segunda-feira, setembro 09, 2013

452 - Habitação popular adaptável, evolutiva e bem integrada (I) - Infohabitar 452


Infohabitar, Ano IX, n.º 452

Habitação popular adaptável, evolutiva e bem integrada (I): enquadramento geral - Ou sobre a intenção de se desenvolver um adequado enquadramento da promoção da habitação popular 
António Baptista Coelho
Vivemos o século das cidades e das mega-zonas urbanas, e mais do que isso vivemos o século das grandes zonas urbanizadas e habitacionais informais – desordenadas, “clandestinas” e tantas vezes provisórias, “de abrigo” e sem condições mínimas de habitabilidade –,  em zonas extensas de uma parte significativa dos países em desenvolvimento e emergentes.
O objectivo aqui proposto, neste artigo, é tentar registar as principais linhas de uma habitação popular, a realizar pelos próprios habitantes, habitualmente, com ajuda mútua (familiares e amigos), em contextos sociais de reduzidos recursos financeiros e caracterizada por uma adequada qualidade arquitectónica e urbanística.
De certa forma podemos apontar que o que se visa é uma tentativa de aproximação a um enquadramento do processo informal de desenvolvimento habitacional, desenvolvido por indicações aos projectistas responsáveis pelos diversos e específicos processos de urbanização e reurbanização, numa perspectiva de apoio ao desenvolvimento de soluções domésticas e de vizinhança citadina onde haja alianças entre:
  •  adequadas (ainda que eventualmente mínimas) condições de ordenamento urbano e habitacional;
  • processos habituais e populares de auto-resolução das necessidades de habitação;
  • e soluções de arquitectura urbana marcadas por um razoável nível de qualidade arquitectónica.
Tendendo-se a uma regularização da criação de novas habitações, harmonizada:
  • quer com os fracos recursos dos habitantes e com um processo adaptável e evolutivo de construção da sua habitação;
  • quer com um adequado ordenamento urbano, de pormenor, imediatamente integrado por pequenas casas iniciais e até, eventualmente, apenas, de abrigo, mas capazes de suprir, rapidamente, as necessidades básicas das respectivas famílias, mas não comprometendo uma situação futura razoavelmente estabilizada, integrada por habitações com características, pelo menos, correntes, ou mesmo extensamente desenvolvidas e bem acabadas, que não sejam negativamente estigmatizadas, por terem sido iniciadas através do referido processo gradual de crescimento e de acabamento dos diversos espaços domésticos.
Por estas razões se recuperou, uma vez mais, o gosto, muito especial, de muitos técnicos pelo processo evolutivo habitacional e urbano, que foi, afinal, o processo responsável pela evolução do nosso modo de viver diário e pelo seu quadro de vida doméstico e urbano, considerando-se este numa adequada e ambivalente perspectiva (i) de vizinhança, muito localizada e ainda muito familiar (embora num sentido alargado) e (ii) de relação com a cidade e a sua essencial continuidade urbana, matéria esta que tem especial sensibilidade quando se iniciam conjuntos urbanos com casas mínimas e/ou construções com acabamentos mínimos e, cumulativamente, se visam processos de autoconstrução e autoacabamento – portanto quando se procura assegurar a referida continuidade e coesão urbanas com habitações em fases que podem ser quase de abrigo e realizadas pelos próprios habitantes, e consequentemente difíceis de controlar nas suas imagens urbanas iniciais.
Procura-se, também, que este revisitar do processo evolutivo urbano e habitacional seja feito numa perspectiva de grande contenção de custos, e tendo em conta realidades físicas, paisagísticas, ambientais e culturais bem caracterizadas e diversificadas (bem distintas daquelas que caracterizam o “mundo ocidental e desenvolvido”); e, portanto, numa reflexão exploratória e cuidadosa, que é aqui apenas iniciada, e onde se procura, essencialmente, que os principais aspectos de concepção e de ordenamento, ligados à referida evolução habitacional e urbana marquem soluções, cujas características de desenho e de pormenorização sejam:
(i)    adequadas aos respectivos quadros culturais e ambientais/climáticos – matéria esta que tem importância fundamental na estruturação de cada habitação e da respectiva vizinhança urbana;
(ii)  e que sejam desenvolvidas pelos projectistas locais, evitando-se a natural tendência de se apontarem “projectos-tipo”, ainda que apenas a título de exemplos ilustrativos – numa opção que define um fronteira entre as indicações estruturantes de um projecto habitacional evolutivo e uma sua concretização, que tem de ser cultural e ambientalmente adequada.
É neste sentido que se faz esta reflexão sobre o que poderá e deverá ser uma “habitação popular adaptável, evolutiva e bem integrada”, visando-se, numa segunda linha – a desenvolver, provavelmente, em próximos artigos – quadros específicos que possam ajudar a configurar esta solução em determinadas regiões e zonas climáticas.


Fig. 01

A questão da informalidade e da inadequação familiar e financeira
A questão da informalidade e/ou do desordenamento, quando não por vezes mesmo de um certo caos, no crescimento urbano e habitacional que marca tantas zonas de países em desenvolvimento, é matéria crucial pois refere-se:
  • A situações habitacionais frequentemente precárias e marcadas por condições de habitabilidade – higiene e mesmo saúde – inaceitáveis e que arriscam, em, primeira linha, os grupos sociais mais sensíveis – crianças, idosos, doentes e pessoas condicionadas na sua mobilidade.
  • À aplicação das poupanças da vida de muitas famílias em edifícios e construções que depois, e frequentemente, são muito desvalorizadas, quando colocadas no mercado habitacional.
  • Ao desenvolvimento de um crítico e muito negativo "caos" urbanístico em torno das principais zonas urbanas, a que acrescem, frequentemente, graves problemas ambientais e paisagísticos, criados nessas zonas; situações estas que muito prejudicam toda a sociedade e que obrigam e obrigarão a custos de reurbanização muito elevados, incluindo acções de realojamento de habitantes que ocupam edifícios situados em zonas perigosas, ou caracterizados por condições construtivas e de habitabilidade cuja reabilitação não tem viabilidade, ou situados em espaços necessários na ação de reurbanização (exemplo: vias e equipamentos).
  • À criação de soluções urbanas que são frequentemente muito pouco adequadas, seja em termos de funcionalidade e de conforto no uso do espaço público, seja de promoção do convívio natural e da estada prolongada nesse espaço público; pois, frequentemente, uma malha urbana informal não se rege por condições mínimas de agradabilidade no respectivo espaço público, tudo acontecendo, melhor ou pior, por trás dos limites dos lotes de cada família, e esta situação é muito negativa pela evolução nada “urbana” e sem “interesse público” que assim acontece. Pois não nos esqueçamos que a evolução urbana histórica e natural das nossas povoações acontecia, em pequenos, graduais e bem experimentados “acrescentos”, ciclicamente experimentados, adaptados e validados ao logo de gerações e não nos poucos anos, que são o tempo da informalidade.

  •  Mas também à criação de soluções habitacionais e domésticas muito frequentemente inadequadas em termos funcionais e de conforto ambiental, porque realizadas por pessoas pouco ou nada informadas sobre uma adequada concepção do habitar que deve acontecer no espaço interior, no espaço privado exterior, nas zonas de relação interior e exterior, e nas respectivas e necessárias nuances de privacidade e de sociabilidade, que não se limitam ao espaço privado de cada lote, devendo “invadir” positivamente as zonas públicas de vizinhança e de ligação à cidade.
Esta frequente inadequação doméstica dos espaços habitacionais informais resulta, naturalmente, de uma conjugação entre as graves limitações financeiras das famílias, o referido e rapidíssimo tempo em que decorre a informalidade e a referida ausência de um conhecimento adequado para o desenvolvimento da sua habitação. Um conhecimento que tire partido, até, de situações tão simples como o próprio espaço bem barato, porque “vazio” e quase não equipado (apenas tratado com vegetação, por exemplo).
E lembra-se que, por vezes, o conhecimento disponível até chegará a alguns aspectos construtivos da obra, mais ou menos rudimentares (quando há moradores que trabalham na construção civil), mas tal conhecimento evidentemente que não chega e o resultado concretiza-se, frequentemente, em erros de concepção difíceis ou, por vezes, mesmo impossíveis de emendar e que resultam em negativas condições construtivas e de habitabilidade da casa: e  logo na consequente e já referida falta de valor dessa casa como bem onde se aplicam as poupanças de uma vida e que se deixa à família, acontecendo, assim, uma verdadeira inadequação social de grande número de habitações informais em zonas urbanas informais.
Zonas estas que são, por vezes, reurbanizáveis, considerando-se os respectivos custos de infraestruturação, mas sendo, frequentemente, difícil conseguir uma verdadeira reabilitação habitacional de muitas das respectivas habitações informais, por diversas ordens de razões, entre as quais se destacam: (i) a exiguidade espacial dos lotes, (ii) a infuncionalidade básica das próprias habitações, (iii) problemas críticos de contiguidade entre edifícios vizinhos, e (iv) defeitos construtivos básicos.
Naturalmente que existirão muitos casos de habitações positivamente desenvolvidas e muitos casos de edifícios cuja reabilitação é possível e desejável, mas há, também, muitos casos de habitações que não oferecem condições mínimas de habitabilidade e/ou que prejudicam edifícios e espaços contíguos, e que são de difícil reabilitação (em termos práticos : construtivos e económicos). 


Fig. 02

E, afinal, a questão da frequente falta de qualidade urbana, arquitectónica e construtiva
Tudo o que se acabou de referir pode resumir-se no que se considera ser a frequente falta de qualidade urbana, arquitectónica e construtiva, marcando as habitações populares informais realizadas em pouco tempo nas periferias urbanas, num processo em que a ausência do bem-fazer tradicional, refletido em aspectos específicos de organização e de construção da casa, não foi compensado por tecnologias e conhecimentos actuais e igualmente adequados, tendo-se apenas, frequentemente, assistido a uma aplicação de soluções expeditas e por vezes rudimentares e muito deficientes, desde os aspectos de relação entre zonas privadas e públicas e de repartição dos espaços exteriores e interiores domésticos, até ao uso pouco racional de processos e materiais de construção e acabamento – utilizados, por vezes, apenas porque são os mais baratos e acessíveis naquele local específico.
Naturalmente que esta “regra”, referida à ausência de qualidade arquitectónica (num sentido lato) nas habitações informais, tem excepções e há, assim, situações em que o conhecimento e o bom senso dos habitantes e construtores, por vezes bem acompanhados em termos de assistência técnica e social, produzem soluções adequadas e mesmo arquitectonicamente interessantes e válidas; mas a regra é, frequentemente, negativa e produz, por vezes, situações críticas em termos de condições habitacionais e urbanísticas, por vezes mesmo prejudiciais para a saúde de quem lá habita e desagregadoras da essencial continuidade urbana.
E será possível aliar a força da iniciativa popular em intervenções adequadamente estruturadas, garantindo-se habitações adequadas, que proporcionem bem-estar às respectivas famílias e constituindo uma boa opção de investimento gradual e faseado das suas poupanças, assegurando-se um urbanismo que não esqueça aspectos essenciais de convívio e segurança e minimizando-se as despesas de infraestruturação; matérias estas que são, afinal, o objectivo essencial defendido nesta reflexão.


Fig. 03

Sobre a ideia de uma habitação popular adaptável e adequada em termos domésticos, urbanos e sociais
Salienta-se que não há aqui, nem podia haver, nenhuma ideia de se considerar negativa, como conceito de habitar, a informalidade urbana e habitacional; há sim a ideia de que esta informalidade marca extensas zonas urbanas e periurbanas de países em desenvolvimento e gera, frequentemente, situações urbanas e habitacionais negativas e mesmo , por vezes, muito problemáticas, que importa solucionar de uma forma eficaz e sustentada.
Surge assim a ideia de se procurar uma aproximação entre o modo informal de fazer habitação e espaço urbano e um ordenamento mínimo/ADEQUADO capaz de proporcionar bons espaços domésticos e urbanos, hoje em dia e no futuro; um objectivo ambicioso sem dúvida e para o qual muitos investigadores, técnicos e responsáveis habitacionais e políticos têm contribuído com diversas ideias e trabalho prático realizado em grande relação com os agentes dessa informalidade, em muitas grandes zonas urbanas de países em desenvolvimento.

O que se fará nesta série de artigos é, essencialmente, tentar apurar os aspectos essenciais das matérias urbanísticas e habitacionais que devem ser respeitadas no desenvolvimento de uma habitação popular adaptável e adequada em termos domésticos, urbanos e sociais, tendo-se em conta a matéria específica da evolução habitacional e também quadros ambientais específicos, referidos a determinadas condições climáticas – por exemplo, as regiões tropicais húmidas.
A ideia é que uma habitação popular adaptável e adequada em termos domésticos, urbanos e sociais deverá:
  • Respeitar necessidades habitacionais e humanas básicas, concretizadas em aspectos dimensionais, funcionais, de pormenorização e de proximidade e de relação entre espaços interiores e exteriores, públicos e privados.
  • Cumprir aspectos essenciais de qualidade ambiental, paisagística e de urbanidade; numa perspectiva em que se inviabilizem condições negativas e por vezes muito críticas (por exemplo, habitações em leito de cheia), favorecendo-se as melhores localizações em termos de paisagem e de relação com a cidade.
  • Proporcionar uma adequação optimizada em termos de necessidades familiares e modos de vida específicos, procurando-se servir os modos habituais e tradicionais de habitar em harmonia com a resolução de novas necessidades habitacionais e utilizando as tecnologias construtivas mais adequadas.
  • Contribuir para a vitalidade e continuidade urbana através de espaços exteriores de vizinhança agradáveis e estimulantes; uma condição que procura marcar o sentido de convívio, de relacionamento social e de vivência do espaço exterior que pode existir na proximidade das habitações.
  • Estar ligada a aspectos essenciais de sustentabilidade ambiental, seja pelos impactes produzidos nos locais de intervenção, seja pela própria construção; e nesta matéria haverá tratamento específico de aspectos de adequação climática regional e local.
  • Favorecer um processo adequado de adaptabilidade habitacional ao longo do tempo: (i) harmonizando a vivência de espaços privados interiores e exteriores, em cada lote; (ii) faseando o investimento na habitação de uma forma racional, que distribua as despesas, mas que não ponha em causa a qualidade e o valor do edifício que vai evoluindo; e (iii) possibilitando que este processo evolutivo esteja associado a uma vivência positiva entre vizinhos e à criação de conjuntos urbanos agradáveis.
  • Ter em conta os principais aspectos de um desenvolvimento urbano informal, de modo a que as operações evolutivas estruturadas que são aqui visadas, possam corresponder, globalmente, a soluções que sejam eficazmente utilizadas em processos de autoconstrução e de ajuda mútua; uma condição que poderá também ser útil na utilização destes processos nas importantes e urgentes intervenções de micro-reurbanização de zonas urbanas informais.
Serão estes os aspectos a tratar e exemplificar em próximos artigos desta série, que poderão ter ordem e ritmo editorial diversificados e com os quais se procura contribuir para a reflexão e a discussão sobre as matérias de uma informalidade urbana e residencial eficaz, porque muito sensível às necessidades e aos hábitos dos habitantes, mas também aos principais aspectos de ordenamento dos espaços domésticos e de vizinhança urbana.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.

Editor: António Baptista Coelho - abc@lnec.pt
INFOHABITAR Ano IX, nº452
Habitação popular adaptável, evolutiva e bem integrada (I)
Infohabitar é a revista semanal do Grupo Habitar (GH)
Infohabitar é editada no LNEC- Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT)
Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.

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