domingo, abril 08, 2012

388 - O HOMEM QUE NÃO MORREU, um conto de Adriano Rosa - Infohabitar 388

Infohabitar, Ano VIII, n.º 388

Desejando que todos os leitores do Infohabitar estejam a passar uma Páscoa feliz e em paz, entre familiares e amigos, edita-se, na nossa revista, mais um conto do nosso colaborador Adriano Rosa, ao qual aproveitamos para agradecer estas agradáveis e oportunas pequenas mudanças no conteúdo das nossas edições; e afinal, nestes seus contos sente-se, também, muito o sentido profundo de um "habitar", referido ao positivo "marcar" de pessoas e de espaços.
E avisam-se os leitores que na edição da próxima semana teremos notícias sobre a realização do 2.º Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono, o 2.º CIHEL.

Com as melhores saudações,
O editor
António Baptista Coelho


O HOMEM QUE NÃO MORREU

Naquele tempo era perigoso contrariar o mandato dos céus, e o deus que havia protegia os mais fortes. A religião dos homens e a lei dos poderosos eram defendidas por velhos sacerdotes e severos juízes.

Bastava uma palavra infeliz, um acto qualquer incompreendido e a justiça haveria de encontrar um criminoso. O homem que tinha sido julgado, sem dúvida cometera uma ofensa grave mas não podia recordar-se do seu crime.

Um outro deus era o seu, mas esse outro amaldiçoara-o a cumprir um calvário de sangue. Nenhum deus ama a liberdade, pois o que está escrito tem que ser seguido. Também o seu deus tinha fracassado e parecia agora um velho embevecido com um espelho, nos confins do universo, mirando a sua imagem e semelhança. O homem que tinha sido condenado deixara de acreditar no seu deus, e apenas lamentava o tempo perdido dos que o tinham escutado. Homens e mulheres comuns que seriam perseguidos por causa da sua palavra.

O homem que tinha sido condenado sabia de mais e via para além do seu deus. A vaidade corrompe os deuses, e também os homens, é verdade. Mas nada disso interessava já, nem o tempo em que este infeliz condenado procurou o sentido da festa. Cedo de mais tinha julgado o seu deus diferente, e a humanidade disponível para a alegria. Cedo de mais,repetia para si. Qual tinha sido o seu primeiro milagre, o seu primeiro erro? Agora estava morto ou consideravam-no morto. A injúria dos homens é irreparável. Para quê regressar? O corpo foi entregue a José que o cobriu com um lençol fino que comprara, e trataram-no como a um morto.

Também o centurião certificou a sua palidez, e convenceu-se estar perante um cadáver.

Acordou naquela manhã envolto em ligas e o rosto coberto por um sudário.

Apenas podia mexer as mãos, e foi assim que se sentiu vivo. Enjoado com o lento despertar numa gruta fria, o homem que não morreu contemplou outros corpos enfaixados e inertes a seu lado. (A morte é uma coisa estranha, uma rigidez suprema, e silêncios sem memória). Por fim aceitou a consciência de que estava vivo, lá fora a luz do sol brilhava e pressentia que outra vida o esperava. Mover a pesada pedra estava fora das suas possibilidades, o homem que tinha sido condenado rastejou para a fresta e assim regressou ao mundo e à realidade dos vivos, escavando com tempo o seu triunfo inútil. Voltou ainda a questionar a sensatez de um regresso. Quem quererá morrer duas vezes?

Entre arbustos próximos retirou as ligas que o apertavam, cobriam as nódoas de sangue e o suor. O homem sentiu o sol percorrer a nudez, e reparou como eram horrorosas as suas chagas. Como viver uma vida honrada, ser apenas um homem mais e sem divinos mistérios? Estranhou a sensação da água num riacho próximo, um outro baptismo de vida! Não podia arriscar-se a ser descoberto. Regressou cauteloso, como se não conhecesse mais mundo que o espaço para onde tinha rastejado. Fazer a viagem da morte para a vida é uma oportunidade única, e não conseguiu dormir na noite após a sua ressurreição. Contemplou um amanhecer pela primeira vez, sem alguma missão especial a cumprir. Não podia ocultar-se eternamente. Arrepiava-se diante daquela palavra… Eternidade!

Estava perdido nestes pensamentos, quando um grupo de mancebos desviou a pedra da entrada para roubar os panos de linho aos cadáveres. Não se moveu, porque não é crime roubar a quem não precisa. Além disso, nunca se interessou pelas questões da lei ou não tivesse violado o sábado ao

curar enfermos e a colher espigas diante dos fariseus. Recordava-se agora dos seus pecados. Enquanto os mancebos disputavam o linho, o homem que tinha sido condenado pensou como o amanhecer é belo, e olhou para a estrada e as anémonas cor de púrpura por onde os mancebos escapavam,atravessando depois os loureiros bravos.

O homem que tinha saudado a luz de um novo dia notou então que três mulheres se aproximavam, silenciosas como se viessem chorar a morte de alguém. Custava-lhe ainda enfrentar a luz de um novo dia, mas reconheceu Madalena. Atrás seguiam a mãe de Tiago e Salomé. Não quis falar-lhes,pois tinha que desabituar-se de transmitir esperanças. Era melhor que a morte fosse tida como o elo entre os homens e os deuses (sem a morte, a arte e todas as religiões seriam improváveis como coisas humanas). O seu corpo não estava na gruta, na verdade ele estava vivo e não podia contrariar a sua ressurreição. Não queria voltar a morrer para fazer a vontade aos homens e ao seu deus, mas não sabia como viver. O filho de deus não sabia para que servia a vida! Apenas não queria ser descoberto pelos soldados, nem pelos discípulos. (Poderia falar com Madalena, pedir auxílio e um esconderijo temporário mais seguro que uns arbustos). As três mulheres repararam na pedra movida e no lugar vago deixado pelo seu corpo. Mas o homem que não morreu tinha que manter o mistério do seu desaparecimento, ninguém o encontraria. Apenas Madalena, a beleza que o surpreendeu junto a um poço de água. Deveria, pois, saciar a sua sede? O filho de deus saberia amar? Suportaria, durante o resto da sua vida,conhecer o amor e o remorso de desejar uma mulher? O deus que fora o seu nada sabia do sofrimento humano porque lhe ordenara que morresse na cruz por um amor sem substância e sem fim.

Deveria agora esgueirar-se por caminhos sombrios. Amar é o maior perigo que pode acontecer a um homem!

Madalena estava só na sua tenda, queria libertar-se da memória daquele homem solitário que a tinha olhado de maneira diferente. Entre o mistério e o pranto aguardava sem saber. O homem que não morreu entrou sem alarde, e olhou para Madalena como quem desperta de um sono profundo. Sou apenas um homem, disse-lhe. Madalena reconheceu-o e voltou a tratar-lhe das feridas. Beijou lentamente os pés de Madalena,abraçou-se às suas delicadas coxas e permaneceram calados durante muito tempo enquanto Madalena lhe afagava os cabelos. O amor não precisa de palavras nem de orações. Sentiu o sangue latejar quando se deitou com Madalena. As mãos percorreram os rostos, descobriu por que os humanos fazem amor conservando mútuo o olhar. Dar a outra face significa partilhar os afectos. O homem que não morreu encontrou, finalmente,tempo para chorar. De alegria.

Adriano Rosa

Notas editoriais:


(i) A edição dos artigos no âmbito do blogger exige um conjunto de procedimentos que tornam difícil a revisão final editorial designadamente em termos de marcações a bold/negrito e em itálico; pelo que eventuais imperfeições editoriais deste tipo são, por regra, da responsabilidade da edição do Infohabitar, pois, designadamente, no caso de artigos longos uma edição mais perfeita exigiria um esforço editorial difícil de garantir considerando o ritmo semanal de edição do Infohabitar.

(ii) Por razões idênticas às que acabaram de ser referidas certas simbologias e certos pormenores editoriais têm de ser simplificados e/ou passados a texto corrido para edição no blogger.
(iii) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.


Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
Infohabitar n.º 388
Páscoa de 2012

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