segunda-feira, maio 01, 2006

82 - QUALIDADE DO AMBIENTE URBANO, I – A NATUREZA ÀS PORTAS DA CIDADE, artigo de Celeste.Ramos - Infohabitar 82

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QUALIDADE DO AMBIENTE URBANO, I – A NATUREZA ÀS PORTAS DA CIDADE

artigo de Celeste.Ramos
Com a colaboração e imagens de António Baptista Coelho


Creio que se pode situar na Grécia Clássica o início do conceito de ordenamento urbano que foi adquirindo diferentes concepções ao longo da história em que homens não pararam as guerras de conquista territorial, fazendo desaparecer cidades e outras reconstruídas, até haver mais estabilidade sobretudo no desenho de fronteiras físicas.
Por outro lado várias circunstâncias de natureza climática, em regiões de clima desértico, faziam afluir aos centros urbanos os habitantes dispersos, sobretudo porque, embora frequentemente captada a muitos quilómetros de distância, era nas cidades que se tinha acesso à água provocando explosão demográfica e de centros de comércio e cultura.
Também as guerras mais recentes da Idade Média obrigaram à construção de edificados densos e tortuosos dentro de muralhas, o mesmo sucedendo com as duas guerras mundiais em que cidades inteiras foram quase totalmente destruídas, mas logo levantadas como na europa central, levando a recuperação já com novos conceitos de ordenamento também humano contando com a existência do automóvel e com áreas para uso exclusivo de peões e geralmente áreas de comércio e de cultura.




Esse conceito viria, porém, devido ao fenómeno da industrialização no fim do séc. XIX, a ser revisto, considerando-se a partir daí o mais moderno conceito de ordenamento urbano sendo o mais referido o arquitecto Nash que executou o Great Plan de Londres, contemplando alteração e evolução das funções da cidade, e tal que surgiriam novos conceitos e designações de cidade, a cidade-satélite e cidade-nova e mesmo a Cidade Nova industrial, uma das designações mais modernas centrada nos aspectos de funcionalidade especificamente industrial, da mesma forma que novas cidades apareciam centradas essencialmente na função administrativa, como é o caso de Nova Delhi e de Brasília, tendo esta também a função de "povoamento" do interior brasileiro - o planalto do Serrado, situação que entretanto provocou grandes dramas humanos e sociais porque "a família foi forçadamente separada" do Rio de Janeiro (já segunda capital -1ª. capital Olinda-Recife) para milhares de quilómetros de distância alterando drasticamente a vida quotidiana por terem de deixar para trás a maioria dos familiares, vizinhos e amigos e mesmo ambientes e hábitos.
Ao visitar a cidade de Brasília por duas vezes, com 10 anos de distância, a cidade fantasmagórica e triste, da primeira visita com áreas ainda em construção, era ao fim de 10 anos muito diferente porque as árvores já tinham algum porte, outras plantas ornamentais cresciam e floriam nos jardins e, sobretudo, já tinham também nascidos crianças.
Em paralelo, nos arredores, a cidade de barracas dos trabalhadores da construção de Brasília tornou-se uma "cidade paralela" onde ficou grande parte dos operários e que foi crescendo, e embora sem estrutura urbana organizada, parecia "mais humana" porque a cada passo se podia parar num restaurante, ou encontrar um amigo e beber um cafezinho mesmo ali ao lado, ou simplesmente parar numa rua de dimensão "normal" e conversar ou, ainda, parar e olhar quem passa.
Com o Plano de Londres preservar-se-ia o núcleo urbano antigo e denso, centro a partir do qual "nasciam" vários círculos concêntricos onde se construíam controladamente a Cidade Nova ou Cidade Satélite, mas integrando todos os palácios e parques e Jardins, e área agrícola, nascendo, assim, igualmente, o conceito de "green belt", conceito que mais tarde transmigraria para Paris com as cidades de "banlieu" e a sua "ceinture verte" abrangendo o Bois de Boulogne, o Bois de Vincennes, Saint Germain-en-Laie, e Buttes-Chaumont entre outros.



Este conceito foi igualmente adoptado por Moscovo e pretensamente em Lisboa mas sem qualquer sucesso porque em quase todas as "quintas" e palácios com espectaculares parques e jardins de Benfica e Loures, Caneças e Lumiar, se construíram urbanizações sem qualquer plano de ordenamento urbano e viário. O que eram belíssimas áreas das franjas de Lisboa, constituindo hoje contínuo-edificado inimaginavelmente caótico e de mediocridade total a atestar o que sobretudo a partir dos anos 70 sucedeu à cidade organizada e bela para habitantes orgulhosos do seu burgo o que, por sua vez fez derrapar para o actual desmoronamento dos sujos bairros, alguns ainda em precário equilíbrio de desenho e estética, mas que dentro em muito poucos anos ficarão não apenas descaracterizados em termos da qualidade de ambiente e silhuetas, mas também com densidade de ocupação decuplicada.
Desta área de enlouquecimento e total descontrolo urbano e viário resta, em Lisboa, isolado como uma ilha, o Palácio do Marquês de Fronteira e Alorna e o seu belo parque e jardim, quase a única memória a atestar como foi toda a área envolvente da cidade que podia ser posta em paralelo com outras capitais europeias.
Em Portugal poderemos dizer que o conceito de cidade nova faria o seu primeiro ensaio no fim dos anos 60 do século passado com projectos do Gabinete Técnico de Habitação (GTH), com os Olivais Norte e Sul, com algumas ideias concretizadas em Chelas e, depois, com a Cidade Nova de Santo André, integrada no Plano de Sines do início dos anos 70, que não é no entanto nenhum exemplo de bom planeamento nem de desenho ou estética urbana, salvando-se no entanto o então construído – um dos 3 grandes parques programados – Parque Central de 11 hectares, único espaço público para uma área urbana programada para 40 mil habitantes. Com a extinção do Gabinete da Área de Sines que detinha a administração de 84 mil ha, a expansão urbana posterior "não fez história."
O Grande Plano de Londres de Nash determinava que o contínuo urbano integrasse harmoniosamente o contínuo natural envolvente. Mas "reza" a história das cidades novas e seus habitantes, que não é grande o agrado desses habitantes mesmo nas mais antigas, como é o caso das de Inglaterra, e muito menos das de França e perguntemos porquê: porque nem em todas existe urbanismo e desenho de arquitectura de qualidade.



Sem ter apropriado conhecimento académico ousarei dizer que a "arquitectura" do início do século XX ousou tanto em materiais e cores que se distanciou das imagens-memória dos homens e em vez de tranquilidade e paz, pelo menos para o "olhar", se impôs pelo negativo.
As fachadas de cada rua, seus materiais e cores, determinam, frequentemente, comportamentos inconscientes de mal-estar crescente, fazendo dessas cidades-novas locais de morar mais do que habitar e tornam-se focos de tensões, sendo que os habitantes vivem em constante comparação com a humanizada e urbanisticamente aconchegada imagem-tipo dos antigos núcleos citadinos.



Mas para já são áreas onde não há turismo nem interno nem internacional por não haver algo de profundamente atractivo e poderemos eventualmente dizer que, por exemplo, a recente Casa da Música do Porto passou a ser um das razões de passear pela Av. da Boavista e ir descobrindo melhor essa via da cidade que é, essencialmente, um acesso viário ao centro da cidade.
Se tentarmos avaliar a qualidade do ambiente urbano no mundo antigo, não será fácil fazer paralelo com o de hoje, sobretudo porque a civilização industrial trouxe problemas difíceis de conciliar com a vida normal dos habitantes, mas trouxe porém a tecnologia para lhe dar soluções ligadas à distribuição generalizada de água e de electricidade, ao saneamento básico e ao tratamento de efluentes urbanos e industriais, para além de novos materiais e diferentes técnicas construtivas, algumas que hoje se procura recuperar quando se trata de restaurar centros urbanos históricos que também "não resistem" aos materiais actuais como o betão e o cimento, embora este material já tenha sido inventado e utilizado na Roma Antiga, mas com características diferentes.
Também, praticamente até à era industrial, as cidades eram de pequena ou média dimensão pelo que o campo e a natureza estavam ali, às “portas” da cidade, ou ao alcance da vista do alto das muralhas que se debruçavam sobre o campo envolvente onde habitavam os rurais que ainda não se tinham deslocado, maciçamente, para as periferias das cidades onde começavam a instalar-se unidades fabris.



É entretanto considerado que as cidades abrigando à volta de 40 mil habitantes são as mais importantes porque solidificaram a civilização, sendo a mesma a raíz (grega) das palavras cidade e civilização.
Mas pode-se reportar também à antiguidade a semente do saneamento com a existência de esgotos urbanos e com a condução de água aquecida para as habitações das populações privilegiadas, para além da existência das termas e banhos públicos, sendo que as águas minero-medicinais eram consideradas dádiva dos deuses na Grécia e Roma Clássicas, bem como havia os espaços Públicos como a Ágora dos gregos, e o Fórum romano, locais de excelência do encontro, sem que tivessem sido esquecidos os locais de recreio em honra dos deuses como os estádios para os Jogos Olímpicos e Píticos, ou os espaços culturais representados pelos teatros e, ainda, para a população em geral, como o Coliseu de Roma do panis et circus, situação que é hoje motivo de peregrinação turística pelos países que não destroem as memórias do passado, mesmo que em ruínas; sendo também, em tempo de Páscoa, o percurso papal de celebração das 14 estações – caminho de Jesus Cristo até ao Monte das Oliveiras (Calvário) quando da sua Crucificação .



Mesmo em ruínas os locais são muito procurados como é o caso do Fórum da cidade de Roma, mas nada se procura numa Cidade Nova ou em Benfica, a não ser por razões de visita técnica de um grupo profissional.
E se pareceria que a classe profissional dos arquitectos poderia desenhar e construir de raiz e de desenho super-moderno o espaço para instalação da sua associação profissional, é curioso notar, entretanto, que Associação Nacional dos Arquitectos se instalou nos Banhos de São Paulo e que, pelo menos no bairro de Alcântara, existe ainda e bem conservado e em funcionamento o edifício dos Banhos Públicos, ideia que não morreu passados pelo menos dois milénios e que renasceu com o termalismo dos centros mundanos mas igualmente de carácter medicinal, sendo a estância termal portuguesa mais antiga (também da Europa), a das "Caldas" da Rainha, fundada pela rainha D.Leonor.
Esta situação iria ser a semente de onde nasceu e cresceu uma cidade de grande valor arquitectónico, histórico e cultural, com a sua agradável Praça Central (Fórum), de belo e antigo pavimento de vidraço, no coração da cidade, que é mercado de manhã e local de passeio de tarde, à volta da qual se desenvolve a área urbana que possui um grande parque com árvores já centenárias que resistiram ao grande vendaval de 1942, murado e com gradeamento de ferro fundido e de belo desenho antigo, situado mesmo numa das entradas da urbe e que remata a cidade relativamente ao campo e ao qual fica adjacente a mata onde anualmente se realizavam famosos concursos hípicos internacionais.
As Caldas da Rainha de Bordalo Pinheiro, foi cidade-abrigo de muitos refugiados da II Grande Guerra, que adoptaram este país como seu, e de onde derivaram muitas famílias portuguesas, como se esta cidade contasse histórias do país e do mundo, tendo ainda sido, nos anos 40 e 50, local de veraneio dos lisboetas, porquanto, para além da beleza e cosmopolitismo, abertura social e desenvolvimento, se situa na vizinhança próxima de muitas praias, sobretudo a da Foz do Arelho e de São Martinho do Porto, e não era ainda hábito, em Portugal, a procura da praia nem em férias nem sequer em fim-de-semana, o que me permitiu, ao vir para Lisboa, verificar a total paisagem "selvagem" e magnífica das praias de areais intocados, que envolvem a "Lisboa da Outra Banda" e mesmo as da Linha do Estoril, apesar da existência de todas as vilas e aldeias construídas à beira-rio e beira-mar até Cascais, já que a "Riviera Portuguesa" data apenas do início do séc.XX e que em minha opinião rivalizava, ainda nos anos 70, em qualidade e beleza com a Riviera Francesa, como se, nesse início de século, a qualidade de construir à beira-mar tivesse idêntica qualidade e preocupação de diálogo terra-montanha-mar e até formas arquitectónicas próximas.
Note-se entretanto que o "hábito de férias", excepto as escolares, também é bastante recente e sobretudo para as classes mais ricas, o subsídio de férias só foi instituído em 1936 em França e só no fim do séc. XIX se instaura o conceito de férias de beira-mar, mas apenas por razões de saúde e, quanto a esta situação lembremos o grande filme italiano “Morte em Veneza” do realizador Visconti, que retrata bem essa situação.



Sempre a Natureza esteve presente e perto do olhar do homem, mesmo a mais delicadamente construída em situações singulares desde os Jardins de Smiramis ou Jardins Suspensos da Babilónia, porque o homem nunca se divorciou da beleza a que ligava sempre a sua vida às dádivas celestes.
Também os Jardins Bíblicos do Éden ou do Paraíso têm sido objecto de interesse da arqueologia, afirmando-se que se situariam na região onde se implantou a primeira cidade de Ur na Caldeia e onde nasceu a "escrita", onde teve origem a Civilização de onde viemos, onde Noé teria construído a Arca e São Pedro rezou, onde teria existido a Torre de Babel e por onde passaram Abraão e Rebeca mulher de Isaac (Nahor), onde teriam nascido os Reis Magos, essa fértil Mesopotâmia entre o Tigre e o Eufrates, também denominada Babilónia "Império do Homem" em que reinava Nabucodunosor.
Na Bíblia Iraque significa Terra de Shinar e Terra de Raízes Profundas, zona da terra actualmente denominada Iraque como tendo sido o centro do início mais recuado da Civilização do homem, berço civilizacional que os homens não têm a menor relutância em tentar apagar do mapa, por não saberem que valor tem a memória dos homens e como a conservar ou e re-construir em vez de, simplesmente, dizimar.
A natureza esteve sempre presente e às portas da cidade, como é o caso do local onde Cristo meditou antes de ser crucificado: o Monte das Oliveiras.
Lisboa – Bairro de Santo Amaro e Olivais Norte – Encarnação
Maria.Celeste.d'Oliveira.Ramos
com a colaboração e imagens de António Baptista Coelho
Texto iniciado 27 de Setembro de 2005, concluído, em definitivo, a 15 de Abril de 2006 e revisto para publicação a 30 e 31 de Abril de 2006.
PS: o texto continua e conclui, na próxima semana, no Infohabitar com:
QUALIDADE DO AMBIENTE URBANO, II – O JARDIM E A CIDADE, ONTEM E HOJE,

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