segunda-feira, julho 22, 2013

448 - Moradia para quem? A comunidade do Horto/Jardim Botânico, no Rio de Janeiro - Infohabitar 448

NOTA PRÉVIA DA EDIÇÃO DO INFOHABITAR: considerando o interesse demonstrado por diversos leitores por esta última edição, ela será mantida em primeira linha editorial durante a presente semana (de 28 de julho a 3 de agosto); a Infohabitar retomará o seu ritmo editorial habitual (semanal) na próxima segunda-feira dia 5 de agosto.
 
Infohabitar, Ano IX, n.º 448

Moradia para quem? A comunidade do Horto/Jardim Botânico, no Rio de Janeiro - entrevista a Ubiratan de Souza por Coryntho Baldez

Em seguida e tal como tinha sido já divulgado na semana passada, e com a devida autorização, edita-se uma excelente entrevista, que foi recentemente publicada (junho de 2013), na edição n.º 10 do “UFRJ Plural” – Boletim editado pela Agência de Notícias da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma entrevista na qual o tema central é o projeto coordenado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, pelo colega Prof. Arq.º Ubiratan de Souza, que é o entrevistado, sendo entrevistador Coryntho Baldez.

A entrevista intitula-se "Moradia para quem?" e refere-se à implementação do direito à habitação/moradia da Comunidade do Horto/Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, bem como ao Projeto da UFRJ de regularização urbanística do Horto/Jardim Botânico, que visa demonstrar ser possível conciliar habitação adequada e conservação do meio ambiente.
O artigo é acompanhado por um conjunto de imagens ilustrativas da situação no Horto/Jardim Botânico, que nos foram gentilmente cedidas pelo colega Ubiratan de Souza, ao qual aqui publicamente agradecemos, assim como à coordenação do “UFRJ Plural”.

Desejamos que a situação descrita possa ter a melhor evolução possível numa desejável adequação e harmonização dos interesses existentes na zona do Horto/Jardim Botânico, tendo-se em conta a perspetiva de se poder proporcionar aos moradores condições de continuidade de moradia no espaço que habitam há anos e evitando-se o problema da criação de um equipamento muito "solto" da continuidade urbana e que, depois, só será usado por quem lá vai, especificamente, com essa finalidade, perdendo-se espontaneidade urbana e de vivência e uma integração física e social que é, provavelmente, a melhor referência, seja para um habitar mais rico, seja para equipamentos urbanos mais vivos e viáveis. E afinal, e cada vez mais, há que tratar do habitar, do urbano, da paisagem e do ambiente de forma conjugada e integrada, considerando, quer aspetos de viabilidade económica, quer aspetos de sustentabilidade ambiental e social.


E desejamos, também, uma boa leitura, aproveitando para referir que a edição da Infohabitar tomou a liberdade de sublinhar, a negrito (bold), algumas frases que considerámos de interesse geral e evidenciado.


António Baptista Coelho

Editor da Infohabitar, Presidente do Grupo Habitar, Investigador Principal com Habilitação no Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais do LNEC

Apresentação


A Superintendência Geral de Comunicação Social (SGCOMS) da UFRJ é um orgão de direção e serviço diretamente subordinado ao Gabinete do Reitor, atuando como mecanismo comunicacional integrador da universidade com as suas unidades acadêmicas e com a sociedade em geral. Sua principal atribuição é propor e executar as diretrizes de uma política global de Comunicação Social para a instituição, além de coordenar os serviços ligados a essa área. Recém-criada, a SGCOMS substitui a Coordenadoria de Comunicação.


Entrevista


Moradia para quem?


Coryntho Baldez


Projeto da UFRJ de regularização urbanística do Horto/Jardim Botânico mostra que é possível conciliar habitação adequada e conservação do meio ambiente.


Uma visão distorcida da cidade quer fazer crer que o direito à moradia é incompatível com a preservação do ambiente natural. A premissa vem sendo usada com frequência pelo poder público para despejar populações pobres de áreas consideradas nobres, como a Zona Sul do Rio de Janeiro.


Porém, um estudo técnico – desenvolvido pelo Laboratório de Habitação (LabHab) do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ – mostra que o uso do solo para fins de moradia na região é anterior à criação do JBRJ e está perfeitamente integrado ao contexto urbano e ambiental local.


Fig. 01: Ubiratan de Souza, coordenador do LabHab

O exemplo mais recente foi a decisão do governo federal de desalojar 520 famílias que residem na comunidade do Horto/Jardim Botânico, anunciada em 7 de maio pela ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. A alegação oficial foi a de que elas estariam ocupando, de modo irregular, uma área pertencente ao Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ).

“Aquela comunidade, na verdade, é um dos alicerces de defesa do patrimônio ambiental e científico do Instituto Jardim Botânico e de toda aquela região”, afirma Ubiratan de Souza, doutor em Arquitetura pela UFRJ e coordenador do Projeto de Regularização Cadastral, Fundiária e Urbanística da Comunidade do Horto/Jardim Botânico do Rio de Janeiro.





Fig. 02: imagem da maquete desenvolvida durante o projeto do LabHab



Agora ignorado, o projeto foi desenvolvido a pedido do próprio governo federal, através da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), vinculada ao Ministério do Planejamento. Segundo o professor, a proposta final contida no Plano de Intervenção Urbanística não apenas garante o título de posse aos moradores – que preenchem os requisitos legais para obtê-lo – como prevê a ampliação das atividades do JBRJ.

Embora tenha a expectativa de que o governo federal volte atrás e adote as diretrizes apontadas pelo plano, Ubiratan critica o ressurgimento das chamadas políticas de remoções em áreas cobiçadas pelo capital imobiliário. “Estamos reeditando o antigo bota-abaixo do prefeito Pereira Passos, uma política de higienização do início do século passado para livrar da pobreza algumas áreas centrais”, denuncia.


Apresentado no “8º Congresso de Extensão da UFRJ”, em 2011, o projeto do LabHab obteve o reconhecimento acadêmico ao receber o Prêmio Fujb – Fundação Universitária José Bonifácio na temática Meio Ambiente.


UFRJ Plural – O LabHab realiza as suas atividades tendo como diretriz a ideia de direito humano à moradia adequada, como prevê a Constituição. Explique esse conceito e as dificuldades práticas para aplicá-lo no Brasil?


Ubiratan de Souza – O conceito de moradia adequada, digna, está ancorado em preceitos constitucionais, que, por sua vez, baseiam-se em cartas internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Nesses documentos, considera-se a moradia como espaço vital à existência humana, como direito fundamental. Esse conceito vai além da edificação. Não se trata de prover abrigo para o ser humano, mas uma moradia com qualidade. Uma moradia que se articula ao conjunto da cidade, com provisão de infraestrutura, serviços básicos, além de próxima à oferta de emprego, saúde, educação e lazer. Enfim, a moradia digna é um conceito amplo, que significa a fruição do território por parte do ser humano.


UFRJ Plural – Essa fruição do território com qualidade é um direito que ainda encontra obstáculos para ser aplicado no Brasil. Por exemplo, existe um discurso oficial de incompatibilidade entre a moradia e o meio ambiente que vem sendo usado para justificar despejos de comunidades pobres. Qual a sua avaliação sobre isso?


Ubiratan de Souza – Esse é um discurso falacioso. O Direito Ambiental e o Direito Urbano estão em um processo de aproximação. Não existe dicotomia ou conflito entre o direito coletivo e difuso ao ambiente saudável e o direito coletivo e difuso, e também individual, à moradia adequada. Na verdade, os assentamentos humanos tendem a se articular com o ambiente natural de modo a garantir o processo de desenvolvimento sustentável. A incompatibilidade entre essas duas dimensões existe apenas por uma visão distorcida de cidade por parte de gestores públicos e de setores ligados à especulação imobiliária. É uma visão que não contempla os interesses da sociedade, principalmente das classes mais pauperizadas e vulneráveis, e se ancora no discurso fantasioso de que o direito à moradia estaria subordinado ao direito difuso ao ambiente sustentável. Essa é uma ideia completamente descabida.





Fig. 03: imagem da comunidade do Horto/Jardim Botânico

UFRJ Plural – O LabHab, recentemente, desenvolveu um projeto de regularização cadastral, fundiária e urbanística da comunidade do Horto/Jardim Botânico. Como esse projeto se iniciou?

Ubiratan de Souza – Ele é fruto de parceria da UFRJ com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), ligada ao Ministério do Planejamento, através da sua superintendência no Rio de Janeiro. Essa parceria está ancorada no histórico de trabalhos desenvolvidos pelo Laboratório de Habitação, que é coordenado pelo professor Mauro Santos. Neste caso específico, fiquei responsável pela coordenação do projeto.


UFRJ Plural – Foi a SPU que procurou a UFRJ para fazer o projeto?


Ubiratan de Souza – Exatamente. Com o termo de cooperação assinado, fizemos o levantamento cadastral e habitacional dos moradores da região, o reconhecimento da área, enfim, uma série de estudos. Ao final do processo, elaboramos uma proposta de organização, de ordenamento do território, visando à titulação dos moradores bem como a possibilidade de o Instituto Jardim Botânico receber boa parte do território para o desenvolvimento de suas atividades científicas e ambientais.


UFRJ Plural – Fale um pouco sobre as origens históricas do processo de ocupação da região do Horto e do Jardim Botânico. Foram escravos e trabalhadores livres que ocuparam aquela região para fins de moradia e trabalho antes das camadas mais abastadas?


Ubiratan de Souza – Sem dúvida. Esse, inclusive, é o processo de desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro. Aquela região, em suas origens, era de difícil acesso. Ali, foram instaladas algumas unidades de produção agrícola, com mão de obra escrava, no século XVII e XVIII. No século XIX, o processo de ocupação se intensificou, inclusive com instalação de unidades fabris. Uma delas é a fábrica de pólvora, criada naquela região e depois transferida para uma área da Baixada Fluminense. Depois, foram implantadas várias indústrias têxteis. Não é à toa que aquela região, ainda hoje, possui vários conjuntos de vilas operárias que, dado o seu valor histórico, foram tombados pelo patrimônio histórico. Em algumas moradias vizinhas ao Instituto Jardim Botânico, observamos uma configuração bastante funcional e própria de uso do solo para moradia.


Fig. 04: imagem da comunidade do Horto/Jardim Botânico

UFRJ Plural – As informações históricas e socioambientais levantadas durante o estudo mostraram, então, que a comunidade do Horto/Jardim Botânico está plenamente integrada ao contexto urbano local?

Ubiratan de Souza – Sim. Existe uma particularidade na comunidade do Horto/Jardim Botânico. De um lado, ela se integra, física e funcionalmente, à cidade formal, ou seja, ao bairro Jardim Botânico e ao sul do bairro da Gávea. Por exemplo, a Vila 64 tem entrada pela rua Major Rubem Vaz. De outro lado, a comunidade se integra também às atividades ambientais e técnico-científicas do próprio Instituto Jardim Botânico. Quem visita aquela região observa a predominância de usos residenciais com um visível cuidado em relação ao ambiente natural. É lógico que, como qualquer assentamento humano, também se observam usos indevidos, mas isso é natural. Afinal de contas, são cerca de 2 mil pessoas que moram ali. Essa comunidade, na verdade, é um dos alicerces de defesa do patrimônio ambiental e científico do Instituto Jardim Botânico e de toda aquela região, que é vizinha ao Parque Nacional da Tijuca.


Fig. 05: imagem da comunidade do Horto/Jardim Botânico

UFRJ Plural – A grande mídia tem apresentado os moradores como “invasores” de uma área que pertenceria ao Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Isso é verdade?

Ubiratan de Souza – Não. A verdade é que aquela área é de propriedade da União Federal. Nela, existem o Instituto Jardim Botânico, a comunidade do Horto/Jardim Botânico, as instalações do Serpro, da Light, uma escola municipal e uma série de outros usos, como um prédio do Tribunal Regional Eleitoral. Portanto, é uma área muito mais complexa, e não é de uso exclusivo do Instituto jardim Botânico. A diretriz da SPU para o trabalho do LabHab foi buscar atender à demanda do Instituto Jardim Botânico e também dos moradores. Criar essa compatibilidade é plenamente possível e exequível. Agora, o que ocorre de fato é que os moradores, por serem de baixa renda, são objeto de criminalização ao serem classificados como invasores. Na verdade, invasores são os grileiros de terra que, muitas vezes, são acobertados por práticas políticas danosas à sociedade. Um processo histórico de ocupação que, inclusive, garante às famílias a posse da terra não pode ser classificado como prática criminosa. A visão de que aquela comunidade de cerca de 2 mil pessoas é uma “praga” invasiva é cruel e desumana.


UFRJ Plural – Os estudos científicos do Instituto Jardim Botânico poderiam ser potencializados por meio da relação de convivência com as famílias da Comunidade do Horto? Há exemplos históricos disso?


Ubiratan de SouzaO Instituto Jardim Botânico pode estar perdendo uma grande oportunidade histórica. Como instituição de pesquisa na área ambiental, poderia compartilhar com a comunidade ali residente uma visão prática e teórica de como o ser humano pode se relacionar com o ambiente natural. Quando se fala em educação ambiental e socioambiental, curiosamente, esquece-se de que a comunidade que mora naquela área é, por si só, o exemplo de uma convivência harmônica com o ambiente natural. Fico bastante triste com a falta de visão do Instituto Jardim Botânico, que se recusa a assumir o compromisso histórico de desenvolver práticas de educação socioambiental com a própria comunidade.


Fig. 06: imagem da comunidade do Horto/Jardim Botânico

UFRJ Plural – Moradores daquela área participaram, inclusive, da recuperação de florestas que foram dilapidadas por uma ocupação econômica predatória?
Ubiratan de Souza – É verdade. Não podemos esquecer que boa parte daquela região não é de mata primária. Houve o replantio do próprio Parque Nacional da Tijuca por conta da devastação de enormes áreas para a produção agrícola e de uma série de outras atividades econômicas. Na verdade, a população, historicamente, foi resgatando esse ambiente natural, protegendo-o. Hoje, quando circulamos naquela região percebemos conjuntos de diversas moradias que, na verdade, são belíssimas áreas de preservação. As pessoas moram ali, plantam ali, enfim, estabelecem uma relação de convivência entre o espaço vital da moradia e o ambiente natural. É um exemplo fantástico de uma situação que poderia ser potencializada pelo Instituto Jardim Botânico.


UFRJ Plural – E qual a sua avaliação sobre a decisão do governo federal de despejar mais de 500 famílias que moram naquela região, apesar de o Plano de Intervenção Urbanística, um estudo técnico desenvolvido pelo LabHab da UFRJ, apontar para outra direção?


Ubiratan de Souza – Na verdade, me surpreendeu. Isso porque esse projeto foi construído com a equipe técnica da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e técnicos da Secretaria do Patrimônio da União, tanto de Brasília como do Rio de Janeiro. E houve participação dos moradores e também do Instituto Jardim Botânico, que nunca foi excluído do processo de discussão sobre o Plano. Pelo contrário. A base física e espacial desse projeto está referenciada num documento oficial encaminhado pelo Instituto, no qual se previa que algumas áreas poderiam ser passíveis de regularização fundiária para fins de moradia. A partir dessa perspectiva do Plano Diretor do próprio Instituto e da revisão nele feita anos depois, chegamos a uma proposta exequível e equilibrada. O Plano que fizemos apresenta para o Instituto Jardim Botânico a possibilidade de expansão e de potencialização das suas atividades finalísticas e, ao mesmo tempo, garante o assentamento da comunidade Horto/Jardim Botânico.




Fig. 07: imagem da maquete desenvolvida durante o projeto do LabHab

UFRJ Plural – Essa decisão, então, desconsiderou todos os estudos realizados e também a proposta final?

Ubiratan de Souza - Tenho conhecimento sobre isso pela mídia. E boa parte da mídia no Brasil é tendenciosa, não respeita o direito à manifestação de opiniões distintas, do contraditório, que é um princípio do Direito. Por exemplo, poderosos veículos de comunicação vêm, há mais de três anos, noticiando de forma tendenciosa esse projeto e a situação da comunidade Horto/Jardim Botânico. A imprensa não pode se prestar a isso, ou seja, servir a interesses particulares ou de determinados grupos. Ela tem que procurar reverberar para a sociedade o conjunto das contradições e os interesses de todos os envolvidos.


UFRJ Plural – Há alguma possibilidade de o governo voltar atrás em sua decisão?


Ubiratan de Souza - Eu ainda tenho a expectativa de que esse processo seja revisto. Espero que a sensibilidade do poder público fale mais alto em defesa dos interesses da comunidade do Horto/Jardim Botânico, que não são contraditórios com os do Instituto Jardim Botânico, mas complementares.


UFRJ Plural – Parece que a proposta do governo foi cirúrgica ao colocar as comunidades de baixa renda dentro do perímetro de “remoção”. Existem, naquela área, moradias de luxo que ficaram fora da proposta de despejo feita pelo governo?


Ubiratan de Souza - O Rio de Janeiro tem uma legislação que estabelece que não se pode construir a partir da cota 100 de altura em relação ao nível do mar. E naquela região existe o Condomínio Parque Canto e Mello, um lugar de residência de segmentos abastados, de alto poder aquisitivo, que tem cota 200. É uma construção localizada nos limites da área que é objeto de discussão e de litígio. Pela proposta oficial, esse condomínio de alto luxo continuará intocável, ao mesmo tempo que se prevê o desalojamento de mais de 1.500 famílias de suas moradias. Parece que estamos reeditando o antigo “bota-abaixo” do prefeito Pereira Passos, uma política de “higienização” do início do século passado para livrar da pobreza algumas áreas centrais. Essa política cruel e violenta de remoção se repetiu no governo de Carlos Lacerda, em meados do século XX. Nos últimos anos, também temos presenciado um processo vigoroso de remoção de populações pobres de áreas altamente valorizadas, como é aquela região do Jardim Botânico.


Fig. 08: imagem da comunidade do Horto/Jardim Botânico

UFRJ Plural – Há interesses imobiliários por trás da decisão de despejar a comunidade do Horto/Jardim Botânico?

Ubiratan de Souza - A especulação imobiliária está sempre presente nessas situações. Aquela região tem um dos metros quadrados mais caros do Brasil. Ali, concentram-se atividades com interesses poderosos e influentes, como a própria sede da Rede Globo. Sem dúvida, pelo seu alto valor econômico, é uma região que não poderia abrigar populações pobres, de acordo com certa lógica de mercado. É como se a pobreza “sujasse” o território, a cidade. Pelo contrário, entendo que a pobreza é resultado de um processo histórico de injustiças sociais. Mas é preciso dizer que há como fazer a reversão desse processo, dando àquela comunidade até mesmo a possibilidade de chegar a um patamar econômico e social mais digno.


UFRJ Plural – Pelo seu relato, pode-se dizer que a apropriação do território naquela região reflete conflitos que são inerentes à produção da cidade na sociedade capitalista?


Ubiratan de Souza – Sem dúvida. A sociedade capitalista é desigual, excludente por natureza. No meu entendimento, não existe um capitalismo que não seja voraz. As relações humanas estabelecidas nesse sistema são essencialmente injustas. E essa injustiça se reproduz na ocupação do espaço físico. Ou seja, a própria constituição e ordenamento dos territórios reflete essa desigualdade. Portanto, o que temos na comunidade do Horto/Jardim Botânico é uma elite econômica e política que se opõe ao direito de moradia de uma população mais pobre. Embora em suas origens a ocupação naquela região tenha surgido exatamente pela presença de trabalhadores, as suas famílias agora estão sendo excluídas desse processo de participação na cidade formal.


UFRJ Plural – Por que a prática de remoções na cidade vem se intensificando nos últimos anos e tem sido utilizada de forma aberta e ostensiva pelo poder público?


Ubiratan de Souza - O que temos, na verdade, é a produção de uma cidade midiática, uma cidade que é mercadoria, e não um bem social. Assim como a moradia não pode ser uma mercadoria, aqui é importante lembrar que o projeto de regularização fundiária da comunidade do Horto/Jardim Botânico não transfere a propriedade do solo aos moradores, e sim a posse. É totalmente diferente. Não se trata de privatizar aquela área para os moradores que ali residem, mas de conceder a posse para que eles possam ter garantia de moradia para si e para suas famílias.


UFRJ Plural – Segundo essa lógica de cidade, seria preciso reservar terrenos valorizados para quem pode pagar pela moradia?


Ubiratan de Souza - Sim. Esse processo de “limpeza social” é algo que observamos em todo o município do Rio de Janeiro. Uma boa parte dos investimentos do programa “Minha Casa Minha Vida”, por exemplo, está sendo utilizada para implantação de conjuntos em regiões distantes do mercado de trabalho, do local onde os próprios trabalhadores vivem. O que existe é uma apartação socioespacial. Desaloja-se a população pobre de áreas consideradas nobres para colocá-la, por exemplo, em áreas desprovidas, em grande parte, de infraestrutura urbana e de serviços, como a Zona Oeste.


UFRJ Plural – Isso tem relação com os chamados megaeventos?


Ubiratan de Souza - Não tenho dúvida. E até faria uma analogia com a questão do legado da Copa e das Olimpíadas. A continuar o modo como todos esses projetos vêm sendo desenvolvidos, o legado talvez seja muito triste. A municipalidade do Rio de Janeiro, o governo do estado e o governo federal poderiam dar uma nova dinâmica ao desenvolvimento socioambiental da cidade, e não criar áreas altamente valorizadas para viabilizar grandes empreendimentos imobiliários. Nesse processo histórico de valorização do solo e de requalificação urbana, quem sofre é a população pobre. Ela acaba expulsa dessas áreas, direta ou indiretamente, e passa a ocupar bairros sem infraestrutura ou mesmo áreas de risco.


UFRJ Plural – Por fim, qual foi a importância desse projeto como atividade de extensão universitária?


Ubiratan de Souza - Na minha visão, ela não é apenas um pé do conhecido tripé ensino, pesquisa e extensão. A extensão, na verdade, é uma das dimensões da universidade. A experiência de elaboração do projeto na comunidade Horto/Jardim Botânico envolveu muitos estudantes de graduação, pós-graduação, profissionais de dentro da universidade, moradores da região, técnicos da SPU e de órgãos municipais e estaduais. A convivência entre todos esses segmentos gerou um rico processo de elaboração de políticas públicas. De fato, chegamos bem próximo de uma situação em que as formulações e a produção de conhecimento da universidade, em conjunto com a sociedade, poderiam ter sido utilizadas na prática como elementos de políticas públicas. Acho que essa experiência foi fantástica. E espero que ela não tenha chegado ao fim. Tenho a expectativa de que a sensibilidade e a visão humanista da sociedade por parte do poder público sejam mais fortes do que a força do mercado imobiliário e de elites que não conseguem conviver com a diversidade e com a pobreza que elas mesmas reproduzem em sociedades como a nossa.


A entrevista está disponível no seguinte link da edição n.º 10 do “UFRJ Plural”: http://www.plural.ufrj.br/010/index.php


Notas editoriais:

(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.

Editor: António Baptista Coelho abc@lnec.pt

INFOHABITAR Ano IX, nº448
Moradia para quem? A comunidade do Horto/Jardim Botânico, no Rio de Janeiro - entrevista a Ubiratan de Souza por Coryntho Baldez
Edição de José Baptista Coelho
LNEC-Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) e
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte



terça-feira, julho 16, 2013

Aos leitores da Infohabitar



Com as devidas desculpas, a edição comunica que devido a problemas editoriais, que não foi possível ultrapassar, a edição desta semana da nossa revista não será realizada.
Na próxima segunda-feira, dia 22 de julho, retomaremos a nossa atividade editorial corrente e semanal, com uma excelente edição:


Trata-se da reprodução (autorizada) de uma excelente entrevista editada recentemente (junho/2013), na edição n.º 10 do “UFRJ Plural” – órgão editado pela Agência de Notícias da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); uma entrevista na qual o tema central é o projeto coordenado na FAU/UFRJ, pelo colega Prof. Arq.º Ubiratan de Souza - o entrevistado, sendo entrevistador Coryntho Baldezo.

A entrevista intitula-se  "Moradia para quem?" e refere-se à implementação do direito à habitação/moradia da Comunidade do Horto/Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, bem como ao Projeto da UFRJ de regularização urbanística do Horto/Jardim Botânico, que visa demonstrar ser possível conciliar habitação adequada e conservação do meio ambiente - e desde já é possível ter acesso a este trabalho a partir do seguinte link:


Na edição da Infohabitar teremos oportunidade de divulgar algumas imagens ilustrativas da situação no Horto/Jardim Botânico, que nos foram gentilmente cedidads pelo colega Ubiratan de Souza.

Com os melhores cumprimentos,

António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar, Presidente do Grupo Habitar, Investigador Principal com Habilitação do Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do LNEC

segunda-feira, julho 08, 2013

447 - Percurso, vivência e identidade nos edifícios multifamiliares- Infohabitar 447


Infohabitar, Ano IX, n.º 447
Artigo XXXIV da Série habitar e viver melhor

Leque de Espaços e elementos de percurso, vivência e identidade nos edifícios multifamiliares
António Baptista Coelho
A ideia, agora, é falar, um pouco, daqueles sítios e daqueles elementos de edifícios ou de expressivos agregados de habitações, ou, até, de habitações e de espaços  urbanos singulares e pormenorizados – e aqui já se subentende uma consideração diferenciada que nos poderá e devrá levar longe –, que podem (e devem) ser verdadeiros protagonistas em termos de: (i) expressão dos diversos espaços domésticos; (ii) marcação de relações bem caraterizadas entre zonas mais públicas e mais privadas, tendo em conta, designadamente, a evidenciação de aspetos de identidade e de apropriação natural e equilibrada seja do contexto de vizinhança específico, seja da presença do edifício/agregado de fogos, seja do caráter dos eventuais espaços comuns e/ou individuais/individualizados de entrada; e (iii) mesmo em termos de caracterização de soluções de habitação que aproveitem e explorem, ao máximo, uma aliança activa entre o enorme potencial de riqueza e diversidade de pormenorização urbana e os elementos responsáveis por uma caracterização residencial marcada, quer por um sentido doméstico amplo, quer pela identidade de cada habitação.
E nestas matérias, que acabaram, aqui, de ser apenas sinteticamente referidas, há todo um manancial de valorização dos respetivos espaços urbanos de vizinhança e de relacionamento citadino e paisagístico, que convirá abordar em textos específicos e ilustrados, pois desta ilustração decorrerá boa parte da capacidade de exemplicação de tais matérias; matérias estas que, repete-se, não fazem mais do que reforçar a ideia de que as baias tipológicas impostas e, por vezes, auto-impostas, não têm realmente qualquer sentido “básico”, em termos de estruturação dos edifícios habitacionais, sendo que, hoje em dia, com a expressiva diversificação de modos, necessidades e desejos de vida, a que se assiste, tais “modelos únicos” tipológicos são ainda mais anacrónicos.
Voltando ao tema deste título/item, que se refere a “um leque de pequenos espaços e elementos de percurso, vivência e identidade” integrados e integradores de edifícios ou de “complexos” ou agregados de habitações, importa sublinhar que há, realmente, alguns elementos urbanos, como as entradas, as escadas, as passagens, as janelas próximas do nível da rua, os muros, as floreiras e outros elementos de pormenor, que podem caracterizar, muito positivamente, as vizinhanças urbanas, tanto com um interessante cunho individual, como com um estimulante carácter orgânico e diversificado (nada monótono), quer, ainda, criando imagens locais de ruas, pracetas e outros espaços de vizinhança local, agradavelmente marcados por uma mistura de um sentido urbano e residencial “único”.

Fig. 01
E,  naturalmente, já bem integrados no edifício ou no “complexo” ou agregado de habitações há todo um conjunto de espaços “elementares”, que cumprem determinadas atribuições funcionais na estruturação e na “vida” desse edifício ou agregado de fogos, e que, simultaneamente,  podem e devem também participar nessa caracterização da respetiva vizinhança urbana, bem como na identidade e sentido urbano e residencial “único” que pode e deve ser marcado por esse edifício ou agregado de habitações.
E mesmo certos espaços e elementos privados e domésticos podem e devem também participar na caracterização dessa específica vizinhança urbana, bem como na identidade e sentido urbano e residencial “único” do respetivo edifício ou agregado de fogos.
Naturalmente que tudo isto muito complexifica a concepção de um edifício ou complexo muitifamiliar, aproximando-o, talvez e de certa maneira, da muito rica dimensão criativa que caracteriza o projeto de edifícios unifamiliares; uma perspetiva que se julga relativamente inovadora e que será interessante explorar em futuros textos.
E podemos talvez concluir que serão de certa forma todos estes espaços e elementos os verdadeiros autores da tipologia urbana e habitacional que aqui se aponta, sendo que talvez ao contrário do que poderá acontecer, frequentemente, com o unifamiliar, que acaba por respirar e se caraterizar, frequentemente, em diálogo com a paisagem natural, o multifamiliar tipologicamente adequado ganhará boa parte do seu caráter e da sua identidade tipológica da relação ou relações estabelecidas com a respetiva paisagem urbana: «fazendo cidade».
De uma forma não exaustiva serão os seguintes os principais espaços e elementos comuns que, nos edifícios multifamiliares, são os principais responsáveis pelo desenvolvimento de percursos e pelo apoio a um leque flexível de atividades comuns ou não privadas e, naturalmente, pela sua expressiva identidade e sentido de lugar/sítio de habitar e de vivência diária e aprofundada do respetivo espaço urbano (a ordem seguida é razoavelmente aleatória):
  • Entradas comuns
  • Átrios e outros espaços comuns interiores conviviais ou específicos
  • Elevadores
  • Escadas comuns
  • Patins de distribuição para habitações
  • Galerias interiores (corredores)
  • Galerias exteriores
  • Garagens e alpendres de estacionamento comum
  • Elementos “verdes”
  • Aspetos qualitativos gerais nos espaços comuns e respectiva pormenorização
  • Espaços exteriores comuns: (i) com expressiva vista pública; (ii) privatizados
  • Aspectos essenciais de conforto ambiental e de bem-estar nos espaços comuns
  • Entradas privadas ou com sentido privado
  • Espaços edificados privados com expressiva vista pública
  • Espaços exteriores privados com expressiva vista pública
  • Garagens e alpendres de estacionamento privado com expressiva vista pública
  • Outros espaços de atividade
  • Elementos de remate e enquadramento
  • Aspetos de marcação e de pré-marcação das entradas e da proximidade do edifício(agregação de fogos)
  • Equipamentos conviviais integrados
  • ... Outros espaços e elementos


Fig.02
Desde já se salienta haver aspectos fundamentais numa qualificação humana e arquitectónica dos espaços comuns residenciais que não são, infelizmente, considerados na sua vital importância e nestes aspectos assume uma importância fundamental a possibilidade de se ter luz natural pois, afinal, tal como refere o Arq. Ch. Labbé “quando se sai do elevador e há luz natural, pode-se conversar, e favorece-se a convivialidade pela qualidade do espaço que se desenvolve.” (1)
Não foi por acaso que se referiu este aspeto, que tão ligado está a muitos outros aspetos de bom e intenso uso dos espaços e ambientes comuns do habitar; e a luz natural não está sozinha num leque fundamental de qualidades residenciais nesses espaços comuns ainda muito pouco consideradas no projeto e (re)projeto de tais espaços.
Importa, para concluir esta apresentação geral do que se considerou poder-se designar de “leque de pequenos espaços e elementos de percurso, vivência e de identidade nos edifícios” multifamiliares, registar que todos eles terão um dado conjunto de aspetos práticos a facilitar, conjunto este que poderá/deverá ter algum potencial de adaptabilidade, mas terão, igualmente, uma dada presença formal e espacial que, julga-se, não deverá delimitar-se a aspetos funcionais, mas que terá de considerar uma essencial adequação a diversos modos, desejos e gostos habitacionais e microurbanos, sendo que estes serão, em grande parte, desconhecidos de quem concebe tais espaços e elementos; uma matéria que, tal como outras, nos pode e deve levar longe em outros textos.

Fig.03
Finalmente e para concluir esta pequena apresentação geral relativa ao “leque de espaços e elementos de percurso, vivência e identidade nos edifícios” multifamiliares, importa sublinhar que este leque pode ser mínimo, e pode mesmo dizer-se que, por regra, e porque os edifícios multifamiliares podem e devem ser muito aproximados à escala e uso humanos, sendo pequenos nas suas dimensões gerais e reduzidos nos números de habitações agregadas, tais leques espaciais e elementares podem caraterizar-se por expressiva sobriedade e racionalidade, podendo, no limite, marcar, por exemplo, a imagem da porta de entrada e os vãos exteriores da escada de um pequeno prédio com seis habitações em três pisos, ou uma imagem equilibradamente comum de um agregado de habitações com acessos privados - e justifica-se aqui o uso do termo “equilibradamente”, pois neste caso, os habitantes desejam, frequentemente, que haja uma expressão reforçada da identidade de cada habitação e não da referida presença comum.
Em futuros artigos desta série iremos falar com algum pormenor de boa parte destes espaços e elementos, proporcionando-se algumas indicações e alguns exemplos de tais soluções, que se julga serem directamente responsáveis pelo bem-viver em soluções multifamiliares.

Notas:
(1) Monique Eleb, Anne Marie Chatelet, "Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui", 1997, p.85.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.


Editor: António Baptista Coelho abc@lnec.pt
INFOHABITAR Ano IX, nº447
Leque de Espaços e elementos de percurso, vivência e identidade nos edifícios multifamiliares
Edição de José Baptista Coelho
LNEC-Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) e
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte

segunda-feira, julho 01, 2013

446 - A emergência da dimensão existencial nas cidades - Uma proposta a partir do Centro Histórico de Évora- Infohabitar 446

Infohabitar 446 

É sempre com uma satisfação muito especial que a Infohabitar e a sua edição dão as boas-vindas a um novo autor nas/das nossas páginas; fazemos assim esta brevíssima introdução a um excelente artigo da colega Susana Mourão, um artigo que conjuga e muito bem diversas áreas de conhecimento e de intervenção, que desenvolve uma reflexão, hoje em dia, muito oportuna relativa às temáticas da reabilitação/regeneração urbana e do viver a habitação de cada um (a tal que é ou pode ser uma segunda pele), e o habitar (que é também a vizinhança e o quadro urbano de integração) e a cidade de todos nós e nosso património.
Este artigo introduz, também, uma inovação na Infohabitar, com as ligações a alguns pequenos filmes em que a referida autora teve a colaboração da colega Marta Galvão Lucas.

Deseja-se uma boa leitura e espera-se que este seja o princípio de uma longa colaboração da Susana Mourão na Infohabitar.


António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar

A emergência da dimensão existencial nas cidades - Uma proposta a partir do Centro Histórico de Évora


Susana Mourão

Socióloga, Pós-graduada em Design Urbano pelo Centro Português Design e Universidade Barcelona; Técnica Superior na Câmara Municipal de Évora
susmourao@gmail.com
Évora, Portugal

Nota Biográfica

Licenciada em Sociologia (1994l2000); Pósgraduada em Design Urbano pelo Centro Português Design e Universidade Barcelona (2002). Socióloga na Câmara Municipal de Évora desde 1998, tendo colaborado no Plano Estratégico Cultural do Concelho de Évora 1998l 2000, em 2001l2002 integra o Departamento Centro Histórico de Évora, Património e Cultura, na gestão de processos de reabilitação de edifícios, em 2009 colaborou no Plano de Gestão Centro Histórico de Évora, desde 2010, Coordena o Plano Local de Habitação e Reabilitação Urbana para o Concelho de Évora.

Desde 1999 trabalha em video para a produção de documentos em investigação social, nomeadamente em torno das questões do lugar. Em 1999 “Todos os Nomes menos Nacionalismo”, 2007 “Imagens ]ex[clusivas”, 2012 “Participação com rosto” em pós-produção. Desde 2005 com a colaboração de Marta Galvão Lucas, tem realizado práticas documentadas em video, sobre os moradores e a reabilitação das suas casas, no Centro Histórico de Évora. Em 2012 terminou “Henriqueta, uma cartografia íntima 2008l2012” que foi apresentada no Festival Escrita na Paisagem:

http://www.escritanapaisagem.net/event/27

Resumo

O Centro Histórico de Évora é Património Mundial desde 1986, pelo seu conjunto de valor patrimonial que é um elemento primordial de estruturação, caracterização, e identificação da cidade de Évora. Para a Salvaguarda e Valorização Patrimonial do Centro Histórico de Évora foi desenvolvida uma política de preservação do seu carácter patrimonial e dos elementos que constituem a sua imagem adaptando-os à vida contemporânea, e todas as intervenções são condicionadas ao seu valor patrimonial e ao seu espaço envolvente. Neste sentido, com a Classificação de Património Mundial e a sua respectiva política de Salvaguarda e Valorização Patrimonial, podemos afirmar, que o Centro Histórico de Évora de um lugar de vocação Patrimonial.

Mas, o carácter do Centro Histórico de Évora vai além da sua “imagem” patrimonial ou dos elementos patrimoniais que o constituem, ele é um lugar do dia-a-dia da vida humana, sendo o seu espaço preenchido pelo sentido humano de habitar. Por isso, o carácter deste lugar é significativo e não apenas uma imagem para quem o habita. Assim, sendo o Centro Histórico de Évora um lugar habitado, a sua política de Salvaguarda e Valorização Patrimonial está distante de quem o habita, sendo emergente a sua dimensão existencial.

Palavras-chave

O lugar de vocação patrimonial e o lugar existencial


O lugar de vocação patrimonial

O Centro Histórico de Évora foi classificado como Património Mundial da Humanidade, pela UNESCO em 1986. Esta classificação é delimitada pela muralha "Vauban" construída no século XVII e no seu interior encontra-se a "cidade-museu” (i), que contém 20 séculos de história dos povos e civilizações que habitaram em Évora. O Centro Histórico de Évora "é o melhor exemplo de cidade da idade de ouro portuguesa após a destruição de Lisboa no terramoto de 1755" (ii) e "só a paisagem urbana de Évora permite actualmente compreender a influência exercida pela arquitectura portuguesa no Brasil, em sítios como Salvador da Baía (inscrito em 1985 na lista de Património Mundial)" (iii). Este lugar único com 20 séculos de história, desde a sua romanização “Liberalitas Júlia” que conserva a partir de uma ruína o Templo de Diana. Quanto ao visigótico, a cidade cristã ocupou o espaço amuralhado romano, que sob o domínio muçulmano foi aperfeiçoado o seu sistema defensivo, tendo como vestígio uma porta fortificada e restos da Medina. Quanto à época medieval, temos a Sé Catedral que iniciou em 1186 e concluída no século XIV. Com a idade do Ouro, constroem-se conventos como em 1452 Convento de Santa Clara, 1480 a Igreja Real e o Convento de S. Francisco, 1470 Convento dos Lóios com a Igreja Evangelista em 1485. Com o estilo Manuelino destacam-se o Palácio dos Condes de Basto, a Igreja Santo Antão, de Santa Helena do Monte de Calvário, etc. No século XVI o Aqueduto da Água de Prata e as suas fontes, como a Praça do Giraldo. Em 1553, Évora afirma a sua influência intelectual e religiosa através da Universidade do Espírito Santo, que desempenha o papel análogo à Universidade de Coimbra.

Para além do património monumental, o Centro Histórico de Évora tem uma arquitectura menor de casas térreas, brancas de cal, cobertas de telhas ou terraços, que se situem nas ruas estreitas que definem a estrutura medieval e o crescimento concêntrico do Centro Histórico, dos séculos XVI, XVII e XVIII.

Com a classificação do Centro Histórico de Évora, como Património Mundial, foi o reconhecimento da sua Vocação Patrimonial (iv). Neste sentido, foi desenvolvida uma política de Salvaguarda e Valorização do Centro Histórico, através do Plano de Urbanização, da responsabilidade da Câmara Municipal de Évora. No Plano de Urbanização de Évora, o Centro Histórico é identificado como "um grande conjunto de valor patrimonial" sendo "um elemento primordial de estruturação, caracterização e identificação da cidade de Évora".(v)

A Vocação Patrimonial deste conjunto, não é identificado como "Cidade-Museu" mas sim, "A Cidade Intramuros" (vi) que é delimitada pela “área envolvente, a norte e poente, e pela cerca medieval e, a sul e a nascente, pela muralha do Século XVII/XVIII, coincidindo com o espaço classificado Património Mundial da Unesco em 26 de Novembro de 1986 e considerado o melhor exemplo de cidade da idade de ouro portuguesa pelo ICOMOS. Inclui 35 imóveis classificados por decreto, entre 190 elementos de valor patrimonial.” (vii) O Centro Histórico de Évora é um lugar de 104 hectares, delimitado pela muralha "Vauban" construída no século XVII, que contém edifícios classificados como monumentos nacionais e de elementos de valor patrimonial. Sem dúvida, que o Plano de Urbanização de Évora reforça a vocação patrimonial do Centro Histórico.

Para além da sua Vocação Patrimonial, a Cidade Intramuros "deverá manter a sua plurifuncionalidade com a presença da habitação, do terciário, equipamento, comércio e serviço, hotelaria e indústria artesanal” (viii) e todas as "obras relativas a edificações deverão procurar compatibilizar uma atitude de salvaguarda e valorização do património com o objectivo de dotar todos os edifícios de boas condições de habitabilidade” (ix).

Com esta recomendação, o Plano de Urbanização de Évora propõe as grandes funções urbanas do Centro Histórico (plurifuncionalidade), como habitar, trabalhar, passear, etc. e todas as intervenções no edificado deverão Salvaguardar e Valorizar o seu Património. Por “Património” entende "todos os espaços, conjuntos, edifícios ou elementos pontuais cujas características morfológicas, ambientais ou arquitectónicas se pretende preservar e como tal sejam identificados" (x) e deverão "ser salvaguardados e valorizados em todas as intervenções a efectuar na cidade" (xi) isto é, a Salvaguarda e Valorização Patrimonial consiste na “preservação do carácter e dos elementos determinantes que constituem a sua imagem adaptando-os à vida contemporânea” (xii) sendo todas as intervenções condicionadas "em função do património, das transformações do seu espaço envolvente".(xiii)

Este conjunto de grande valor patrimonial, onde estão inseridos 35 imóveis classificados e 190 elementos de valor patrimonial, todas as intervenções estão condicionadas à sua função patrimonial, através da preservação das características morfológicas, ambientais e arquitectónicas, isto é, valorizar e salvaguardar o seu carácter (xiv) visual. A preservação das características morfológicas, ambientais e arquitectónicas são de acordo com a classificação dos edifícios e das fachadas. Os edifícios são classificados como Monumentos Nacionais e de valor patrimonial E1, E2 e E3. Quanto aos Monumentos Nacionais apenas poderão ser objecto de “obras de conservação, restauro e eventualmente de reabilitação” (xv), os edifícios com valor patrimonial E1 e E2 apenas serão objecto de “obras de conservação, restauro e reabilitação, com preservação integral da fachada” (xvi), os edifícios com valor patrimonial E3 apenas serão objecto de “obras de conservação, restauro e reabilitação que poderão estender-se à fachada” (xvii).

Assim, os projectos de intervenção deverão cumprir os objectivos gerais de defesa do património, mesmo quando se trate de dotar um edifício de condições mínimas de habitabilidade, isto é, alterar um edifício para dotar de iluminação e ventilação natural ou ampliar o edifício para ter uma dimensão mínima de habitabilidade como um T0, conforme o Regime Geral de Urbanização Urbana, a solução projectada não poderá contrariar as razões que determinaram a classificação do edifício. Por outro lado, caso sejam encontrados elementos arquitectónicos que valorizem o edifício, as regras anteriores não se aplicam.

Para além dos edifícios classificados, também são objecto de salvaguarda e valorização as fachadas de valor patrimonial, sendo classificadas de F1 e F2. As fachadas classificadas de F1 deverão ser preservadas e as F2 poderão sofrer alterações controladas, mas não podem perder o traçado anterior ou o seu perfil de conjunto. Quando às fachadas classificadas que estejam em ruína recomenda-se a sua demolição e consequente reconstrução de acordo com as características da fachada, através de um projecto rigoroso do existente e respectiva documentação fotográfica.

Para além do edificado, existem zonas verdes de valor patrimonial que deverão ser preservadas com as características da época ou épocas de construção. Contudo, todo o Centro Histórico deverá ter acompanhamento histórico/arqueológico nas intervenções no subsolo e nas estruturas dos edifícios, pois caso se verifique a descoberta de elementos patrimoniais arquitectónicos ou achados arqueológicos, o Município de Évora poderá suspender as intervenções, para o respectivo estudo, identificação e registo dos elementos encontrados. Só após o estudo, identificação e registo dos elementos poderão prosseguir as intervenções.

Também existem elementos de valor patrimonial com classificação por P que deverão ser conservados e valorizados, tais como, chaminés, platibandas, reixas, grades de ferro decoradas em varandas, açoteias, mirantes e contramirantes.

Resumindo, todas as intervenções no Centro Histórico de Évora seguem um projecto de arquitectura rigorosamente condicionado às questões patrimoniais, segundo a política de Salvaguarda e Valorização Patrimonial que corresponde à preservação das características morfológicas, ambientais e arquitectónicas dos edifícios.

Neste sentido, a salvaguarda e valorização do Centro Histórico de Évora pretende criar uma “ideia de permanência” como tentativa de superar a acção do tempo, através de uma política de reabilitação (manutenção, da conservação, da restauração, da reabilitação ou das reconstruções) do seu património. Estas acções de intervenção no seu património arquitectónico revestem-se em torno de um “culto patrimonial”, através da preservação do carácter visual dos seus edifícios adaptando-os à vida contemporânea. Por outro lado, está associada a "ideia de continuidade" do património, para evitar rupturas ou perda de valores patrimoniais. Neste sentido, o Plano de Urbanização de Évora apresenta uma classificação de valores patrimoniais segundo várias categorias: edifícios que são monumentos nacionais e edifícios de valor patrimonial (E1, E2, E3), fachadas de valor patrimonial (F1,F2) etc. Associadas a estas ideias de permanência e continuidade, está subjacente a "ideia de conhecimento" como a mensagem histórica "verdadeira" através dos valores patrimoniais, como o ano de construção, o autor, etc. Segundo as ideias de “permanência, continuidade e conhecimento" do culto patrimonial, a preservação da imagem do Centro Histórico de Évora, é como um “espelho no qual nós, os membros das sociedades humanas do século XX, contemplaríamos a nossa imagem” (xviii). À luz destas ideias, vamos apresentar um projecto de reabilitação de um edifício no Centro Histórico de Évora, segundo a sua política de Salvaguarda e Valorização Patrimonial.

Em 2006, o edifício situado na Rua do Cano 75, está em mau estado de conservação e não tem condições de habitabilidade: não tem casa de banho, não tem condições de higiene e salubridade mínimas, sendo necessária uma intervenção profunda.

O edifício está inserido em zona de protecção contígua ao Monumento Nacional "Aqueduto da Água de Prata" e a sua fachada é Classificada de F1, sendo que deverá ser preservada. Apesar de ter 2 pisos, edifício é de influência rural, com 70 m2, ocupando um lote de 3,5 m de largura e 10 m de comprimento. A fachada tem poucas aberturas, apenas a porta de entrada e uma janela no 1º piso, sendo marcante a chaminé alta situada à face da rua, sem elementos decorativos.

O projecto de arquitectura direcciona-se na criação de um saguão para a criação de luz natural e ventilação do edifício, para a construção de uma casa de banho e de uma cozinha, e alterou a escada de acesso ao piso 1. Neste sentido, propõe manter a estrutura do edifício, e propõe adaptar a cobertura de forma a criar o saguão e melhorar as condições de isolamento térmico, conservando o tipo de telha existente e com particular preocupação com a inclusão de rulos e caleiras. Quanto à fachada é mantida na sua essência, mas propõe a construção uma janela no piso 0, idêntica à existente no piso 1.

existente .... proposta




Figura 1 – Plantas com o existente e proposta de reabilitação da Rua do Cano 75, em Évora
Fonte: Arquitecto Pedro Marques, autor do projecto

No interior do edifício mantêm-se os arcos de suporte da estrutura à vista, e as paredes serão revestidas a gesso cartonado com isolamento. A nova escada será em estrutura metálica e forrada a madeira. Os pavimentos serão substituídos por mosaico no piso 0 e no piso 1 será de madeira flutuante. As canalizações serão construídas assim como os esgotos, e a instalação eléctrica será alterada. Com esta intervenção, pretende-se ao nível do piso 0 as áreas comuns, sala e cozinha e arrumo, ao nível do piso 1 a área privativa, o quarto, a casa de banho e um pequeno espaço multifuncional.

Ao longo deste projecto de arquitectura verificamos que se pretende preservar o carácter patrimonial, ao mesmo tempo, que propõe a adaptação deste edifício à vida contemporânea da função habitar. Resumindo, este projecto tem como ponto de partida um espaço “vazio” (figura 1: existente) para projectar uma habitação condicionada pelo carácter visual do património arquitectónico (figura 1: proposto), isto é, “o culto patrimonial”.

A descoberta da dimensão existencial

Este edifício está inserido no Centro Histórico de Évora que é, sem dúvida, um centro urbano único, pela sua beleza, homogeneidade e dimensão, e pelo valor do seu património cultural e arquitectónico, mas entre os 35 imóveis classificados por decreto e 190 elementos de valor patrimonial, nomeadamente na "arquitectura menor, dos sécs. XVI, XVII e XVIII que se exprime globalmente num conjunto de casas térreas, brancas de cal, cobertas de telhas ou terraços, apertadas ao longo de ruas estreitas que seguem a estrutura medieval no núcleo antigo e ilustram o crescimento concêntrico até séc. XVII" (xix) habitam pessoas. Em 2011, a "cidade intramuros" tem 4326 (xx) alojamentos, dos quais 2426 (xxi) são alojamentos de residência habitual, isto é, 56% dos alojamentos são habitados, mas habitar, não é de lógica matemática ou quantitativa de concretizar uma das multifuncionalidades do Centro Histórico de Évora: a habitação.

Habitar implica preencher um espaço pelo sentido humano, e neste sentido, um espaço não é “vazio” mas sim “extensivo” e o seu carácter não é apenas uma imagem, mas sim, um carácter significativo pelos seus habitantes. Assim, este lugar habitado, o Centro Histórico de Évora é fenómeno do dia-a-dia da vida humana, e o seu espaço e o seu carácter não podem ser reduzidos à sua estrutura física, isto é, às suas características morfológicas, ambientais e arquitectónicas, mas como, a sua estrutura física se relaciona com a estrutura psicológica de quem o habita enquanto envolvente significativa. (xxii)

Neste sentido, vamos partir novamente do projecto de reabilitação do edifício situado na Rua do Cano 75, que sumariamente sabemos a sua localização, as condicionantes patrimoniais, o mau estado de conservação e as más condições de habitabilidade. Para além disto, o espaço deste edifício apresenta-se como “vazio”, e a partir deste espaço “vazio” projecta-se um desenho rigoroso condicionado às questões patrimoniais e às condições contemporâneas da função habitar. Mas este espaço apresentado como “vazio” no projecto de arquitectura está cheio de "coisas" como móveis, roupas, utensílios e objectos.


Vídeo 1 – uma casa cheia de “coisas”
http://vimeo.com/68550730
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

Nesta casa, em 5 de Junho de 1931 nasceu Henriqueta Vieira Santos. Desde o dia do seu nascimento, Henriqueta vive nesta casa. Em 2007, com 77 anos de idade, ela vai mudar-se pela primeira vez da casa onde nasceu e sempre viveu, porque, como sabemos pelo projecto de arquitectura, a sua casa não tem condições de habitabilidade e vai ter obras de reabilitação profunda, conforme o projecto apresentado.

A sua casa está cheia de “coisas” como móveis, de roupas, de utensílios e de objectos. O espaço desta casa não é “vazio”, mas sim “extensivo”, preenchido pelo sentido humano de Henriqueta. Em cada móvel, Henriqueta recorda pessoas e momentos da sua vida. Abrem-se gavetas e portas e encontramos “coisas” como roupa, utensílios e objectos que são antropomórficos (xxiii). A estrutura deste lugar não é apenas de ordem funcional e quantitativa pelo acumular de “coisas” como móveis, roupas, utensílios e objectos. A estrutura deste lugar é de ordem simbólica e qualitativa que revelam o carácter personalizado de Henriqueta, porque apenas ela se orienta e se identifica neste lugar. (xxiv) Assim, este edifício na Rua do Cano 75 em Évora, que está em mau estado de conservação e não tem condições de habitabilidade, que está inserido na zona de protecção ao Monumento Nacional “Aqueduto da Água de Prata” com fachada classificada F1, que deverá ser preservada, é um edifício habitado, que protegeu e foi protegido por Henriqueta. Ela tem que seleccionar e empacotar as suas “coisas”, os seus móveis, as suas roupas, os seus utensílios e os seus objectos, para levar para a habitação temporária. É difícil … através de Henriqueta, as suas “coisas” como os seus móveis, as suas roupas, os seus utensílios e os seus objectos, descobrimos a dimensão existencial deste lugar. (xxv)


Vídeo 2 - A descoberta da dimensão existencial
http://vimeo.com/68640949
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

Ao seleccionar e empacotar as suas “coisas” como os móveis, utensílios, roupas e objectos a levar para a "habitação" temporária, Henriqueta lembra, refaz, reconstrói e repensa a sua vida. Ela é idosa e não sabe se um dia vai regressar à sua "casa". Apesar do mau estado de conservação e da falta de condições de habitabilidade do edifício na Rua do Cano 75, esta casa foi um lugar estável na vida de Henriqueta desde que nasceu até hoje. Ela recorda os momentos passados na sua casa, através das suas “coisas”, dos seus móveis, das suas roupas, dos seus utensílios e dos seus objectos, que são verdadeiros lugares da sua dimensão existencial (xxvi), sendo a sua casa o equivalente simbólico ao corpo de Henriqueta. (xxvii)

Ela ao recordar a sua vida através das suas “coisas”, dos seus móveis, das suas roupas, dos seus utensílios e dos seus objectos, ela fica triste, ansiosa, melancólica, desorientada… o lugar estável que sempre cuidou, se orientou e identificou vai desaparecer. Este comportamento físico revela sentimentos de perda que são equivalentes ao sentimento de luto. A perda do lugar, onde Henriqueta nasceu e sempre viveu, fragiliza a sua “estabilidade existencial” e com ela a sua “estabilidade emocional”. (xxviii) Neste sentido, ela necessita de apoio psicossocial que é essencial para a sua “estabilidade existencial”. Este apoio é ao nível emocional, que começa pela tentativa de criar uma “estabilidade de lugar” na habitação temporária através da selecção das suas “coisas”, dos seus móveis, das suas roupas, dos seus utensílios e dos seus objectos com os quais Henriqueta tem uma ligação emocional muito forte.


Vídeo 3 – Os primeiros objectos da mudança para a habitação temporária
http://vimeo.com/68554733
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12


Após a mudança para a habitação temporária, a casa fica vazia, isto é, este lugar protegido já não tem as “coisas”, os móveis, as roupas, os utensílios nem os objectos, este lugar apenas existe na memória de Henriqueta. Ela nunca viu nem sentiu a sua casa vazia. Ela sabe que a sua casa vai ser demolida. Ela precisa de se despedir. Ela precisa de tempo e de espaço existencial (xxix), pois não se orienta e não se identifica no espaço, apenas se orienta e se identifica através da memória daquele lugar, agora vazio.


Vídeo 4 – A despedida da casa
http://vimeo.com/68844274
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

Enquanto projecto, é necessário transmitir à Henriqueta uma ideia de futuro, quanto à reabilitação da sua casa, para ela começar a ter uma imagem mental do futuro da sua casa, in loco.


Vídeo 5 – A casa no futuro
http://vimeo.com/68556997
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

O realojamento temporário é próximo da sua casa em reabilitação. Para o apoio psicossocial, esta proximidade permite que a moradora mantenha as suas relações de vizinhança, mantendo de certa forma a sua “estabilidade social”, ao mesmo tempo que acompanha o processo de reabilitação da sua casa. Manter esta ligação com a reabilitação da sua casa é essencial, porque reabilitar é sinónimo de habitar (xxx).


Vídeo 6 – Visita à obra
http://vimeo.com/68642524
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

Em 2012, Henriqueta regressa e reabita a sua "casa" e trouxe as suas “coisas”, os seus móveis, as suas roupas, os seus utensílios e os seus objectos, que a acompanharam durante o processo de reabilitação da sua “casa”.

Henriqueta também comprou “coisas” novas, como móveis, roupas, utensílios e objectos. A sua “casa” ficou com novas funcionalidades como uma cozinha nova com equipamento fixo, uma casa de banho completa, um roupeiro novo e ela comprou “coisas” novas para as novas funções e uso do dia a dia.

Por outro lado, deitaram fora as suas “coisas”, os seus móveis, as suas roupas, os seus utensílios e os seus objectos que perderam a sua função e o seu uso, como o lavatório de ferro, o toalheiro improvisado, um armário de apoio à casa de banho improvisada, uma estrutura de pendurar panelas, uma meia porta de entrada, um tapete na parede, etc.

Após 6 meses da mudança definitiva, para a sua Casa na Rua do Cano 75, Henriqueta fala da sua vivência. A idosa está em adaptação às novas funções da sua casa. Ela fala das suas “coisas”, dos seus móveis, dos seus utensílios, das suas roupas e dos seus objectos que não fazem parte da sua “casa” reabilitada. Com 81 anos, Henriqueta todos os dias recorda histórias passadas na sua casa. Ela recorda estas histórias passadas da sua vida porque deixou de ver as suas “coisas”, os seus móveis, as suas roupas, os seus utensílios e os seus objectos que foram deitados fora. Ela sente falta. Por isso, podemos deitar fora as “coisas” como os móveis, as roupas, os utensílios e os objectos que perderam a sua função e o seu uso, mas não perderam a sua função emocional, de recordar, de viver, de sentir a sua dimensão existencial. Assim, o apoio psicossocial através de um processo de reabilitação emocional foi essencial para o acompanhamento do projecto de reabilitação deste edifício, porque permitiu a descoberta da dimensão existencial deste lugar.


Vídeo 7 – Reabitar a casa
http://vimeo.com/68858065
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

Conclusão

Após a análise, da política de Salvaguarda e Valorização do Centro Histórico de Évora, e a sua implementação através do rigor de um projecto de reabilitação de um edifício, condicionado às questões patrimoniais, podemos afirmar, que esta competência de reabilitação apoia-se num planeamento prospectivo que parte do seu património físico e projecta a preservação da sua imagem para o futuro, e esquece a sua dimensão existencial, isto é, o modo como se vive e como se sente no Centro Histórico de Évora.

Assim, é necessário que esta política de salvaguarda e valorização patrimonial ultrapasse este impasse de “culto patrimonial” que está distante do fenómeno do dia a dia da vida humana: o Centro Histórico de Évora é um lugar habitado.

Enquanto lugar habitado, o Centro Histórico de Évora não é um espaço “vazio” e com um carácter meramente visual, mas sim um espaço preenchido pelo sentido humano e revela um carácter significativo por quem o habita. Para tentar sair deste “culto”, temos que tentar olhar o corpo patrimonial do Centro Histórico de Évora como equivalente simbólico ao corpo humano, e reabilitar este corpo patrimonial é sinónimo de reabilitar o corpo de quem o habita. Assim, a partir desta experiência no Centro Histórico de Évora propõe-se a emergência da dimensão existencial nas cidades, porque “as cidades actuais vivem em função de um passado, presente e futuro através do seu planeamento prospectivo. Este planeamento prospectivo é fruto de uma cultura tecnológica, que valoriza o tempo futuro e operatório das mudanças nas cidades, e esquece o tempo existencial de como as cidades vivem e sentem o seu tempo.” (xxxi)


NOTAS:

(i) Declaração de Valor do Centro Histórico de Évora, UNESCO 1986, para consulta em: www.cmevora.pt/pt/conteudos/areas%20tematicas/centro%20historico/Patrim%c3%b3nio%20da%20Humanidade.htm

(ii) Declaração de Valor do Centro Histórico de Évora, UNESCO 1986

(iii) Declaração de Valor do Centro Histórico de Évora, UNESCO 1986

(iv) “The Basic act of architecture is therefore to understand the “vocation” of the place” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 23

(v) Plano de Urbanização de Évora, artº8, nº1, para consulta em:

http://www.cm-evora.pt/NR/rdonlyres/000111bb/hraqqnkjwlnqivbxvuttbevkqypkpdev/PlanodeUrbanizacao.pdf

(vi) Plano Urbanização de Évora, Capítulo III

(vii) Plano Urbanização de Évora, artº8, nº1

(viii) Plano Urbanização de Évora, artº62

(ix) Plano Urbanização de Évora, artº66, nº1

(x) Plano Urbanização de Évora, artº5, nº1

(xi) Plano Urbanização de Évora, artº7, nº1

(xii) Plano Urbanização de Évora, artº7, nº2, a)

(xiii) Plano Urbanização de Évora, artº7, nº2, b)

(xiv) “Character” is at the same time a more general and a more concrete concept than “space”. On the one hand it denotes a general comprehensive atmosphere, and on the other the concrete form and substance of the space-defining elements…We have pointed out that different actions demand places with a different character. A dwelling has to be “protective”, an office “practical”, a ball-room “festive” and a church “solemn”. When we visit a foreign city, we are usually struck by its particular character, which becomes an important part of the experience…In general we have to emphasize that all places have a character, and that character is the mode in which the world is “given.” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 14

(xv) Plano Urbanização de Évora, artº13

(xvi) Plano Urbanização de Évora, artº14, nº1

(xvii) Plano Urbanização de Évora, artº14, nº2

(xviii) “Por outras palavras, a observação e o tratamento selectivo dos bens patrimoniais não contribuiria para fundar uma identidade cultural dinamicamente assumida. Eles tenderiam a ser substituídos pela autocontemplação passiva e o culto de uma identidade genérica. Ter-se-ía reconhecido aí a marca do narcisismo. O património teria assim perdido a sua função construtiva em benefício de uma função defensiva que asseguraria o recolhimento de uma identidade ameaçada” in, Choay, Frabçoise, A Alegoria do Património, 2000: 212

(xix) Declaração de Valor do Centro Histórico de Évora, UNESCO 1986, para consulta em: www.cmevora.pt/pt/conteudos/areas%20tematicas/centro%20historico/Patrim%c3%b3nio%20da%20Humanidade.htm

(xx) Censos 2011, Instituto Nacional de Estatística

(xxi) Censos 2011, Instituto Nacional de Estatística

(xxii) “Man dwells wen he can orientate himself within and identify himself with an environment, or, in short, when he experiences the environment as meaningful” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 5

(xxiii) “Seres e objectos estão aliás ligados, extraindo os objectos de tal conluio uma densidade, um valor afectivo que se convencionou chamar a sua “presença”. Aquilo que faz a profundidade das casas de infância, sua pregnância na lembrança, é evidentemente esta estrutura complexa de interioridade onde os objectos despenteiam diante de nossos olhos os limites de uma configuração simbólica chamada residência. A cesura entre o interior e o exterior, sua oposição formal sob o signo social da propriedade e sob o signo psicológico da imanência da família faz deste espaço tradicional uma transparência fechada. Antropomórficos, estes deuses domésticos, que são objectos, se fazem, encarnando no espaço os laços afectivos da permanência do grupo, docemente imortais até que uma geração moderna os afaste ou os disperse ou às vezes os reinstaure em uma actualidade nostálgica de velhos objectos”in Baudrillard, Jean “O sistemas dos objectos”, 2002: 22

(xxiv) “When man dwells, he his simultaneously located in space and exposed to a certain environmental character. The Two psychological functions involved, may be called “orientation” and “identification.” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 19

(xxv) “we have used the word “dwelling” to indicate the total man-place relationship. To understand more fully what this word implies, it is useful to return to the distinction between “space” and “character”. When man dwells, he is simultaneously located in space and exposed to certain environmental character. The two psychological functions involved, may be called “orientation” and “identification”. To gain en existential foothold man has to be able to orientate himself; he has to know where he is. But he also has to identify him self with the environment, that is, he has to know how he is a certain place.” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 19

(xxvi) “…the things themselves are the places, and do not only “belong” to a place” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 176

(xxvii) “Os objectos têm assim - os móveis especialmente - além de sua função prática, uma função primordial de vaso, que pertence ao imaginário e a que corresponde a sua receptividade psicológica. São portanto o reflexo de toda uma visão do mundo onde cada ser é concebido como um “vaso de interioridade” e as relações como correlações transcendentes das substâncias – sendo a própria casa o equivalente simbólico do corpo humano, cujo poderoso esquema orgânico se generaliza em seguida em um esquema ideal de integração das estruturas sociais.” in Baudrillard, Jean “O sistemas dos objectos”, 2002: 34

(xxviii) Mourão, Susana, Do projecto de reabilitação de edifícios habitacionais ao projecto de reabilitação emocional - REHABITA, in actas do 2º Congresso Internacional da Habitação em Espaço Lusófono, 2013

(xxix) “Contudo, ter substituído a questão do património na perspectiva antropológica que é a sua, não coloca mais isso por à nosso disposição os meios de reapropriação da competência de edificar, que dizer, de empreender a travessia concreta e prática do espelho patrimonial, que resta agora evocar. Esta travessia não pode ser tentada senão através da mediação do nosso corpo. Ela passa, precisamente, por um corpo a corpo, o corpo humano com o corpo patrimonial. Ao primeiro, cabe mobilizar e recolocar em alerta todos os sentidos, restabelecer a autoridade do toque, da cinestesia, da cinética, da audição e do próprio odor e recusar, conjuntamente, a hegemonia do olhar e as seduções da imagem fotográfica ou numérica. Ao segundo, incumbiria um papel propedêutico: fazer aprender ou reaprender as três dimensões do espaço humano, as suas escalas, a sua articulação, a sua contextualização, na duração das travessias, de voltas e percursos comparáveis aos par couer (de cor) da memória orgânica, doravante negligenciados pela instituição escolar e que permitiam aos académicos de outrora que se apropriassem do seu património literário.” in Choay, Françoise, A Alegoria do Património, Edições 70, 2000: 224

(xxx) Segundo Heidegger, “construir é, em seu ser, fazer habitar. Realizar o ser do construir é edificar lugares mediante a agregação de seus espaços. Só quando podemos habitar é que podemos construir”in Choay, Françoise, O Urbanismo, Utopias e realidades, Uma Antologia, 2005: 348

(xxxi) Mourão, Susana e Lucas, Marta in http://www.escritanapaisagem.net/event/27


Notas editoriais:

(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.




Editor: António Baptista Coelho abc@lnec.pt
INFOHABITAR Ano IX, nº446
A emergência da dimensão existencial nas cidades - Uma proposta a partir do Centro Histórico de Évora
Edição de José Baptista Coelho
LNEC-Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) e

Lisboa, Encarnação - Olivais Norte