sexta-feira, julho 14, 2006

93 - A CIDADE QUE SOU E TENHO EM MIM – Maria Celeste Ramos ; REGRA DE OURO: HABITAR – Maria João Eloy - Infohabitar 93

 - Infohabitar 93

Artigo duplo
Introdução
Das propostas do PNPOT (1) destacamos o tema “Portugal: os grandes problemas para o Ordenamento do Território” (2), elegendo o domínio que incide na “Expansão urbana desordenada e correspondentes efeitos na fragmentação e desqualificação do tecido urbano e dos espaços envolventes” para, numa abordagem não institucional, empreendermos uma reflexão sobre o acto de ‘habitar’, a pretexto das louváveis intenções das alíneas seguintes:
Degradação da qualidade de muitas áreas residenciais, sobretudo nas periferias e nos centros históricos das cidades, e persistência de importantes segmentos de população sem acesso condigno à habitação, agravando as disparidades sociais intra-urbanas”; “Insuficiência das políticas públicas e da cultura cívica no acolhimento e integração dos imigrantes, acentuando a segregação espacial e a exclusão social nas áreas urbanas”.
(1) No dia 27 de Abril de 2006, foi publicada em Diário da República a Resolução do Conselho de Ministros que aprova para discussão pública a proposta técnica do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território, PNPOT. O período de discussão pública ocorre de 17 de Maio a 9 de Agosto de 2006.
(2) http://www.territorioportugal.pt/Proposta.aspx

A CIDADE QUE SOU E TENHO EM MIM

Maria Celeste Ramos



A cidade é como a vida – está dentro de mim e sou dela pertença.
Ao atravessá-la a caminho da escola ou do local de trabalhar ou, simplesmente, de ir daqui para acolá, recolhem-se imagens codificadas que vão para uma zona do cérebro, arquivo da memória imagética, como vão as imagens de qualquer outra vivência no espaço familiar.
A vida é um processo de acumulação de imagens (3) anexando a respectiva emoção que, frequente e tardiamente, já não é uma memória mas uma recordação, baralhando o "tempo" cronológico mas deixando uma sucessão de "pegadas."
A cidade educa e eleva, ensina e informa estabelecendo um relacionamento eu-cidade-espaço-acontecimento, transmite alegria e/ou dor, nem que seja a provocada pelas enxurradas e pelo fogo, porque a cidade não é apenas o espaço físico impessoal e impessoalizado, mas sim o que nele se vive e se troca.
A Cidade como a Casa é palco de-vida-acontecer e tal que, ao viajar-se para longe se traz, igualmente, a memória do lugar habitado por outrém, colhida emocional e culturalmente e vivida como se o homem e o espaço fossem impossíveis de dissociar, tornando-nos mais ricos e conscientes ao adquirir mais experiência vivencial e matéria de troca, porque viajar é por si só aprender.
Uma cidade abandonada pelos habitantes é uma cidade fantasma que o vento e o tempo devoram ficando só ruínas, ou nem isso.
A cidade vive porque nela se habita com-a-vida-toda e será sempre o espelho multi-facetado das vivências humanas e das estações do tempo.
A cidade é o espaço de crescimento e desenvolvimento do ser humano que vai construindo memória colectiva como herança de cada geração, para a legar às gerações que vão nascendo.
Lisboa é a minha Cidade - é a cidade que eu tenho cá dentro – porque a gente pertence às cidade e às vilas e a cidade pertence à gente numa interacção constante.
Como as pegadas que deixamos na vida dos outros, a cidade deixa em nós matéria de identificação do que somos e que transborda para não importa que habitante urbano ou rural.




Lugar que pode ser também cidade do ESQUECIMENTO - cidade que esquece os velhos porque os DESACTIVA, ou não valoriza os que, sendo portadores de handicap, são também cidadãos activos, criativos e produtivos
E porque a cidade é o espaço de abrigo que fornece habitação, cultura, religião, serviços, jardins e bem estar, é também o lugar que dá prioridade ao automóvel sobre o peão – que se limita a fornecer espaços lúdicos só para os teenager e não para os velhos, num ambiente que se torna progressivamente hostil e incomunicável com o habitante, perdendo o sentido de cidade e das funções para que foi contruída – as funções dos cidadãos.
Esta Cidade de hoje é a cidade onde MORA o quê ?? A alienação ? O esquecimento da origem da sua função ?? O esquecimento da criação de lugares com "espírito do lugar" e espírito de criar condições de vizinhança, de bem estar e de alegria e de um orgulho de pertença de nela habitar.
(3) Na esteira de George Steiner: “Não é o passado literal que nos governa, excepto, talvez, muma acepção biológica. São imagens do passado: com frequência tão intensamente estruturadas e tão imperativas como os mitos. As imagens e as construçõs simbólicas do passado encontram-se impressas, quase à maneira de informações genéticas, na nossa sensibilidade. (…)” – “No Castelo do Barba Azul – Algumas Notas para a Redefinição da Cultura” (1971), Relógio d’Água, 1992, p 13
Maria Celeste d’Oliveira Ramos, 4 junho 2006
Fotos: ‘O Rio como Paisagem’, Doca de Santo Amaro, Lisboa, 2006 – MCOR.


REGRA DE OURO: HABITAR

Maria João Eloy



A utilização do termo ‘habitar’ traduz tradições e pressupostos contraditórios, reveladores do estatuto dos habitantes de lugares em regime de paz, que é irreconciliável com o dos que sobrevivem nos lugares em guerra; pensar na qualidade do ‘habitar’, releva o significado de pertencer ou não a uma comunidade, de ser ou não reconhecido como habitante, de viver como deslocado e emigrante ou de, paulatinamente, permanecer há gerações no mesmo território.
Além destas situações, em que os envolvidos se empenham na sua cidadania, sempre se puderam encontrar, no ‘habitar’, os sintomas de não pertencer e não acreditar, reflexo das singularidades da vida nua que ignora o implacável poder soberano da cidade, “a coisa mais universal, a coisa mais partilhada (...)” porque “com a cidade temos a impressão de descobrir o mundo tal qual ele é, ‘em directo’, de sermos actor e observador, exploradores de uma selva viva que constitui o próprio corpo da sociedade.”(4)
Reflectindo sobre a esperança daqueles a quem restam tentativas reiteradas de aceder a condições precárias de ‘habitar’, recorrerei à noção de irreparável de Agamben, que não retira nobreza a esse modo de ‘existir’: “O irreparável não é nem uma essência, nem uma existência, nem uma substância, nem uma qualidade, nem um possível, nem um necessário. Não é propriamente uma modalidade do ser, mas é o ser que se dá desde logo na modalidade, é as suas modalidades. Não é assim, mas é o seu assim.” (5)




À necessidade de transmissão, no mundo civilizado, das regras de ouro de ‘habitar’ – aparentemente ausentes do ‘habitar’ precário de todo o tipo de desalojados – tem-se vindo a contrapor uma valorização do papel da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo, numa autoregulação indomável que lança uma disparidade de desafios à pesquisa dos conceitos normalizados para projectar habitação; através de persistentes e trangressoras reconfigurações das regras do ordenamento territorial, do urbanismo e da arquitectura, assiste-se à tentativa de “combater o niilismo do mundo moderno: o abstracto lugar onde não há lugar da metrópole, a destruição do mundo interior do espírito e a impossibilidade de morar de um modo autêntico, no sentido heideggeriano do termo”, como o entende M. Cacciari (6).
É neste sentido que, ao reproduzir a lamentação de Gabriel o Pensador em “O resto do mundo” (7), pretendo ir além da invocação do folclore urbano das metrópoles, interrogando-me sobre o valor dos recursos criativos de grande parte da humanidade; de ‘gente’ que, vivendo fora dos limiares do ‘habitar’ regulamentado dos prósperos centros urbanos, se confronta com a linguagem estrangeira da cidadania participativa, sem lhe poder retorquir, senão através do discurso musical e poético – entre outras formas, das menos violentas, do discurso de ‘existir’:
O resto do mundo
Eu queria morar numa favela (...)
O meu sonho é morar numa favela
Eu me chamo de chêroso como alguém me chamou
Mas pode me chamar do que quiser seu dotô
Eu num tenho nome
Eu num tenho identidade
Eu num tenho nem certeza se eu sou gente de verdade (...)
Eu sou o resto O resto do mundo
Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou... Eu num sou ninguém (...)
Eu sou sujo eu sou feio eu sou anti-social
Eu num posso aparecer na foto do cartão postal
Porque pro rico e pro turista eu sou poluição
Sei que sou um brasileiro Mas eu não sou cidadão
Eu não tenho dignidade ou um teto pra morar (...)
Eu sei que a maioria do Brasil é pobre
Mas eu num chego a ser pobre eu sou podre!
Um fracassado Mas não fui eu que fracassei
Porque eu num pude tentar
Então que culpa eu terei
Quando eu me revoltar quebrar queimar matar
Não tenho nada a perder Meu dia vai chegar
Será que vai chegar? (...)
Eu num sou registrado Eu num sou batizado
Eu num sou civilizado eu num sou filho do Senhor
Eu num sou computado eu num sou consultado
Eu num sou vacinado Contribuinte eu num sou
Eu num sou comemorado eu num sou considerado
Evitando alongar esta interrogação, onde não cabe uma conclusão, escolheria o topos ou clichê que é conhecido na tradição como locus amoenus (lugar ameno, recanto aprazível) para, tentando não-entender e não-classificar os lugares de ‘habitar’ atrás exemplificados, perscrutar neles o ameno, o aprazível e o belo …
(4) Portzamparc, C. de - Prefácio a “ Vers la troisième ville ? ”, Mongin, Olivier; Hachette, 1995 pp. 8, 9.
(5) Agamben, Giorgio – “A comunidade que vem” (1991) - ed.Presença 1993, p 73.
(6) Cacciari, Massimo – “Architecture & Nihilism: on the philosophy of modern architecture”, London, Yale University Press, 1995.
(7) Excertos do texto da faixa 10 “O resto do mundo”, Gabriel o Pensador - CD, Chaos, 1993.
Maria João Eloy, Junho 2006
Fotos:
‘Um rectângulo de ouro no Rio de Janeiro’, 2003 – Vera Eloy.
‘Ordenamento do território entre Pemba e a ilha do Ibo’, Moçambique, 2005 – Margarida Nicolau.
‘O Resto do Abandono’, Ilha do Ibo, Moçambique, 2005 – Margarida Nicolau.

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