INH, vinte anos de habitação de interesse social em Portugal, de 1984 a 2004
Nota prévia
Numa referência destacada à recente transformação do Instituto Nacional de Habitação (INH) em Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), entidade esta que se saúda e à qual se desejam os melhores êxitos e as maiores felicidades, apresenta-se, em seguida, com um mínimo de alterações, o texto que baseou a intervenção do autor na sessão de apresentação do livro, intitulado “INH, 1984-2004, 20 anos a promover a construção de habitação social”, que teve lugar em Lisboa, na Torre do Tombo, em 26 de Maio de 2006. Este estudo, que foi editado pelo INH e desenvolvido pelo LNEC, em estreita colaboração com um amplo conjunto de técnicos do INH, integra uma síntese técnica da actividade de promoção de habitação levada a cabo pelo INH durante os seus primeiros 20 anos de funcionamento (de 1984 a 2004), num período total de actividade que atingiu os 23 anos em Maio de 2007.
Fig. 00: um dos conjuntos destacados no último Prémio INH, de 2006; uma promoção privada na Gala, Figueira da Foz, 81 fogos; projectistas Arq. Duarte Nuno Simões, Arq. Nuno Simões, Arq.ª Joana Barbosa e Eng. Pinto Martins.
Perfil geral do estudoSalienta-se, em primeiro lugar, que a razão porque se optou por um leque bastante amplo de casos, é que houve uma noção comum de que é bem diferente fazer um conjunto habitacional, por exemplo, numa cidade importante, ou fazê-lo numa zona afastada e por vezes tecnicamente menos equipada. Não é que se considere que tudo o que se apresenta seja de referência arquitectónica, mas há a certeza de que tudo o que se apresenta neste livro configura uma qualidade habitacional com um sinal claramente positivo e que corresponde a uma boa evolução da habitação de interesse social em Portugal.
Procurou-se, assim, fazer um livro útil, de registo comentado da diversificada experiência na habitação a custos controlados (HCC) entre 1984 e 2004, sem se esquecer o que aconteceu antes, em Portugal, nesta matéria da habitação de interesse social, pois para haver presente e futuro, tem de haver passado.
Fig. 01: Bairro Social do Arco do Cego, Lisboa, iniciado em 1918 (e com um muito longo período de construção), projecto dos arquitectos Edmundo Tavares e Frederico Machado; um dos primeiros “bairros sociais” portugueses e com uma dimensão importante (quase 500 fogos).
Estrutura do estudo : a promoção apoiada pelo INH na pequena história da habitação de interesse social portuguesa
O trabalho é iniciado com a fundamental referência aos projectistas coordenadores, promotores e construtores dos mais de 250 conjuntos residenciais que representam, neste livro, a promoção financiada e apoiada pelo INH nos seus vinte anos de actividade, entre 1984 e 2004.
Depois da apresentação e do enquadramento geral do tema, desenvolvem-se algumas reflexões sobre o conceito de habitação com qualidade e custos controlados e sobre o interesse do registo das boas práticas.
Faz-se, em seguida, a apresentação sintética de vinte anos de actividade do Instituto Nacional de Habitação (INH).
Depois procede-se a uma abordagem técnica resumida da promoção de habitação de interesse social, em Portugal, no período entre 1918 e 1984, que antecedeu a criação do INH, privilegiando-se, quer o apontar da sequência das instituições e organismos que têm sido responsáveis, em Portugal, pela promoção de habitação de interesse social, quer algumas reflexões gerais sobre os respectivos resultados, designadamente, quanto à aliança entre qualidade arquitectónica e satisfação residencial.
Em seguida apresenta-se o Prémio INH, através da apresentação da sua metodologia, baseada no contacto directo com as habitações habitadas e em reuniões de discussão e análise com a presença do júri e dos promotores, projectistas e construtores – foram feitas, até 2006, 568 acções deste tipo – e na caracterização do seu papel, considerado positivo e significativo, na dinamização das boas práticas habitacionais, seguindo-se uma pequena “viagem” pela evolução dos diversos tipos de promoção de HCC ao longo das várias edições do Prémio.
Finalmente desenvolve-se, em três grandes capítulos – cada um deles referido a um dos tipos de promoção de HCC (municipal, cooperativa e privada) – a apresentação, ano a ano, ao longo de vinte anos de actividade do INH, de mais de 250 casos individualizados da promoção habitacional financiada e apoiada pelo Instituto, salientando-se os respectivos projectistas, promotores e construtores, e sintetizando-se, para cada uma das promoções, as respectivas características urbanas e arquitectónicas residenciais, acompanhadas por imagens fotográficas e alguns elementos dos respectivos projectos.
Optou-se por uma apresentação ampla e com sinal positivo, de uma grande diversidade de situações e tipologias urbanas e arquitectónicas e, também, por uma estruturação anual, que integra as três modalidades de promoção (municipal, cooperativa e privada). Esta opção baseia-se, essencialmente, em ter-se privilegiado um tipo de livro com carácter intermédio entre o manual técnico e a apresentação de maior divulgação, de forma a poder-se obter, assim, um máximo de utilidade na sua utilização.
Como remate do trabalho faz-se o apontamento de algumas notas conclusivas ligadas ao que se julga poder ser a sua utilidade e o seu potencial no desenvolvimento de estudos práticos e aprofundados sobre a aliança que as tipologias de arquitectura urbana podem e devem proporcionar entre a qualidade do respectivo desenho doméstico e urbano e a satisfação residencial e cívica dos respectivos habitantes.
Fig. 02: o Bairro de Ramalde, no Porto, cerca de 1955, uma obra do Arq. Fernando Távora e “a primeira referência às propostas do movimento moderno no âmbito da habitação económica”, nas palavras do Arq. Francisco Barata.
Não há presente, nem futuro, sem passado
É infelizmente corrente começar ciclicamente tudo ou quase tudo de novo, mesmo que a experiência acumulada tenha um claro sentido positivo. Mas, como já se disse aqui, não há presente, nem futuro, sem passado. E para haver passado tem de haver registos, análises e divulgações do que foi feito.não há futuro sem memória viva. Não há, realmente, futuro sem memória, nem há futuro sem uma memória viva, portanto estruturada e ponderada.
Não é admissível continuarmos a pensar tudo de novo quando se desenvolve uma nova intervenção residencial, isto não devia ser possível quando tanto já foi feito em termos de habitação e urbanismo com interesse social, em Portugal – num período de cerca de 85 anos – e nos mais de 100 anos de habitação social na Europa.
A história da habitação de interesse social é feita, naturalmente, de progressos e retrocessos, e a utilidade, de primeira linha, de uma ferramenta de divulgação, como este livro, é mostrar claramente, a quem queira ver, que é possível fazer habitação com controlo geral de áreas e de custos, e com um positivo controlo da sua qualidade arquitectónica; e, mais do que isto, que é possível fazê-lo, sem quaisquer tipos de estigmas negativos em termos de imagem urbana, conteúdo funcional e solução tipológica; ver para crer...
Naturalmente, quem conheça a evolução das três linhas de promoção de HCC – municipal, cooperativa e privada –, percebe, ao longo do correr das páginas deste livro, a flutuação da qualidade e da quantidade dos diversos tipos de promoção; mas quem conhece esta história conhece-lhe a sua evidente qualidade global crescente, que é o que importa aqui e agora salientar.
Alguns aspectos que caracterizaram os três tipos de promoção de HCC:
A grande diferença entre a intensa actividade e qualidade da promoção das Cooperativas de Habitação Económica, que marcou claramente o primeiro decénio e o início do segundo decénio de funcionamento do INH, mas que, a partir daí, foi reduzindo gradualmente essa mesma actividade no domínio da HCC. Condição esta muito empobrecedora da diversidade da oferta habitacional e que muito prejudica a fundamental miscigenação social e física em cada conjunto residencial; e há aqui que sublinhar que se houvesse uma análise pormenorizada dos cuidados de gestão e manutenção posterior à ocupação, esta promoção ficaria ainda mais em evidência.O gradual mas claro crescendo de qualidade da promoção municipal, provavelmente associado ao gradual equipamento técnico dos municípios; e é de assinalar a grande qualidade e a verdadeira marca de exemplaridade que tem caracterizado, nos últimos 10 anos esta promoção municipal; um pouco herdeira da exemplaridade da promoção cooperativa dos primeiros 10 anos.
Quanto à promoção privada bastará dizer que ela também foi responsável por algumas das melhores soluções desenvolvidas, nos últimos vinte anos, embora num reduzido número de casos.
E o desenvolvimento de grandes quantidades de fogos para realojamento de pessoas que viviam em barracas, realizado no âmbito do PER, que marcou o segundo decénio da promoção de HCC e que provocou retornos pontuais, mas negativos, de grandes concentrações. Sobre esta problemática há que destacar que não deveria ser possível repetir maus exemplos, que todos sabemos irão reflectir-se em muito negativas consequências sociais para as populações realojadas e para as de acolhimento e, afinal, há casos de municípios que fizeram muito bem, intervenções de pequenas escala e bem integradas, mas também fizeram mal, conjuntos massificados e inadequados aos seus habitantes.
Fig. 03: as belíssimas primeiras fases da EPUL no Restelo, Lisboa (de 1973 a 1985); projecto urbano dos arquitectos Nuno Portas e Teotónio Pereira e do paisagista Gonçalo Ribeiro Telles; projecto de edifícios dos arquitectos Teotónio Pereira, Pedro Botelho e João Paciência.
Aprender com as boas práticas e disseminar as boas práticas habitacionais
Falemos então da relação directa entre esta publicação e algumas das actividades desenvolvidas pelo INH, entre as quais se destacam:A realização de fóruns e acções de formação, acções estas em que houve muito frequentemente a colaboração activa de investigadores do LNEC e, ultimamente, do Grupo Habitar.
A Promoção de um prémio anual, que chegou já à 18ª edição e que se caracteriza por visitas a todos os conjuntos candidatos, incluindo-se sessões de apresentação, discussão e análise local das opções escolhidas; actividade formativa e informativa que já está próxima de chegar às seis centenas de acções locais.
E a edição anual do catálogo do Prémio, revestida de um importante carácter técnico, e complementada pela muito útil publicação dos chamados Casos de Referência, também já com muitos casos editados; iniciativas estas coordenadas pelo Arq. Rogério Pampulha;
Refiro estas iniciativas do INH, porque tenho a convicção que o trabalho que hoje se apresenta constitui uma peça de remate, que complementa estas várias actividades.
Quando iniciei a elaboração do livro pensei que uma das suas principais utilidades seria ajudar a que fosse mais difícil poderem desenvolver-se retrocessos em termos de uma habitação de interesse social que se deseja funcional e culturalmente qualificada. O que quero dizer com isto é que uma informação sistematizada como a que está agora disponível, neste livro, na mão de projectistas e de responsáveis pelo desenvolvimento habitacional, constitui uma ferramenta que, para além do útil aspecto do apontamento de caminhos e de ideias, ajuda a consolidar a noção de que “a fasquia” da qualidade residencial global da habitação de interesse social chegou já a um nível relativamente elevado, e que há uma grande diversidade de modelos residenciais e urbanos possíveis.
Combatem-se assim dois fantasmas negativos que sempre assombraram cada nova promoção de interesse social: a ideia de que este tipo de iniciativa tem de ter uma imagem global específica e, tantas vezes, negativamente discriminada; e a ideia de que a habitação de interesse social tem de se cingir a um leque tipológico reduzido e pouco imaginativo.
Julgo que este é um papel essencial deste livro, se estiver presente em muitas mesas de trabalho e for verdadeiramente usado, como se deseja, por muitos colegas; e já agora aproveito para dizer mais alguma coisa neste sentido, é que o leque de soluções apresentadas pode também servir, em todo o país, como mais uma referência para a promoção habitacional da iniciativa privada, numa perspectiva em que fará pouco sentido que esta habitação possa oferecer resultados construídos com uma qualidade global inferior à patente nos muitos casos apresentados de HCC.
Outra utilidade deste livro é servir de elemento de intercâmbio e de disseminação de experiências seja dentro do espaço lusófono seja na UE, seja com os países geográfica e culturalmente ligados a Portugal; é possível aprofundar agora uma tal troca de experiências, pois passa a haver uma ferramenta ilustrada e bilingue, e todos ganharemos com essa divulgação; chega de viver de costas voltadas e chega de repetir experiências, quando podemos saltar etapas, pois os casos residenciais são específicos, mas têm frequentemente, importantes aspectos comuns.
Fig. 04: no Prémio INH, ao longo de 18 edições, realizaram-se centenas de reuniões de debate e de crítica como esta na inagem, que reuniram, em cada local e após a visita a cada conjunto residencial e urbano, os membros do Júri do Prémio (júri multidisciplinar) com os respectivos projectistas, promotores e construtores, numa inestimável acção de formação/informação e disseminação de experiências.
Ensinamentos da Habitação de Interesse Social
Nesta matéria da experiência, a história da habitação social na Europa e em Portugal deu-nos soluções inovadoras, designadamente ao nível do habitar humanizado, num rico filão de arquitectura residencial e urbana, cujas potencialidades foram ainda pouco exploradas. Exemplifica-se isto com um exemplo concreto:No início da promoção de interesse social em Portugal, no lisboeta Bairro Social do Arco do Cego, lançado em 1918, foram desenvolvidas bandas super-densificadas de pequenos unifamiliares agrupados costas com costas e em ruas contínuas, que, hoje em dia, passados que são cerca de oitenta e cinco anos, continuam a ter uma extraordinária procura; diga-se que é por causa do sítio, com certeza que também é, mas as áreas das casas são bem reduzidas – as típicas da “habitação social” – e não há garagens, nem outros “luxos”.
Hoje em dia, alguns conjuntos de habitação de interesse social que marcaram a história desta promoção começam a ser considerados como marcos culturais da sociedade e da cidade.
Afinal, e considerando a grande variedade e qualidade das soluções de habitação apoiada que se conhecem na Europa é possível defender, tal como referem Giovanni Ottolini e Vera De Prizio, que “a reduzida qualidade funcional e de desenho de muitos edifícios habitacionais não depende de razões de custo, mas de carências de projecto e de estereótipos de produção.” (1)
E podemos citar Monique Eleb, quando esta refere que “o alojamento de luxo não oferece hoje em dia um modelo de habitar e isto acontece há decénios”, e, tal como diz a autora, “as diferenças entre habitações de luxo e sociais têm menos a ver com aspectos de estruturação e distribuição e mais com a localização, expressão das fachadas ou utilização de certos materiais.”(2) – e eu diria que esta é uma frase-chave, apenas lhe junto a importância que tem o adequado desenvolvimento e equipamento do espaço exterior; uma árdua batalha que foi travada e em boa parte já ganha pelo INH.
Tal como o Arq.º George Ferguson, presidente do Royal Institute of British Architects (RIBA), referiu, há pouco tempo, “uma escola melhor desenhada leva a um melhor ensino, e uma casa e um escritório melhor desenhados resultam em pessoas mais felizes.”(3)
Se assim for, e considerando conjuntos habitacionais frequentemente dedicados a pessoas socialmente desfavorecidas, é natural que a promoção de habitação de interesse social, possa assumir um papel de relevo como ferramenta de apoio ao desenvolvimento pessoal e social dessas pessoas e das respectivas vizinhanças e comunidades locais.
Tem, assim, de ficar bem claro que viver numa obra de boa arquitectura residencial é uma experiência que influencia muito positivamente toda a nossa vida; um tema hoje bem actual quando se está, finalmente, no caminho certo da arquitectura para os arquitectos. Trata-se de um facto conhecido, mas parece que tem sido ainda pouco interiorizado pela própria sociedade, em termos da importância que tem no que se refere à evolução de soluções formais e funcionais em ligação, por um lado, com a história da cultura e do sequencial enriquecimento do nosso património urbano, e por outro, com os aspectos da satisfação das necessidades e desejos de uma grande diversidade de grupos socioculturais.
Não irei avançar mais nesta matéria, quero apenas alertar para a importância que tem poder-se numa boa arquitectura, uma condição que é, realmente, indutora de alegria. Nesta perspectiva faz-se no livro uma rápida síntese da sequência de soluções que marcaram a história da habitação de interesse social portuguesa, destacando-se, naturalmente, o desenvolvimento de soluções arquitectónicas bem qualificadas e humanizadas, como é o caso:
- do ainda hoje inovador grande bairro de Alvalade, em Lisboa, caracterizado por ser um conjunto integrado de habitação para vários grupos sociais e de equipamentos colectivos e serviços dos mais diversos tipos, mas bem harmonizados, uma verdadeira cidade viva e atraente, marcada por uma arquitectura urbana bem pormenorizada;
- e como é também o caso do mais amplo e completo exemplo residencial modernista que existe em Portugal, o bairro de Olivais Norte, também em Lisboa, com a sua aliança entre qualidade arquitectónica e satisfação residencial; e sublinhe-se que o urbanismo de Olivais Norte respeita regras, bem actuais, de biodiversidade, durabilidade, coerência urbana e natural, favorecimento da insolação e da ventilação natural nos fogos, integração do tráfego de peões e veículos, e harmonizada integração de diversos grupos sociais.
Um conjunto de aspectos todos ligados à, tão actual, sustentabilidade urbana e residencial.
Fig. 05: o conjunto urbano com 330 habitações do Alto da Loba, em Paço de Arcos, promovido pela Câmara Municipal de Oeiras em 1993, com projecto dos arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Pedro Botelho.
Lançar algumas reflexões sobre a habitação de interesse social
Apontam-se, agora, muito brevemente, algumas questões fundamentais, colocadas por ilustres projectistas do habitar; começo por Charles Moore:“A casa deveria constituir o centro do universo para aqueles que a partilham. Resolver o puzzle para o centro do universo de uma única família é uma tarefa complicada, cheia de sensibilidades particulares, gostos pessoais e necessidades específicas, para não falar em orçamentos. Mas articular dezenas, ou até centenas destes centros, conjuntamente, para serem habitados por pessoas cujas identidades geralmente não são conhecidas e que estão em constante mutação, aproxima-se de uma situação sem esperança de resolução... Muita da nossa prática tem sido neste mundo ténue, tentando desenvolver a perspectiva na qual as formas físicas e os espaços podem produzir um sentido de lugar, e tentando desenvolver um quadro no qual os próprios habitantes proporcionam boa parte da energia para o acto do habitar.” (4)
E é ainda Moore que nos diz: “Estou contra as atitudes que fazem de edifícios com potencial para comunicar com os seus habitantes, edifícios mudos. Estou contra a rápida homogeneização do lugar. Acredito que este silêncio é imposto pelo fazer edifícios sem cuidado, e multiplicando uma tal falta de cuidado sem qualquer preocupação. O resultado foi que os edifícios, quando tornados mudos, ficaram tão desinteressantes, que os habitantes deixaram de tomar atenção neles, deixaram de se preocupar com eles.”(5)
Uma questão que foi também abordada numa conversa editada, há já alguns anos, na revista Arquitectura, e em que se faz uma aproximação à aparente naturalidade e simplicidade da boa arquitectura doméstica:
(dizia Hestnes Ferreira) – “Aquela ideia da casa, muito ligada até aos românticos, e sei lá, ao Thoreau, o tipo que vai para a floresta, corta a árvore, arranja as pranchas, faz a sua casa e ali, ali é a sua casa; é uma ideia que continua, a estar presente, culturalmente ...
(dizia Manuel Vicente) – Afinal uma casa é boa para uma família quando for boa para todas, não é? Mas isto não é o elogio do anónimo mas antes da extrema qualidade, a universalidade pela qualidade e não a universalidade pelo «éffacement», pelo apagar.
(dizia Bravo Ferreira) – O neutro ... o neutro é chato em qualquer situação, é sempre cinzento...
(dizia Manuel Vicente) – Do neutro ninguém se apropria... uma pessoa só se apropria daquilo que ama. Uma pessoa não pode amar uma coisa que não seja nada.
(dizia Hestnes Ferreira) – E quando visitamos uma casa do século passado e ficamos deslumbrados com certo tipo de espaços e gostamos mesmo de ir para lá, isso é mesmo um sintoma de que aquilo transcendeu a família para quem foi feito, continua a sugerir e se calhar já foi utilizada de mil e uma formas, já teve mil e uma jarras diferentes em mil e uma mesas diferentes.
(e concluía Bravo Ferreira): restou-lhe sempre a qualidade, e essa é que está sempre.” (6)
E, finalmente, nesta matéria, lembremos Távora (em “Da organização do espaço” ):
“Projectar, planear, desenhar devem significar encontrar a forma justa, a forma correcta... projectar, planear, desenhar não deverão traduzir-se para o arquitecto na criação de formas vazias de sentido...” (p. 74).
“Para além da sua preparação especializada – e porque ele é homem antes de arquitecto – que ele procure conhecer não apenas os problemas dos seus mais directos colaboradores, mas os do homem em geral. Que a par de um intenso e necessário especialismo ele coloque um profundo e indispensável humanismo. Que seja assim o arquitecto – homem entre os homens – organizador do espaço – criador de felicidade” (p. 75).
Acabei de citar; e sublinho esta renovada referência à criação de felicidade com a arquitectura.
Fig. 06: o estimulante e bem pormenorizado conjunto de 72 fogos promovidos pela Cooperativa de Habitação e Construção de Cedofeita (HABECE), em 1994, projecto dos arquitectos João Pestana, Chaves de Almeida e Fernando Neves.
Notas sobre o futuro da “habitação de interesse social
Avancemos agora com algumas notas, muito breves, sobre o futuro da habitação de interesse social e comecemos com o que se julga ter sido já conseguido; apontam-se seis aspectos:1. Assumir-se o espaço exterior como espaço do habitar, que merece, portanto, acabamento, equipamento e manutenção; uma conquista difícil do INH, ao longo da sua vida, mas já bem conseguida, embora ainda mereça aprofundamento.
2. A muito rica diversidade e adequação local, que marcou, por todo o país, as muitas promoções de HCC apoiadas pelo INH e desenvolvidas por municípios, cooperativas e empresas; embora o verdadeiro fantasma do projecto-tipo ainda, por vezes e pontualmente, subsista ou renasça.
3. O desenvolvimento em todos os tipos de promoção de HCC de um número significativo de verdadeiros casos residenciais e urbanos globalmente exemplares, em que se alia qualidade arquitectónica, construtiva e apropriação pelos moradores.
4. A tendência crescente, embora ainda pouco marcada, de desenvolvimento de soluções bem caracterizadas, integradas e valorizadoras dos respectivos sítios; uma tendência que é preciso reforçar.
5. A dimensão tendencialmente reduzida dos conjuntos, muitos deles até cerca de 50 a 100 fogos, portanto favoravelmente integráveis; embora aqui haja ainda que lutar contra as críticas fugas à regra, marcadas pela concentração social e ainda por projectos-tipo sem justificação.
6. E um sexto aspecto que se liga à pequena dimensão e que é a positiva tendência de aproximação às características socioculturais dos habitantes, aliada à descoberta das virtudes de uma diversificada mistura de tipos de habitações e de grupos de habitantes.
Sobre o que há para fazer, sublinha-se o seguinte comentário de Nuno Teotónio: “há poucas décadas atrás praticava-se na habitação social uma arquitectura de ponta, que enfrentava os problemas com soluções inovadoras” (7); ... e, sobre isto, e avançando mais um pouco, partilha-se a opinião de Francesc Peremiquel, relativamente à actual escassez de inovação tipológica residencial, que deveria ser baseada no desejável repensar de funcionalidades domésticas e de relacionamentos urbanos (8).
Devem, assim, ser aprofundados aspectos, tais como: a caracterização dos modos de vida de diferentes grupos populacionais, a definição de programas gerais e específicos de exigências, a análise de soluções habitacionais aplicadas que tenham tido sucesso ou insucesso, e a caracterização pormenorizada de diferentes tipologias e agrupamentos habitacionais, por exemplo, no que se refere aos aspectos do convívio, da adequação à família e ao indivíduo e da gestão.
A este nível salienta-se ainda a urgência de se realizarem estudos práticos sobre o que pode ser o habitar dos grupos sociais mais fragilizados e a questão da adequada caracterização das pequenas tipologias, numa perspectiva que vise a sua efectiva integração na cidade.
Ao nível urbano há que privilegiar os agrupamentos de vizinhança, pois se no edifício habitacional muito já foi desenvolvido, na programação dos equipamentos colectivos e espaços públicos de vizinhança é vital um trabalho ponderado sobre que elementos de programa a considerar e em que relações preferenciais, diversificando misturas tipológicas de fogos, edifícios e espaços públicos. E sublinhe-se que se pensa quer em intervenções de raiz, quer em intervenções de regeneração urbana.
Pode dizer-se que muito de tudo isto tem a ver com um jogo de agregação tipológica com sentido amplo, que privilegia o micro-urbanismo e alguma inovação na conjugação entre células habitacionais – inovação esta muito ligada à adaptabilidade doméstica e aos possíveis serviços comuns; mas um jogo que tem de ter, simultaneamente, dois “clientes” a satisfazer: o habitante e a cidade, o bem-estar e a cultura.
E assim pode dizer-se que, hoje em dia, estudar a habitação de interesse social deve ser estudar a cidade e o modo como fazer cidade viva pois, como disse Manuel Correia Fernandes, “o modo mais natural de fazer cidade é (fazê-la) com habitação. E Correia Fernandes sublinha que “cidade sem habitação não faz sentido. E quando faz, é certo estarmos a falar de cidades «únicas» e talvez nem sequer estejamos a falar da cidade dos homens. Não são essas cidades que agora nos interessam. As que nos interessam são as cidades onde vivem os homens e onde podemos ler a sua história” (9) - acabei de citar.
E fazer cidade viva é saber construir no construído e fazer cidade socialmente integrada, imitando alguns dos aspectos que caracterizaram, tal como nos diz Teotónio Pereira, “os verdadeiros sucessos neste domínio que constituíram os bairros de Alvalade e dos Olivais em Lisboa; nestes casos, os programas de realojamento foram concretizados de uma forma integrada em áreas que foram objecto de outro tipo de promoção também da iniciativa do Estado e mesmo de promoção privada ... e cooperativa... Porque é aqui que se joga o futuro das zonas urbanas das áreas metropolitanas: ou se fazem planos integradores dos diversos estratos da população, através de modos de promoção variados, ou irá acentuar-se a segregação social do espaço urbano com todas as consequências perversas que daí decorrem.” (10)
Fig. 07: um pormenor do muito humanizado pequeno Bairro do Telheiro, em S. Mamede de Infesta, uma promoção da Câmara Municipal de Matosinhos, em 2002, com projecto do Arq. Manuel Correia Fernandes.
A importância de humanizar a habitação
E chegamos, por fim, ao centro da questão, que é a humanização da habitação, pois tal como escreve, Joaquín Arnau: “A substância dos hábitos constitui a habitação. E a habitação é a função que propicia e decanta a Arquitectura. Como a visão na Pintura, a audição na Música, a leitura na Poesia ou o movimento na Dança, a habitação afina-se, magnifica-se e resplandece com a Arquitectura. Que é o esplendor da habitação. Diferente de outros hábitos, como os de ver ou ouvir, complexos mas concentrados num só dos sentidos, o hábito de habitar liga-se a todos eles. Na pluralidade das sensações, a Arquitectura assemelha-se ao Teatro. A habitação é assim o propósito principal da Arquitectura: a sua tese.” (11)E continua Claire Cooper Marcus: "A casa pode ser um quarto ou uma habitação completa... e também pode ser um estado de espírito. Sentir-se em casa é sentir-se confortável, à-vontade, relaxado, rodeado, talvez, por aqueles que realmente nos percebem e se preocupam connosco... Para o homem-santo errante, estar em casa pode ser estar em qualquer parte do mundo, em quaisquer condições. Mas para a maioria de todos nós, seres humanos menos evoluídos, a existência de uma habitação permanente, onde nos possamos enraizar é, tanto uma componente necessária de segurança física, como uma expressão psicológica muito significante de quem nós somos." (12)
E a casa não pára na soleira, há que habitar o espaço público respeitando a sua natureza específica, tal como é apontada por Gonçalo Byrne: “A grande diferença da cidade para o edifício é que a cidade é uma obra que gera espaços compartilhados onde as pessoas estão condenadas a encontrar-se; é o espaço público. O facto de ser compartilhada justifica a gestão democrática, ou seja, a gestão que não exclui.“ (13)
E sobre o espaço público, sobre a sua importância e estimulante complexidade, apenas uma pequena frase de Eduardo Prado Coelho, que nos diz que: “- Há alguma coisa nessa actividade, que é o filosofar, que tem alguma afinidade com o caminhar …” (14)
Fig. 08: o conjunto de 91 habitações promovido pela Câmara Municipal de Lisboa na Travessa do Sargento Abílio, no Calhariz de Benfica, em 2001, com projecto do Arq. Paulo Tormenta Pinto.
Remates sobre a HCC portuguesa
Vou agora concluir. Muito se fez, em Portugal, ao longo dos últimos 22 anos de promoção de habitação de interesse social e antes deste período, desde os primeiros decénios do século XX, e é urgente estudar e aproveitar essas experiências, divulgando-se as boas práticas, aprofundando-se o conhecimento sobre as características e as potencialidades das diversas tipologias urbanas e residenciais, assegurando-se o desenvolvimento dos aspectos positivos, reduzindo-se ao máximo os negativos, e tudo se fazendo para que, cada vez mais, não haja retornos pontuais a erros passados, tais como os da concentração e segregação social e da monotonia e da tristeza de imagens.Este livro é mais um passo nesta linha de estudos práticos, que importa prosseguir numa perspectiva de aprendizagem continuada, servida por um registo eficaz, por uma abertura ao diálogo e à cooperação multidisciplinar e pela referida divulgação alargada e comentada das boas práticas.
O INH e futuramente a instituição que lhe sucederá, o IHRU, podem contar com o LNEC, com o amplo leque disciplinar do seu Departamento de Edifícios e com o seu Núcleo de Arquitectura e Urbanismo para apoiar o desenvolvimento dos trabalhos sobre habitação apoiada em Portugal, tal como aconteceu no passado, um passado que vai já, longe, até à actividade das “Habitações Económicas.”
E nesta problemática é fundamental visar três aspectos-chave:
– Perceber que “a boa arquitectura dignifica quem a concebe e promove, dignifica o lugar onde se implanta, e dignifica os seus moradores” – nas palavras de Duarte Nuno Simões (intervenção na entrega dos Prémios INH 2000).
– Considerar a habitação como um problema urbano, cívico e político, pois, nestas matérias do habitar, e tal como refere Luís Fernández–Galiano, “precisamos de mais arquitectura, mas, sobretudo, precisamos de mais cidade.” (15)
– E precisamos de mais cidade viva e culturalmente válida e de soluções de habitar que sejam, tal como defende Teotónio Pereira, “instrumentos de igualdade de direitos de cidadania” (16), e precisamos de seguir o conselho de de George Patrix e “introduzir, nos programas habitacionais, valores sensíveis às aspirações do homem, ... ultrapassando o razoável e o funcional... voltando a dar um rosto humano ao espaço construído ... voltando a dar uma dimensão poética ao nosso ambiente envolvente” (Design et Environnement, 1973, p.165).
Termina-se com uma referência a esta última dimensão, num poema do madeirense José António Gonçalves:
“O arquitecto é um ser que caminha sobre a espuma das paisagens
e vive encantado pelas sombras que sobrevivem à flor da relva exactamente
no lugar onde as outras pessoas nunca passam
perguntam os mestres no cruzamento das traves onde
descansa o arquitecto
curiosamente maravilhados pelo silêncio
que se desprende das paredes
consumindo a casa toda a partir do traço exacto
que descai do tecto
em direcção ao corpo
da terra...
eis o arquitecto debruçado sobre a mesa com a aflição
dos guerreiros ...
o arquitecto é o abismo que atormenta o sonho”
Fig. 09: um dos conjuntos destacados no último Prémio INH, de 2006; uma promoção da Câmara Municipal de Matosinhos, em Matosinhos, 108 fogos projectados pela Arq.ª Paula Petiz.
Notas:
(1) Giovanni Ottolini e Vera De Prizio, “La casa attrezzata - qualità dell'abitare e rapporti di integrazione fra arredamento e architettura”, 1993.
(2) Monique Eleb, Anne Marie Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, 1997, p.17.
(3) Artigo de Rita Jordão Silva no Jornal Público de 29 de Novembro de 2004, citando George Ferfuson, Presidente do Royal Institute of British Architects na inauguração da nova galeria do Victoria and Albert Museum, dedicada a uma exposição permanente de arquitectura, num significativo retorno ao passado pois até 1909, e tal como se refere no artigo, “a arquitectura era a alma do Victoria and Albert Museum”.
(4) Oscar Riera Ojeda e Lucas H. Guerra, “Moore Ruble Yudell – Houses & Housing”, 1994, p. 12.
(5) Idem, Ibid.
(6) Raul Hestnes Ferreira (HF), Manuel Vicente (MV) e Vicente Bravo Ferreira, “Conversa à roda de uma casa”, Arquitectura, n.º 129, 1974, pp. 36-40.
(7) Nuno Teotónio Pereira – Escritos (1947 – 1996, selecção), p. 252.
(8) Francesc Peremiguel – Mètodes, instruments i tècniques pel projecte residencial, em Habitatge: innovació i projecte.
(9) Manuel Correia Fernandes – Anos 80 As Cooperativas de Habitação e o Desenho da Cidade, a Senhora da Hora em Matosinhos, p. 1.
(10) Nuno Teotónio Pereira – Tempos, Lugares, Pessoas, p. 38.
(11) Joaquín Arnau – 72 Voces para un Dicionario de Arquitectura Teorica, p. 99.
(12) Claire Cooper Marcus, "Self-identity and the Home", em "Housing: Symbol, Structure, Site", ed. Lisa Taylor
(13) Inês Moreira dos Santos e Rui Barreiros Duarte (entrevistadores), “Estruturas de mudança - entrevista com Gonçalo Byrne”, Arquitectura e Vida, n.º 49, 2004, p. 51.
(14) Eduardo Prado Coelho, “O inabsorvível”, Público - opinião, 17 Janeiro 2004
(15) Luís Fernández–Galiano, Editorial de “Arquitectura Viva”,” nº 97, 2004.
(16) Nuno Teotónio Pereira – Escritos (1947 – 1996, selecção), p. 252.
Editado por: José Baptista Coelho
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