforço da identidade de cada espaço;
(vii) adaptabilidade;
(viii) acessibilidade flexível, adaptável e apropriada.
(ix) criatividade projetual e capacidade de pormenorizar
(x) funcionalidade e adequação à multiplicidade dos “gestos quotidianos”.


Não se trata aqui de aprofundar qualquer conflito/despique entre aspetos mais qualitativos e eventualmente mais subjetivos ou mais quantitativos e objetivos, pois ambos têm natural presença no quadro de uma adequada e ampla qualidade residencial e arquitetónica, mas apenas sublinhar que, quando estamos em presença de uma boa conceção de arquitetura residencial (e sublinha-se expressivamente esta condição), a essencial mistura qualitativa e quantitativa ou mais subjetiva e mais objetiva, referida aos diversos aspetos de projeto e vivência a ter em conta, não parece favorecer os aspetos habitualmente considerados como mais objetivos, funcionais e racionalistas, e, aliás, isto acontece, quer devido à fulcral importância dos outros aspetos, em boa parte responsáveis pelo fazer das habitações de que realmente gostamos e que realmente nos satisfazem – tal como aponta P. Céleste –, quer devido à frequente circunstância de tais aspetos mais funcionais estarem, habitualmente, tão intimamente embebidos no “partido” geral e no quadro de pormenorização da habitação, que acabam por não ser entendidos de forma específica e isolada por quem a habita e mesmo por quem a visita.
Dito isto apontam-se e comentam-se, muito brevemente, em seguida as matérias em que nos propomos dividir, estrategicamente, a abordagem ao grande tema dos “mundos domésticos e pessoais” (que tem sido publicada, ao longo de muitos meses, na Infohabitar na série editorial “Habitar e viver melhor”).
Serão assim tratadas, em seguida muito sinteticamente e, posteriormente, em artigos específicos, as seguintes matérias relativas aos “mundos domésticos e pessoais”.

Grandes Opções Domésticas

A organização e a caracterização de um espaço doméstico pode seguir determinados hábitos de organização domésticos, alguns dos quais decorreram da evolução da vivência doméstica ao longo de alguns milénios, e outros que, praticamente, acabaram de nascer pois foram inventados em finais do séc. XIX e no séc. XX, ou então a organização e a caraterização de um espaço doméstico pode passar por uma verdadeira reinvenção bem fundamentada das respectivas funções, ambientes, associações espaciais e diversos espaços de actividade e de cena, numa perspetiva de aplicação discutida do que podemos designar como “Grandes Opções Domésticas”. 
Opções estas que, evidentemente, não são ou não devem ser rígidas, condição esta que desde logo evidencia a importância de se aplicar/prever uma importante “reserva” de adaptabilidade doméstica.

Espaços de ligação habitação-edifício e habitação-rua

Sobre a ligação habitação-rua importa aprofundar as possibilidades vivenciais e arquitetónicas que uma diversidade de relacionamento entre esses dois mundos de privacidade e convivialidade pode e deve proporcionar com o duplo objectivo de uma cidade mais variada, atraente e mesmo equilibradamente surpreendente, e de uma habitação marcada pelas identidades próprias e de cada família.
E um outro importantíssimo aspeto deste sentido de relação da habitação com o seu exterior joga-se na essencial relação entre os diversos espaços domésticos (construídos) e os espaços e elementos naturalizados, existentes, quer em espaços privados exteriores, quem na vizinhança pública ou comum; e afinal desta relação sairão valorizados tanto os espaços interiores como os exteriores.

Viver ao nível térreo

A existência de residências térreas, dispondo de espaços exteriores privativos, liga-se a uma oferta, directa, de condições de vida diária potencialmente muito semelhantes ao viver em edifícios unifamiliares e pode, até, ser conveniente para potenciar a continuidade da presença humana e a animação urbana.
Nesta perspectiva podemos considerar que “viver ao nível térreo” será um dos principais passaportes para poder viver em outras tipologias residenciais que não apenas as mais normais ou habituais e por aqui chegaremos, entre outras, às estimulantes tipologias intermediárias entre edifícios multi e unifamiliares; e de tais misturas sairão as vizinhanças e a cidade enriquecidas, para além de se obter a importante satisfação de um amplo leque de desejos habitacionais privados e familiares, pouco consentâneos com o pobre leque tipológico habitacional habitualmente existente.

Sobre a adaptabilidade doméstica

Sobre a importância, hoje em dia crucial, da adaptabilidade das soluções domésticas salientam-se alguns aspectos que são considerados essenciais tendo em vista, essencialmente, o desenvolvimento de habitações adequadas a diversos tipos de famílias, modos de vida e de uso e apropriação, e o combate a "layouts" e configurações pormenorizadas com características funcionais e ambientais "rígidas" (pouco adaptáveis e versáteis); de certo modo e mais uma vez é apagar, de vez, a ideia de que as habitações podem ser concebidas, apenas, como soluções funcionais, e/ou que essa possibilidade é algo que pode ser, até, considerado como um aspeto positivo na conceção – numa espécie de “normalização” da vida doméstica, habitualmente logo expandida à normalização de (pseudo)vizinhanças e até, por vezes, de (pseudo)cidades.





Fig. 03: uma habitação que acabe por ser, muito mais, um amplo conjunto de versáteis microespaços para-domésticos, dinamicamente agregáveis, do que um simples mostruário de compartimentos quase monofuncionais.

   

Bons espaços e ambientes domésticos

A ideia que se quer aqui sublinhar é a importância determinante do conforto ambiental, com destaques específicos para a insolação, a luz natural, a ventilação, o isolamento de ruídos e o isolamento térmico, para uma verdadeira satisfação com o espaço doméstico.
Os espaços e, essencialmente, os microespaços domésticos valerão muito mais como elementos relacionais e até de transição ambiental, do que como células quase auto-enclausuradas.

Zonas domésticas: (novas) ideias organizativas

Provavelmente, há alguns anos, esta parte do trabalho seria das mais importantes em termos de um apoio prático ao desenvolvimento de melhores soluções habitacionais; tratava-se, então, afinal, de um relativo culminar de toda uma tradição de zonamentos funcionais ou funcionalistas, zonamentos estes que, infelizmente, ajudaram a destruir bairros de cidades e a uniformizar espaços domésticos no sentido do serviço a uma pessoa “média” e a uma família “média”, que raramente existem.
Propõem-se, como essencial modelo de revisão, um apurado, sensível e adaptável modelo de microfuncionalidades, aliás já bem preparadas nos bons estudos funcionais como os de Nuno Portas, no LNEC (“Funções e exigências de áreas da habitação”), de Sven Thiberg e de Claude Lamure; e em mútiplos e excelentes estudos de arquitectos projectistas e autores de livros, como, por exemplo, Herman Hertzberger.


Equilíbrios dimensionais e de privacidade

Procura-se desenvolver, neste tema, considerações sobre o equilíbrio com que se distribui o espaço na habitação e as respectivas consequências na adequação a variados tipos de família e a diversos modo de vida.
Trata-se, evidentemente, de matéria básica na concepção residencial, mas infelizmente muito mais presente nas respectivas memórias descritivas do que na realidade dos espaços construídos.

Opções domésticas de compartimentação

Trata-se de desenvolver a matéria da junção e divisão de compartimentos e espaços, da escolha entre ter mais compartimentos mais pequenos ou menos compartimentos maiores e da separação entre zonas mais sociais ou mais íntimas.
E neste “capítulo” fica bem evidenciada a rica possibilidade de se habilitar o espaço doméstico para uma ampla e complexa constelação de microfunções e microcomportamentos; muito mais rica do que a simples normalização “compartimental”.

“Libertar” a habitação das instalações.

A ideia que quer aqui evidenciar é que tudo o que se faça para favorecer uma maior capacidade de apropriação e de adaptabilidade dos espaços domésticos relativamente aos seus habitantes, pode ser extremamente afetado, por redes e padrões de serviço de instalações rígidos e pouco adaptáveis.
Trata-se de assunto que tem a sua complexidade, mas que merece aprofundamento, também, quando vivemos uma situação que faz evidenciar, por exemplo, a importância de uma maximização da privatização de casas de banho.


Oferta diversificada de espaços domésticos específicos

Nesta parte da temática abordam-se, globalmente, os compartimentos, cantos e recantos domésticos e os espaços tendencialmente intimistas onde se processa a vida diária das famílias, um leque variado de espaços habitualmente com funções específicas, mas desejavelmente com uma equilibrada flexibilidade funcional, que devem ser espaços privilegiados da apropriação familiar e individual.
E lá voltamos à insuspeita importância de uma adequada proposta de uma amplíssima panóplia de microespaços domésticos; matéria esta que, sem dúvida, coloca em evidência a importância de um excelente projeto de Arquitectura.


Notas:
(1) e (2) Monique Eleb, Anne Marie Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, 1997, p. 238.


Uma primeira versão, mais resumida, deste artigo foi publicada nos números 468 e 469 da Infohabitar, em 20 e 27 de Janeiro de 2014.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos autores dos artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos mesmos artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é, igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que deverão referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.


Infohabitar, Ano XVI, n.º 729

Mundos domésticos e pessoais: habitação e espaços da habitação, aspetos gerais e temas de desenvolvimento (edição revista e aumentada) – Infohabitar # 729


Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Arquitecto/ESBAL – Escola Superior de Belas Artes de Lisboa –, doutor em Arquitectura/FAUP – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto –, Investigador Principal com Habilitação em Arquitectura e Urbanismo no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), em Lisboa.


Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).