segunda-feira, julho 07, 2014

490 - ARQUITECTURA COM TERRA I - Infohabitar 490

Infohabitar, Ano X, n.º 490

ARQUITECTURA COM TERRA

Experiências do fazer - I

por
ARESTA, Marco; GIULIA, Scialpi



Na presente edição da Infohabitar apresentamos a primeira parte de um artigo de Marco Aresta e Scialpi Giulia, que aborda uma interessante experiência de "Arquitectura com terra: Experiências do fazer", sob uma perspetiva prática, mas também participativa.
Salienta-se que um dos autores do artigo, o colega Marco Aresta, editou há muito pouco tempo, um livro sobre estas temáticas, intitulado "Arquitectura Biológica - La vivienda como organismo vivo", de que se dá notícia, já de seguida, seja através de uma pequena síntese editorial, seja através de uma imagem da respetiva capa.

"Arquitectura Biológica - La vivienda como organismo vivo"
Editorial: Diseño Editorial
(síntese editorial, retirada da divulgação do livro)
"Dentro del complejo saber de la naturaleza y del intricado universo del ser humano, este libro deja como reto la búsqueda de un equilibrio entre nuestras acciones y el entorno que habitamos para garantizar la armonía en el planeta que compartimos. Pero principalmente este libro lanza el desafío para la búsqueda de un espacio perdido, el espacio que nos pertenece como seres vivos, esos espacios biológicos de los cuales carecemos, huérfanos del espacio que nos es propio como organismos vivos."


Deixamos, então, aqui as boas-vindas a mais estes dois novos autores da Infohabitar, os colegas Marco Aresta e Scialpi Giulia, e sublinhamos que a segunda e última parte do respetivo artigo - "Arquitectura com terra: Experiências do fazer" - será editada na próxima edição da Infohabitar, já na próxima semana.

O Editor da Infohabitar, António Baptista Coelho


ARQUITECTURA COM TERRAExperiências do fazer - I

 ARESTA, Marco; GIULIA, Scialpi
ÍNDICE

PRIMERA SEMANA

1. INTRODUÇÃO
“Cada um por si!”
2. ARQUITECTURA COM TERRA
2.1. Contexto e características
2.2. Modos de fazer

SEGUNDA SEMANA
2.3. Técnicas de paredes de terra
3. CONCLUSAO

1. INTRODUÇÃO

“Cada um por si!”

Cada um de nós poderá pensar que a frase “cada um por si” é negativa, mas desde o ponto de vista da atualidade eu vejo-a mais como uma característica a ter que aceitar, se já não diretamente aceite.
Cada um por si não invalida que não sejamos pelos outros desde uma perspectiva na qual o bem colectivo vai obviamente ser o nosso próprio bem. Também não invalida que o meu bem-estar passe pelo conhecimento de como as minhas ações impactam no bem-estar da totalidade e como tal, sobre mim mesmo. Por outro lado é importante que cada um possa ter o seu conforto e condições de saúde para poder pensar, atuar e sentir com total capacidade sobre o colectivo que integra. E neste sentido é importante pensar a vivenda como refúgio são.



Figura 1. Trabalho colectivo. Curso “Eco-Arquiteturas”, Modulo “Construção Natural e Arquitectura Biológica”, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, 2014

Cada um, hoje em dia, participa  numa grande rede de comunicação que permitiu o desenvolvimento da tecnologia. Mas é importante reconhecer que no exato momento em que vivemos, o desenvolvimento, assim como progresso humano tem a ver com a capacidade de inovar o tecido económico, tecnológico, científico para praticas que reduzam o impacto ambiental, até a à minimização da “pegada ecológica”.
Cada um de nós, cada vez mais, é chamado a ”pensar sobre a “sustentabilidade”, com tendência ao aumento da investigação pela praxis académica independente, mas também pela investigação apoiada pela comunidade empresarial, de modo a garantir que a produção humana tenha o mínimo impacto sobre o contexto natural e consecutivamente sobre ela mesma. Obviamente que estamos no inicio de um largo longo processo que reclama urgência, cujo grande desafio é como antecipar tempos que naturalmente são os que necessitamos como grupo consciente e racional para poder atuar em e no colectivo.

Figura 2. Construção de um módulo de vivenda social. Curso de Construção Natural, Astigarraga, Euskal Herria, 2013

Tudo isto é o reflexo de uma consciência colectiva que formula uma opinião pública e que cada vez mais nos faz repetir a mensagem.
Mas isto só não chega!
Cada um terá que ter a responsabilidade, guiada por uma ideologia do sentir e do pensar, para atuar de forma coerente. Esta coerência é dada pela informação que necessitamos e que devemos compartilhar , fazendo-a chegar até aos outros e, por conseguinte, até nós mesmos.
A informação que cada vez mais se difunde de maneira vertiginosa pelos meios virtuais leva-nos a poder aceder a conceitos que nutrem o nosso próprio exercício do “fazer”. Mas fazer o quê?
Cada ser humano realiza ações no seu dia que decorrem da necessidade de fazer coisas. Alguns justificam que é por dinheiro; outros para não ouvir o marido ou a mulher, ou a sogra, ou os filhos; outros por ambição, por poder, por reconhecimento (diria que todos); outros por paixão, por compromisso, por palavra, etecetera…O que interessa é que agimos e realizamos coisas. Ora esse agir é que deve ser questionado desde a perspectiva das consequências que ele poderá ter nas presentes e futuras ações do ser humano.
Como é sabido, umas das ações que mais consome recursos é o ato de construir o nosso habitar.  Os edifícios consomem entre 20 a 50% dos recursos físicos do planeta segundo o seu contexto edificatório e sendo a obra pública a que mais consome. Sabendo que, dentro das atividades industriais, a construção é a mais consumidora de recursos naturais, juntamente com a industria associada, e a principal responsável pela contaminação ambiental, a aplicação de critérios de construção sustentável aos edifícios torna-se imprescindível para o desenvolvimento das sociedades futuras.
Mas que critérios? Obviamente critérios ao nível da eficiência e poupança energética, noções de conforto e saúde para os ocupantes, processos humanizados de trabalho, tratamento de águas, etecetera; mas principalmente é importante incidir no processo de seleção dos materiais.
Ë na seleção dos materiais que maior impacto podemos ter na urgente redução do impacto das construções no meio ambiente. Selecionar materiais naturais, locais e com processos de extração não invasivos é como se pode contribuir, económica e tecnicamente, na urgente redução da “pegada ecológica”.
E não falamos de reciclagem! Também os materiais reciclados implicam processos contaminantes de alto consumo energético proveniente de sistemas industrializados.
Falamos de materiais recuperados não contaminantes e de materiais naturais.

Figura 3. Vivenda V&E, Villa La Angostura, Argentina, 2012. Construção em terra palha encofrada

Como exemplo temos a industria de reciclagem do betão. Quando um edifício chega ao final da sua vida útil, uma media de 25% do betão da estrutura é reciclado: as paredes e lajes são esmagadas e separadas para o seu uso em estradas, viadutos e outros edifícios. Claro está que este ato de reciclar na Análise do Ciclo de Vida (ACV) é bom mas nada tem que ver com o possível 100% de reutilização com baixo consumo energético que é possível obter com as paredes construídas com terra. A mais valia reutilização é que não origina um consumo de energia e recursos que é obrigatório na reciclagem.
Contudo, não estamos aqui para comparar, mas sim para introduzir o tema da construção natural e especificamente da arquitetura com terra.


2. ARQUITECTURA COM TERRA

2.1. Contexto e características

A Arquitectura com terra alude a “todas as manifestações construtivas, arquitectónicas e urbanísticas que foram projetadas e construídas com terra como  material predominante” (Neves, 2004).
À parte de aproximadamente 60% do património histórico de Portugal ser de terra e de um terço da população mundial habitar casas de terra, o uso consciente e responsável da terra como material de construção origina que cada vez mais se utilize a terra para satisfazer as nossas necessidades contemporâneas de habitar. Mas principalmente como forma de resolver o défice de habitação no  mundo.
As vantagens da utilização da terra na construção transcendem o âmbito económico, somando vantagens de índole técnica (facilidade construtiva, disponibilidade e abundância do material, bom isolamento térmico e acústico, material ignífugo, etc.); de índole sociocultural (valorização de recursos locais, recuperação de tradições populares, trabalho cooperativo e associativo, etc.); e de índole ambiental (baixo consumo energético e pequena “pegada ecológica” no ciclo de vida das construções).

Figura 4. Vivenda Fede, Tigre-Buenos Aires, Argentina, 2013. Construção em terra tabique

Atualmente a Arquitectura com terra dá a possibilidade de construir, recuperar, melhorar e ampliar vivendas, além da aplicação em equipamentos públicos um pouco por todo o mundo.
Contudo, o cenário em Portugal ainda é deficiente na busca de soluções para a habitação, não só pela prática no que respeita a equipas profissionalizadas, mas também pela parte legislativa. Uma das soluções que procura dar resposta a isto é a formação em pequenos cursos que servem de divulgação, mas que também servem para dar ferramentas a autoconstructores e a profissionais que procuram introduzir-se na área temática.
Estas tímidas iniciativas tendem a crescer se os grupos locais se juntarem e divulgarem de forma altruísta o seu conhecimento, juntando esforços no caminho a uma arquitetura de terra profissionalizada que permite resolver problemas arquitectónicos e urbanísticos na contemporaneidade e não só como recuperação e conservação do património ou pelo simples folclore da tradição.

Figura 5. Teto com estrutura reciproca em madeira. Vivenda T&E, Foyel, Argentina, 2014

Por trás da prática e do fazer técnico, apoiado pelo desenvolvimento tecnológico da arquitetura com terra, deve existir também um comprometido saber filosófico e ideológico que leva a uma justificação de base teórica. A Arquitectura com terra já não é só o resolver de problemas e necessidades da população a um nível pragmático, mas sim também a ferramenta propicia e alternativa a resolução de problemas de índole ambiental, económica, social e de saúde publica. 

2.2. Modos de fazer

Neste momento a nossa prática assenta em experiências no âmbito da formação popular e académica, da investigação, da atividade profissional de projeto e construção e do apoio a  autoconstructores.
Recentemente fui convidado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa a participar de um curso com o nome “Eco-Arquiteturas”. O mesmo era composto por vários módulos, um dos quais me competia leccionar. Dessa forma, dei um seminário sobre “Construção Natural e Arquitectura Biológica” com 6 dias de prática em obra e 2 dias de teoria na Faculdade. Na componente prática construímos uma pequena sala de um equipamento público que será futuramente utilizada pela Câmara Municipal de Lisboa. Partimos do zero, com o local de implantação totalmente virgem e terminámos com as paredes, tecto, pavimentos, pintura, etecetera; ou seja, a construção terminada em todas as suas etapas de obra.  Este é mais um dos exemplos de cursos que nos últimos anos tenho feito para poder divulgar e formar, mas principalmente e, em muitos casos, para ajudar a fazer uma habitação.

Figura 6. Construção de uma parede e um arco em adobe. Curso “Eco-Arquiteturas”, Modulo “Construção Natural e Arquitectura Biológica”, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, 2014

Muitos foram os cursos nos quais se fizeram habitações ou se ajudaram a fazer com processos de cursos. O intercâmbio estabelece-se da seguinte maneira: os materiais e ferramentas são disponibilizados pelos proprietários e a mão-de-obra são os próprios participantes do curso que, em troca da aprendizagem, ajudam a construir. Desta maneira temos uma possibilidade de construir, formando simultaneamente profissionais e autoconstructores através da prática direta de obra.
Esta prática é apoiada pela experiencia profissional e também pela investigação académica.  No caso da investigação académica fazemos ensaios de prova e erro e obtemos por métodos de experimentação e observação resultados que nos permitem melhorar aspectos técnicos de carácter mecânico, físico e/ou químico. Uma das grandes inovações dos últimos anos no que se refere á Arquitectura com terra é o tema dos rebocos e das pinturas. É importante que a terminação da construção seja resistente para dar a garantia de salubridade ao edifício.

Figura 7. Reboco fino a base de argila numa vivenda de terra.

Por outro lado as técnicas de construção com terra são desenvolvidas e melhoradas para a sua correta  aplicação em climas e orientações distintas. Não é o mesmo construir no Sul da Argentina ou no Sul de Portugal, pelas suas diferenças climáticas que determinam distintas exigências na construção. Muitas vezes, estas pautas ao nível das diferentes técnicas de paredes, morfologia e rebocos são dadas pela própria Arquitectura popular e pelo saber-fazer acumulado de gerações que é importante conhecer e resgatar pelo grupo de investigação.
A investigação transita da atividade académica para o projeto e principalmente a obra, estabelecendo-se um intercâmbio de dados e informação.
Ao nível profissional a atividade também muda dado que os clientes e a própria equipa de trabalho buscam uma relação humanizada que passa pela confiança e o desafio de ultrapassar juntos barreiras colocadas pelo acesso ao novo e diferente. Esta questão é essencial dado que atualmente a Arquitectura de terra sofre de preconceitos fruto da ignorância. Há muito menos tempo que se constrói com materiais industrializados que com materiais naturais. Também os materiais naturais demonstram resultados de durabilidade, salubridade, resistência e conforto, mas a atualidade reclama que ainda se tenha que ultrapassar determinados mitos neste caminho para resgatar práticas ancestrais. Por isso mesmo a prática profissional encontra uma enorme responsabilidade no momento de concretizar o objeto arquitectónico.

Figura 8. Interior da Vivenda V&E, Villa La Angostura, Argentina, 2012. Construção em terra palha encofrada

Neste momento temos já habitações construídas que se confrontam com o tempo e os usuários. Dentro da prática profissional há vários desafios com que nos confrontamos diariamente: a falta de legislação para a construção com terra, o preconceito em relação ás condições de salubridade e resistência de uma habitação de barro e a falta de equipas de profissionais. Mesmo assim o universo de clientes é variado e aumenta cada vez mais com a consciência global sobre o ambiente.
Á materialidade das construções em terra, soma-se no projeto: a morfologia determinada por geometrias da natureza biológica; os sistemas solares passivos para aquecer e refrigerar a vivenda; as tecnologias apropriadas ao lugar; as estratégias de desenho bioclimático; e por último os processos de trabalho associativo e cooperativo.

BIBLIOGRAFIA
ARESTA, Marco; “Arquitectura Biológica – la vivienda como organismo vivo”; 2014: Diseño editorial; Buenos Aires; ISBN: 978-987-3607-26-4

Nota: este artigo será concluído, com a respetiva segunda e última parte, na edição da próxima semana da Infohabitar,

Notas editoriais:

(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.


INFOHABITAR Ano X, nº 490
Editor: António Baptista Coelho - abc@lnec.pt
Universidade da Beira Interior (UBI), Secção Autónoma de Arquitetura (SAA), Departamento de Engenharia Civil e Arquitectura (DECA) 
GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional

Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT)
ARQUITECTURA COM TERRA
Experiências do fazer - II
Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.

Infohabitar, Ano X, n.º 490

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