terça-feira, novembro 08, 2005

51 - Urgência e complexidade da regeneração de bairros sociais e outros espaços urbanos degradados - Infohabitar 51

 - Infohabitar 51

Urgência e complexidade da regeneração de bairros sociais e outros espaços urbanos degradados

um artigo de António Baptista Coelho

Numa altura marcada pelos graves problemas de violência no anel de cidades-subúrbios em torno de Paris, que, convém desde já lembrar, vão acontecendo de forma cíclica e ao que parece com uma crítica tendência de agravamento, e na sequência de uma reflexão activa que tem de continuar a ser feita sobre a problemática do realojamento – que, se volta a salientar, tem de ter, entre nós, atenção urgente por parte do Estado e dos Municípios –, vão apontar-se, em seguida, alguns aspectos que se consideram fulcrais nas necessárias acções integradas de regeneração urbana e habitacional que têm de ser dinamizadas, com carácter de urgência, mas com cuidadosa preparação, em muitos dos maiores e/ou mais degradados “bairros sociais” e outros conjuntos urbanos degradados que existem nas nossas cidades e vilas.
Os grandes conjuntos de realojamento e também os grandes conjuntos urbanos degradados não podem ter uma remissão eficaz, quer apenas com medidas sociais e de gestão local, quer apenas com medidas físicas de reabilitação dos espaços públicos e dos edifícios numa perspectiva eminentemente física, quer apenas através de medidas de segurança urbana.


Algumas notas breves sobre as medidas sociais e de gestão do realojamento


É fundamental associar as medidas sociais e de gestão, de acompanhamento e de enquadramento, mas visando um horizonte profundo/longo caso contrário será provavelmente quando o meio social está a começar a responder pela positiva e as estruturas lançadas estão a começar a funcionar, que se decide terminar determinados programas e acções ou mudá-los, por vezes, radicalmente em termos de processos e de pessoas envolvidas. E temos que entender que a cidade positiva se faz com tempo – um ano é realmente muito pouco na história da cidade – e se faz com pessoas específicas, pessoas com caras e com histórias de vida, pessoas que ao fim de meses de trabalho empenhado conquistam confianças fundamentais e só assim se pode pensar em avançar solidamente ainda que devagar.

Um aspecto que se sublinha, é que não se irá aqui desenvolver mais os aspectos sociais de enquadramento, acima apenas indicados, que são vitais numa acção de regeneração residencial e urbana com viabilidade, apenas porque outras pessoas há mais habilitadas para o fazer, sublinhando que isto não reduz, nem um pouco, a importância que é fundamental atribuir efectivamente aos aspectos sociais e de gestão local na regeneração urbana.


Quanto aos aspectos físicos do realojamento


Quanto aos aspectos físicos é essencial considerar que não vale a pena pensar, isoladamente, em arranjos de espaços públicos e de edifícios; há que pensar integradamente nos dois e pensar nos dois visando-se usos e aspectos urbanos verdadeiramente úteis em cada local, sejam, por exemplo, aspectos de atractividade e/ou de acessibilidade e/ou de segurança. Porque a cidade nunca se fez de actos mais ou menos gratuitos ou bem intencionados de arranjos exteriores, mas sim de troços urbanos bem ligados uns aos outros e aos núcleos citadinos próximos mais consolidados e vitalizados.

Mas quanto aos aspectos ditos físicos há também que considerar que a intervenção a este nível tem de ser pensada no serviço fiel e total de dois factores básicos do urbanismo, hoje infelizmente, com frequência pouco respeitados.

O primeiro destes factores é a (re)constituição efectiva e afectiva das vizinhanças urbanas, mas de vizinhanças com alguma possibilidade de viabilidade, onde haja espaços razoavelmente confinados e úteis, onde haja verde urbano que é real sinal da vida e do tempo que passa e testemunho vital da presença e da força da natureza, e onde haja lugar para que possa haver convívio; pode ser que esse convívio não vá acontecer, mesmo assim, havendo lugar, mas se não houver lugar é que de certeza não haverá convívio e cortesia entre vizinhos.

O segundo destes factores é a ligação efectiva e afectiva com a cidade “mãe” e com a própria continuidade e vitalidade urbanas; e acredite-se que por melhor vizinhança criada se ela não for vitalizada e bem enraizada na cidade viva ela irá decair e morrer; mas se pelo contrário uma vizinhança residencial e urbana for vitalizada pela cidade – por exemplo por eixos urbanos dinâmicos e contíguos e por diversidade de transportes e acessos ao centro urbano – ela irá prosperar em termos de condições de habitabilidade e de urbanidade e irá começar, ela própria, a participar activamente nessa mesma vitalidade urbana, passando a pertencer a uma cadeia de cidade consolidada, funcional e atraente.


E, já agora, não devemos esquecer a própria qualidade da arquitectura urbana, feita de raiz ou refeita, pois cada vez mais fica evidente que não sendo essa qualidade uma determinante isolada/autónoma da qualidade de vida e do habitar, ela realmente ajuda muito e participa muito na criação de espaços residenciais e urbanos verdadeiramente geradores ou influenciadores de felicidade: e não haja “receio” de perguntar às pessoas que têm o privilégio de viver em tais condições se isso não é verdade! E atenção esta condição de humanização e qualidade arquitectónica não tem a ver com o custo da habitação e da vizinhança, há dela excelentes exemplos em habitação dita “social”.


Sobre a segurança urbana no realojamento


O futuro das nossas cidades não pode passar por cenários mais ou menos ficcionados de “espaços rigorosamente vigiados”. A ideia que importa deixar aqui bem sublinhada é que não devemos importar soluções para problemas que felizmente ainda não temos de forma significativa. Se o fizermos estaremos provavelmente até a suscitar esses mesmos problemas.

Imaginem-se partes de cidades feitas de condomínios fechados com acesso rigorosamente controlado e de espaços públicos sujeitos a uma vigilância automatizada com carácter de continuidade. Ninguém em seu bom juízo quererá um futuro assim.

No entanto há, com certeza, pontos urbanos específicos que obrigarão a um reforço e a uma grande eficácia na vigilância (contínua/”automática”) e sobre esta matéria sublinha-se que se considera fundamental que toda a estrutura de acessibilidades públicas ofereça um nível de segurança extremamente positivo ao longo de todo o dia, pois só assim a cidade pode realmente funcionar e só assim a rede de acessibilidades poderá vitalizar toda a rede mais “fina” e ampla das vizinhanças de proximidade.


Nestas vizinhanças de proximidade é fundamental a existência de um sistema de segurança pública bem ligado à gestão local e com uma forte valência de proximidade e de constância na presença e na acção, associado a uma efectiva cadeia de responsabilidades, que responda eficazmente a qualquer problema (ex., um vidro que é partido, um roubo numa loja, etc.).


Comentários finais ao realojamento


Falou-se de enquadramento social e de gestão, de regeneração urbana física e de segurança urbanística. Todos estes aspectos têm de concorrer nas urgentes acções de requalificação das partes de cidade e dos bairros de realojamento com graves problemas de vitalidade e de falta de qualidade de vida e há que ter bem presente que estas acções não são nem baratas, nem rápidas, nem simples; mas se não as começarmos a desenvolver os resultados estão, infelizmente, aí para ser vistos, noutras cidades da nossa Europa, e terão gravíssimas consequências e levarão a custos de intervenção muito mais significativos.

Apenas cinco notas finais complementares.

A primeira, é que não é possível admitir que se façam mais conjuntos urbanos e de realojamento com grandes dimensões, isolados da continuidade urbana, sem vida própria, compostos por grandes edifícios, sem qualidade arquitectónica e destinados apenas a determinados grupos sociais. Se sabemos que tais condições geram más condições de vida urbana e de habitação e, a longo prazo, problemas sociais graves, por favor, não se admita nem mais uma habitação em tais condições.

E sublinhe-se, sempre, que há excelentes bons exemplos de referência, um pouco por todo o País, que podem e devem ser considerados. Dá vontade de dizer que não é de admitir nem mais um único conjunto de realojamento com uma única de tais características e que não se pense em qualquer desculpa ligada a dificuldades processuais ou ausência de terrenos; não é admissível criar mais guetos e consequentemente mais problemas para o médio e longo prazos; até numa perspectiva prática e “calculista” não se criem novos e graves problemas na sequência da resolução de outros problemas – dá vontade de dizer que numa altura com tantas preocupações para com a sustentabilidade da segurança social/pensões de reforma, é necessário interiorizar que outras áreas também têm idênticos problemas de crítica sustentabilidade e provavelmente no realojamento e na regeneração urbana poderá não haver, no futuro (próximo), verbas adequadas para remediar os erros do passado próximo e do presente.


A segunda nota liga-se à primeira e refere-se à necessidade de, urgentemente, se ter uma ideia rigorosa sobre as condições de sensibilidade social, de integração urbana e de estado físico dos conjuntos de interesse social existentes e designadamente dos grandes conjuntos do realojamento situados nas periferias das nossas cidades. Sejam os velhos bairros sociais que, por vezes, ainda se encontram um pouco esquecidos e mal tratados, sejam os grandes conjuntos do PER em que se aplicaram, recentemente, grandes edifícios em altura, exigem uma monitorização adequada e a consequente proposta de acções de melhoria.

Outra nota para as acções extremamente positivas, quer de ordem social quer de ordem física, que vários municípios e outras entidades, tais como empresas municipais, empresas privadas e cooperativas, têm desenvolvido nesta área da regeneração urbana. Não serão muitas as acções mas há, entre nós, variadas boas práticas que é urgente serem divulgadas – até porque esta matéria é tecnicamente muito exigente e serão as equipas com experiência aquelas que deverão ser ouvidas em primeira linha.


Uma penúltima nota, essencialmente com carácter processual, que poderia não ser necessária, mas afinal “o seguro morreu de velho”: é que não se podem desenvolver acções sociais e de gestão, físicas e urbanas e de segurança pública, sem uma adequada integração e complementaridade mútua. Não faz sentido actuar na regeneração urbana sem ser de uma forma cuidadosamente integrada nas várias frentes de actuação.

A nota final é para sublinhar que mesmo não havendo em Portugal grandes bairros de realojamento com grandes edifícios e com problemas sociais e físicos de grande gravidade, há zonas urbanas e bairros de realojamento cuja dimensão, complexidade social, e características urbanas e de integração, merecem e exigem um urgente reforço dos cuidados acima referidos de forma genérica. É fundamental ter a ideia que no Portugal “dos bons costumes” também há “bairros sensíveis” e é fundamental perceber que é necessário avançar rapidamente na resolução de tais problemas; problemas que, é importante nunca esquecer, resultaram essencialmente de situações urbanística e habitacionalmente deficientes que se eternizaram às vezes ao longo de décadas.

Ficam por abordar outros aspectos importantes e que se ligam muito a estas temáticas, mas ficam para outros textos e, deseja-se, para os comentários, mas não é possível concluir este texto sem o reavivar da urgência e da necessidade de se resolver rapidamente o problema de habitação daqueles que, hoje, em Portugal, vivem em condições degradadas. Não é admissível que mesmo a urgência evidente da regeneração urbana, acima desenvolvida, faça esquecer a urgência básica que é não “ter” habitação digna. E os dois problemas podem e devem ter uma resolução combinada, pois na regeneração pode haver inclusão de novas edificações ou conversão de velhas edificações para novas tipologias habitacionais e urbanas.



Notas finais:

As figuras juntas, ao longo do texto, são de conjuntos de realojamento recentes, que correspondem exactamente ao contrário do acima indicado como negativo. São, assim conjuntos com pequena dimensão, integrados na continuidade urbana, com (alguma) vida própria, compostos por edifícios com escala humana e com qualidade arquitectónica. A apresentação procurou definir uma sequência de variadas tipologias associada a um crescendo da dimensão dos respectivos edifícios, tentando sublinhar que os princípios aqui defendidos podem ser servidos por uma grande diversidade de soluções de arquitectura urbana.

Há que ser objectivo e referir que, de forma geral, e segundo uma regra que resulta já da observação directa de cerca de 600 casos de habitação com controlo de custos, em Portugal, a pequena dimensão dos conjuntos de realojamento é, provavelmente, o principal factor de integração; mas há verdadeiras excepções em que conjuntos com dimensão muito significativa conseguem atingir uma assinalável qualidade urbana e também há infelizmente muitos casos em que a positiva virtualidade da pequena dimensão de cada intervenção fica totalmente anulada, por exemplo, devido ao isolamento e à descontinuidade urbana dos respectivos sítios de implantação.

Em termos globais, entre nós, em termos de cuidados de enquadramento do realojamento, falta “repetir” o que foi bem feito, não “repetir” o que foi mal feito, e falta assegurar, sistematicamente, que em cada intervenção sejam alojados diversos grupos socioculturais – não apenas caracterizados por distintos níveis económicos, mas também, por exemplo, por serem grandes agregados e pessoas que vivem sós, por serem trabalhadores e por serem estudantes, por serem jovens e por serem idosos, etc, numa sistemática e cuidadosa mistura de grupos sociais. A pequena dimensão dos conjuntos e a continuidade urbana são factores essenciais nesta matéria, que importa garantir sempre, mas a esta matéria tão complexa há que dirigir uma atenção mais sistemática., específica e multifacetada, aprendendo continuamente com a experiência e as boas práticas.



1ª imagem: 2001, Somague, S. Miguel, Lagoa, 30 fogos, Arqos João Coutinho e Daniel Carrapa.

2ª imagem: 2001, CM Matosinhos, Bairro do Telheiro, 44 fogos, Arq. Manuel Correia Fernandes.

3ª imagem: 2002, CM Vizela, S. Miguel das Caldas, 18 fogos, Arq. Arq. Alexandre Ribeiro.

4ª imagem: 2002, CM Porto, Monte de S. João, 53 fogos, Arqos Arq. Rui Almeida, e Filipe Oliveira Dias

5ª imagem: 2000, CM Lisboa, Av. Berlim, 132 fogos, Arq. Arq. Rui Barranha Cunha.



8 de Novembro de 2005, Lisboa, Encarnação/Olivais N,

António Baptista Coelho


4 comentários :

Anónimo disse...

As considerações do autor deste artigo, oportuno e exemplar, relevam a extrema complexidade dos problemas inerentes ao realojamento de populações carenciadas, sejam elas, ou não, de proveniência estrangeira; um tema que remete para o facto da cidade não ser “um sistema com objectivos, mas uma série de sistemas irreconciliáveis, cada um dos quais implica uma imagem profissional diferente do local.”, como afirma Brian Goodey *.

Para reequilibrar as diferenças existentes nos diferentes estatutos de cidadania, verifica-se que não tem sido suficiente reagrupar indivíduos e famílias em conjuntos habitacionais arquitectónica e urbanisticamente correctos. Porque os elementos chave da qualidade de vida urbana encontram-se nos acessos e oportunidades que permitam, a qualquer cidadão, criar expectativas de progredir na cadeia social, económica e cultural, refazendo a sua identidade nos ambientes que vai dominando, passo a passo.

Dir-se-á, assim, que as identidades de uma cidade não se obtêm através de um Plano, porque são geradas de um modo muito mais elaborado e caótico, através da interpretação que uma cidade faz de si própria, permanentemente, furtando-se ao controle estético e iconológico e aos interesses económicos, ainda que permaneça intimamente ligada a eles,

* Goodey, Brian - ‘A cidade multi-imagem, multi-centro’ – ‘Espaço Imperfeito’, Forum Portucalense, 1989, pp 123-131

MJEloy

Anónimo disse...

Parabéns ao arquitecto Baptista Coelho pelo seu artigo em que "levantou o tom de voz" perante uma faceta do estado de indignidade humana em que uma já grande parte da sociedade portuguesa vive (25%), embora se fale apenas em 1 milhão (o que já chega para indignidade cívica.

Este problema de como construir HABITAR, não tendo ainda sido motivo de ponderação e, sobretudo de acção dos decisores (mas sempre atentos), foi agora levantado à escala governamental, somente porque a "comunicação global permitiu assistir-se "em directo" às imagens que "vieram de França", e recordar o "caso português".

A minha velhíssima (porque de há muitos anos) opinião é que: OS PARTIDÁRIOS DA HABITAÇÃO SOCIAL OU DA ARQUITECTURA SEM ESTÉTICA NUNCA
COMPREENDERÃO QUE PODE SER TÃO ANTI-SOCIAL, COMO O PIOR DOS "bairros da lata.

Maria Celeste d'Oliveira Ramos, arquitecta paisagista

Anónimo disse...

A propósito de todos estes problemas parecem ser extremamente oportunas as declarações do Cardeal Lustiger que, a seguir, se transcrevem e que integram um artigo do jornalista António Marujo, saído no jornal Público, de 8 Novembro de 2005
«Há dezenas de anos que os poderes públicos não intervêm, e não apenas nos bairros problemáticos, mas também na sociedade em geral e em relação aos jovens... É difícil dar uma interpretação correcta, o fenómeno é complexo, tem que se compreender o que se passa realmente... É organizado? É uma estratégia? É mimetismo? É mediático? É económico? Há que compreender as verdadeiras razões... O que se passa hoje já vem de há décadas... A Igreja é uma boa testemunha da longa duração do problema e da evolução das sociedades urbanas. Os políticos não tiveram em conta o que dissemos. Eu próprio avisei pessoalmente o (então) Presidente Miterrand... A repressão e a incitação ao medo colectivo não são resposta à altura destas tensões dramáticas da sociedade»”

Anónimo disse...

Bom dia,

Descobri este artigo na internet por acaso e devo dizer que me sinto honrado por ter uma fotografia de uma obra minha a ilustrar um artigo tão bem escrito como este da autoria do arquitecto Baptista Coelho. Desde já a minha gratidão.

A "moda" da habitação social, sobretudo a produzida no pós-25 de Abril, levou a um enriquecimento do "vocabulário" arquitectónico dos arquitectos das gerações posteriores que esquecem muitas vezes o verdadeiro conteúdo deste tipo de intervenções: as pessoas.

Todavia, as necessidades políticas adjacentes a estes programas, liderados, na verdade, por agentes mais interessados em mostrar "obra feita" e o enquadramento legal extremamente deficiente e que condenam á partida estas intervenções a um escandaloso insucesso, também são os "culpados" da falta de sucesso na implementação destes programas, destinados fundamentalmente a populações envelhecidas, pouco dinâmicas ou completamente desenraízadas com o local de implantação. Um solução para este tipo de situações? Talvez a intervenção social do arquitecto projectando habitações no lugar das barracas, em vez de avolumar tudo num "gavetão de pessoas"...