quinta-feira, março 15, 2007

130 - Humanização do habitar: algumas reflexões – artigo de António Baptista Coelho - Infohabitar 130

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Humanização do habitar: algumas reflexões


António Baptista Coelho


Fig. 1

Disse Carlos de Azevedo que “a casa é um documento autêntico da vida do homem – documento de pedra e cal, mas de extraordinária importância para estudarmos os costumes, a evolução do gosto e da vida social.” (1)
E Vicente Verdú, citado por Anatxu Zabalbeascoa, situa a casa “entre a realidade e o desejo … entre o possível e o desejado” e diz que a casa “pode acolher sonhos e satisfazer necessidades.” (2)



Fig. 2: uma arquitectura caracterizada, viva e culturalmente fundamentada – Caldas da Rainha, Telheiras Lisboa (Arq. Rodrigo Rau), Parque das Nações Lisboa, o Porto à noite.

Os grandes autores estão a convergir em matérias que muito têm a ver com uma arquitectura caracterizada, viva e culturalmente fundamentada. Matérias a conjugar em partes de novas e velhas cidades que para serem sustentáveis têm de estar cheias de interesse urbano e de vitalidade habitacional. Cidades que acolham o crescimento da necessidade de mais habitação, que resulta da desagregação da família tradicional, do aumento da esperança de vida, do desenvolvimento do trabalho e do lazer em casa, e também da concentração urbana, que irá agudizar-se nos próximos decénios.

E não nos iludamos, é, de facto, ainda preciso construir nova habitação, Espanha e França têm apontado, recentemente, tal necessidade; e só em França, e por conta dos maus exemplos do passado recente, parece que serão demolidas e feitas “de novo”, 250.000 habitações, em 10 anos, realojando-se, assim, espera-se, melhor, cerca de 5 milhões de suburbanos.


Fig. 3: Madalena, Funchal, de Duarte Cabral de Mello, Maria Manuel Godinho de Almeida e João Francisco Caires (1992)

Mas entre fazer de novo e reabilitar habitação, entre novos conjuntos e o fundamental “construir no construído”, num caso e noutro há que humanizar e vitalizar, urgentemente, centros históricos e subúrbios; e num tal desígnio, é fundamental o habitar, e um habitar bem pormenorizado e qualificado, que não falhe mais nas suas ligações com o habitante e com a cidade, e para tal não chegam os aspectos mais objectivos da qualidade residencial.



Figura 4: sobre os vários níveis urbanos habitados; Baixa de Lisboa, Cooperativa Massarelos Porto de Francisco Barata e Manuel Fernandes Sá, Alvalade Lisboa de Faria da Costa uma rua residencial

E é nessa matéria de uma ampla pormenorização do habitar que muito está em jogo, em termos de humanização: Diz Fumiko Maki, que “nas cidades do passado, há a família e acima desta a comunidade e acima desta a cidade. Há um mundo público evidenciado e, por outro lado, há um mundo privado afirmado, e cada um deles interage com o espaço para formar cidade.”(3)

Entre estes dois mundos sempre houve um terceiro mundo, o do espaço comum ou colectivo, que assegura uma aliança com a convivialidade urbana e citadina , e que é ainda o verdadeiro elemento agregador da cidade de hoje; e Georges Perec descreve-o: "o lugar neutro, que é de todos e de ninguém‚ onde as pessoas se cruzam quase sem se ver, onde a vida do prédio ecoa..., longínqua e regular. Do que se passa por detrás das pesadas portas dos apartamentos apenas captamos quase sempre esses ecos estilhaçados, esses restos, esses destroços, esses esboços, esses estímulos, esses incidentes ou acidentes que se desenrolam no que se chama as «áreas comuns»....”(4)


Figura 5

Mas em todos estes mundos há, hoje em dia, na cidade contemporânea, sinais bem negativos: de desumanização, de isolamento atrás da porta de cada habitação e de crítica falta de cidade habitada e amigável; dá vontade de dizer, falta de cidades suaves e calmas, conceitos estes que podem ser bem copiados da engenharia de tráfego, pois nem só o tráfego precisa de modos suaves e de modos de acalmia; toda a cidade deles necessita.
E sobre eles diz Riken Yamamoto, que “uma coisa que sentimos quando tentamos viver em soluções habitacionais densificadas é que a disposição dos compartimentos separa totalmente do exterior. O encerramento e a abertura das habitações, a relação entre interior e exterior, foram assuntos frequentemente investigados, mas Os sentimentos reais, quando aí tentamos viver são horríveis. Até quando subimos as escadas, vendo apenas portas de segurança fechadas, sentimos uma crítica falta de compreensão das actividades no interior das habitações. E ao entrar e ao fechar-se a porta, tudo se torna um outro mundo, totalmente isolado do mundo real.” (5)
Vale bem a pena confrontar esse “lugar neutro, que é de todos e de ninguém, onde a vida do prédio ecoa”, referido por Perec, com esta “crítica falta de compreensão das actividades no interior das habitações” e com este “outro mundo, totalmente isolado do mundo real”.


Figura 6: sobre os limiares urbanos habitados e coesos, uma redescoberta da importância formal e convivial dos “limiares” na humanização habitacional da cidade – Alvalade de Faria da Costa, Habijovem Albufeira de Faria da Costa, Chasa Alverca coord. Duarte Cabral de Mello, Monte Espinho Matosinhos de Paula Petiz.

Riken Yamamoto aponta no sentido de uma redescoberta da importância formal e convivial dos “limiares” na humanização habitacional da cidade, numa linha gémea daquela seguida por Alexander e Chermayeff em 1963 e por Hertzberger em 1991, e diz que tudo é uma questão de “organizações” espaciais; … matéria bem na linha de vários desenvolvimentos feitos neste trabalho, por exemplo, ao nível do desenho, das tipologias residenciais, das “escalas” urbanas e de uma ampla integração.




Figura 7: exemplos de habitações que atingem um significado social (HSS) - Cooperativa Lar Para Todos, Beja, de Raúl Hestnes Ferreira (1986); reabilitação para pequenos fogos para idosos, Funchal, de Susana Fernandes (2001); Fronteira, de Alexandre Costa e Cláudia José (2003); Mosteiró, Vila do Conde, de Miguel Leal (2003); cooperativa UGTIMO, Zambujal, de José Bicho (1997); Mataduços de Carlos Fonseca e Alfredo Machado (2001); Milheirós, de João Carlos Santos (2001); Chouso, de Luís Miranda (1999); e B. Padre Cruz, de Rosa Leitão (1992) ...

Sublinha-se, também, que a humanização do habitar não tem a ver com os custos da construção, mas sim com a qualidade do projecto e da construção. E, a propósito, cita-se uma afirmação bem recente de Kazuo Shinohara: “na nossa enorme sociedade actual há pouca diferença entre fazer cem casas ou duzentas casas; a quantidade que é difícil apurar é o número de casas que são feitas e que atingem um significado social.” (6)
E termina-se lembrando o conceito “from the bedside to the bench”, apontado, recentemente, por António Coutinho; um conceito que, nas áreas do habitar e da arquitectura, tem de ligar urgentemente os casos habitacionais humanizados às mesas de concepção de intervenções habitacionais e urbanas.



Figura 8: da complexidade e da subtileza

E lembremos, a propósito, uma recente e fundamental afirmação de Benevolo e Albretch: “os desafios a enfrentar no mundo de hoje não dizem apenas respeito às quantidades e aos números, mas também, – e sobretudo – à complexidade e à subtileza. Só o leque completo dos resultados em que a excelência qualitativa aflora das maneiras mais diversas e imprevistas, dá uma ideia justa dos recursos da mente humana...” (7)



Figura 9: habitare, derivado de habere, ter, implica uma identidade entre a pessoa e o mundo

Sustenta Franco Purini que “a etimologia latina de habitare, derivado de habere, ter, implica uma identidade entre a pessoa e o mundo. A base do conceito de habitar é, pois, muito ampla, e exprime um sentido de plenitude, de totalidade e de segurança...” (8)
Temos, assim, a palavra “habitar”, que sintetiza um verdadeiro e amplo serviço de habitação, que parece ser o objectivo central de toda esta ideia; de certo modo até se pode considerar que o conceito de habitar já, em si, inclui o sentido de humanização.



Figura 10: uma humanização do habitar que tem de passar por reflexões técnicas, mas também por sonhos.

Uma humanização do habitar que tem de passar por reflexões técnicas, mas também por sonhos, pois, como escreveu Kafka:
“Quando me deixo levar pela meditação, perco-me em reflexões técnicas, recomeço a sonhar uma toca perfeita sob todos os aspectos, e vejo com os olhos fechados fascinantes possibilidades de arquitecturas ideais...”
E uma humanização do habitar que tem de passar por certezas, Como as de Sophia de Mello Breyner:
“Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes”,

Referências bibliográficas:
[1] Carlos de Azevedo, “Solares Portugueses – introdução ao estudo da casa nobre”, Livros Horizonte, 1988 (1969), (p.13)
2 Anatxu Zabalbeascoa, “La casa del arquitecto”, Ed. Gustavo Gili, p.6, 1995.
3 Fumiko Maki, citado por Riken Yamamoto, “Spatial Arrangement Theory – On the Concept of «Threshold»”, em “Contemporary japanese houses, 1985-2005”, p. 440.
4 Georges Perec, “A vida modo de usar” 1989, Trad. Pedro Tamen, (1978), p. 19.
5 Kenchiku Zasshi, em “Lifestyles and Layouts of Mass Housing” (1990), citado por Riken Yamamoto, “Spatial Arrangement Theory – On the Concept of «Threshold»”, em “Contemporary japanese houses, 1985-2005”, p. 441.
6 Kazuo Shinohara, “Now, «modern next»”, em “Contemporary japanese houses, 1985-2005”, Tóquio, TOTO Shuppan 2005, p. 435.
7 Leonardo Benevolo e Benno Albretch, “As Origens da Arquitectura”, 2002, pp.10 e 13.
8 Franco Purini, “La Arquitectura Didactica”, pp. 126 a 130 (a marcação a bold é minha).

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