quarta-feira, agosto 18, 2010

308 - Percepção rápida da QUALIDADE: Conjunto habitacional premiado no Calhariz de Benfica - Infohabitar 308

Infohabitar, Ano VI, n.º 308
Percepção rápida da QUALIDADE:
Conjunto habitacional premiado no Calhariz de Benfica
artigo de Luís Manuel Jorge Morgado

A visita



Calhariz de Benfica, Lisboa, 13 de Maio às 10 horas da manhã, com algumas nuvens, ameaços de chuva e pontuais abertas. Identifico o conjunto residencial. Preparo-me para uma rápida inspecção, pois o tempo disponível é pouco. Com os conceitos de qualidade arquitectónica residencial presentes percorro-o primeiro pelo exterior. Entro depois no miolo do bairro. Observo de uma forma sistemática. Analiso os pormenores. Sinto os ambientes. Vou disparando a máquina fotográfica...


Fig. 01

Sou observado com atenção pelos poucos residentes que encontro. Sinto-me um forasteiro num território que não é meu. Cumprimento-os, devolvem-me educadamente o gesto e continuo. Vou novamente para o exterior e sou abordado por um homem que recolhe papéis para um saco de lixo:

- O que é que anda aqui a fotografar? - Pergunta-me desconfiado.
- Bom dia, sou arquitecto, estou a fazer um estudo...


- Ah, não é da Gebalis?


- Não! Estou a tirar fotos para fazer um pequeno trabalho para a Universidade.

- Ah...

- Vive aqui não é!? O que é que acha deste conjunto? - Atrevo-me eu.

- Do quê?

- Qual é a sua opinião sobre o bairro, os edifícios, os espaços exteriores?


- É tudo uma merda!


- Como?... - Fico desconcertado.

- É tudo uma merda percebe! Olhe, a água infiltra-se por aqui e vai para o quadro eléctrico. As pessoas são muito porcas. Os miúdos pintam as paredes. Sou eu, que sou pintor que depois estou sempre aqui a limpar. Vem um cheiro horrível das garagens.

- Mas olhe que para mim que sou de fora, isto tem muito bom aspecto. Deve ser agradável viver aqui, tem árvores, é arejado, os edifícios são bonitos.



- Pois tem coisas boas... Reconhece ele mudando o tom.

- E as habitações, as casas, o que é que acha?

- Isso... é bom! Quer ver, sou eu que trato de tudo - abre a porta de entrada do átrio do seu edifício. Tudo muito limpo, muitos vasos, uma passadeira até às escadas.


- Muito bem cuidado... muito bonito, digo eu.

- Mas sou só eu que trato, os meus vizinhos não fazem nada.

Saímos do átrio e continuamos a falar. Diz-me que há só algumas lojas a funcionar, a maioria está vazia. Diz que não percebe porque é que não se usam as garagens. Uma das lojas é ocupada pela Santa Casa da Misericórdia que acusa de ter derrubado os pinos para entrarem automóveis para o interior do quarteirão que deveria ser só para pessoas. Diz que os carros destroem os pavimentos, os sumidouros e a calçada que não foi feita para suportar este peso todo.
Pergunto-lhe se as "praças" não são agradáveis. Aquela onde estamos tem uma bela árvore e bancos para nos sentarmos. Pergunto-lhe também se há muitas crianças.

- Se não fossem os carros... Mas à tarde andam aqui muitos miúdos a jogar... para quem tem filhos é bom!
Despeço-me e ele diz-me novamente que é pintor e continua a apanhar papéis para o saco que depois deita para o lixo. Continua a observar-me e aproxima-se.

- Escreva lá o que está mal...e dá-me um aperto de mão.
Dou-lhe os parabéns pela forma como trata do seu belo bairro.


Fig. 02

Conclusão
Numa visita rápida pelo exterior do conjunto habitacional prémio INH municipal de 2002, no Calhariz de Benfica verifiquei as seguintes marcas evidentes no domínio da qualidade arquitectónica residencial:

- Identidade muito marcada pela imagem forte da arquitectura e pela harmonia do conjunto. Promove a agradabilidade geral dos habitantes que se poderão orgulhar de viver num bairro tão singular.

- A identidade é potenciada pela própria topografia que ajuda a individualizar o território. Os limites são marcados claramente pelos volumes e pelos espaços exteriores. Há um controlo natural do que se passa nos espaços públicos interiores promovendo um sentimento geral de segurança.

- As morfologias do quarteirão, fechado, semi-fechado, e "sugerido", criam condições que propiciam a convivialidade. O tratamento dos espaços exteriores, a existência de árvores, bancos e outros equipamentos promovem o seu uso.

- Nota-se que a arquitectura suscita formas de apropriação provavelmente não previstas pelos projectistas, mas que são positivas naquilo que têm de gestos autênticos de valorização do ambiente residencial.

Como nota final, detectam-se algumas disfunções, nomeadamente no que diz respeito à gestão e uso do espaço: Automóveis a estacionar no miolo pedonal dos quarteirões; destruição de arranjos exteriores pelos automóveis; garagens sem uso; espaços de piso térreo desocupados; algumas apropriações negativas de zonas de estendal para além das previstas; vestígios de vandalismo (vidros partidos, escritos em paredes); e finalmente as fachadas apresentam-se com as colorações desbotadas, o que transforma em negativo aquilo que constitui de início uma marca de identificação positiva.


Autoria do projecto de Arquitectura dos 91 fogos na Travessa do Sargento Abílio
Arquitecto Paulo Tormenta Pinto
Promotor: Município de Lisboa
Construção: 2001

Breves notas do editor:
O autor do artigo, Luís Morgado, é Arquitecto e Professor, cooperou em trabalhos de investigação do Núcleo de Arquitectura e Urbanismo (NAU) do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), frequenta, actualmente, o Programa de Doutoramento em Arquitectura e Desenho Urbano do DECA do IST.
Este programa de doutoramento em Arquitectura é participado pelo LNEC e especificamente pelos doutorados do seu Núcleo de Arquitectura e Urbanismo (NAU), com participações do seu Núcleo de Ecologia Social (NESO).


Advertência ao leitor Nota da edição: embora os artigos editados na revista Infohabitar sejam previamente avaliados e editorialmente trabalhados pela edição da revista, eles respeitam, ao máximo, o aspecto formal e o conteúdo que são propostos, inicialmente pelos respectivos autores, sublinhando-se que as matérias editadas se referem, apenas, aos pontos de vista, perspectivas e mesmo opiniões específicas dos respectivos autores sobre essas temáticas, não correspondendo a qualquer tomada de posição da edição da revista sobre esses assuntos.

Infohabitar, Ano VI, n.º 308
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte, 18 de Agosto de 2010


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