domingo, setembro 20, 2009

264 - Vivências e vivendas I - Infohabitar 264

Infohabitar, Ano V, n.º 264
Vivências e vivendas Iartigo de António Baptista Coelho

A ideia de escrever sobre a vivenda, em termos gerais, mas essencialmente sobre os aspectos de humanização do habitar suscitados pela ideia de "vivenda", decorreu, directamente, de um belíssimo artigo de Miguel Esteves Cardoso, intitulado “Vivenda Boa Esperança” e que foi editado no Público. (1)

Lembrei-me, depois, de associar às palavras a editar sobre este assunto, algumas ideias com as quais abri, há poucos anos, um estudo realizado, publicado e disponível no LNEC sobre o título “habitação humanizada” (2), para o qual se poderão dirigir aqueles que queiram aprofundar estas temáticas, e depois surgiu, ainda, a ideia de editar aqui um pequeno ensaio, já com alguns anos, que escrevi sobre uma casa do futuro ou imaginária, e, finalmente, acompanhar as palavras com imagens de pormenores de casas que nos falam à alma. De tantas ideias fica, para já, o texto que se segue e que terá, muito provavelmente, continuação.

“(Hestnes Ferreira) – Aquela ideia da casa, muito ligada até aos românticos, e sei lá, ao Thoreau, o tipo que vai para a floresta, corta a árvore, arranja as pranchas, faz a sua casa e ali, ali é a sua casa, é uma ideia que continua, a estar presente, culturalmente ...

(Manuel Vicente) – Afinal uma casa é boa para uma família quando for boa para todas, não é? Mas isto não é o elogio do anónimo mas antes da extrema qualidade, a universalidade pela qualidade e não a universalidade pelo «éffacement», pelo apagar.
(Bravo Ferreira) – O neutro ... o neutro é chato em qualquer situação, é sempre cinzento...
(Manuel Vicente) – Do neutro ninguém se apropria... uma pessoa só se apropria daquilo que ama. Uma pessoa não pode amar uma coisa que não seja nada.
(Hestnes Ferreira) – E quando visitamos uma casa do século passado e ficamos deslumbrados com certo tipo de espaços e gostamos mesmo de ir para lá, isso é mesmo um sintoma de que aquilo transcendeu a família para quem foi feito, continua a sugerir e se calhar já foi utilizada de mil e uma formas, já teve mil e uma jarras diferentes em mil e uma mesas diferentes.
(Bravo Ferreira) – Restou-lhe sempre a qualidade, e essa é que está sempre.” (3)





Fig. 1: o habitar doméstico é feito de um sem-fim de pormenores e de sítios para esses pormenores.
Falamos então aqui de “casas” no sentido de espaços domésticos que nos envolvem e satisfazem e com os quais nos vamos identificando, ao longo do tempo, de formas gradualmente sempre um pouco mutantes, mas também sempre um pouco constantes, num sensível (re)densificar de afectos e de identidades, numa dinâmica que vai criando laços mais profundos com determinados espaços.

Estamos portanto a falar aqui de casas que são “algo”, física e espiritualmente, que formam as “conchas” das nossas vidas, como dizia Amália, mas que nos ligam ou devem ligar, às outras vidas através da cidade. E estamos aqui a falar de casas com qualidade, afinal, porque são isso tudo e não são “cinzentas”, nem “frias”, nem simplesmente maquinais, nem descaracterizadas, e cujas formas de terem sido feitas têm histórias que merecem ser contadas, histórias que integram exemplos, autores e ideias, tal como se quis sublinhar no texto que acabou de se citar, e que, portanto, nunca poderão ser reduzidas à mera fabricação de um produto de consumo, pois a casa, a habitação, é espaço de vida, espaço que marca a nossa vida e sítio de testemunho da vida do homem.

Neste sentido, no artigo referido no início deste texto, Miguel Esteves Cardoso defende o uso para casas como estas da palavra “vivenda” e cita o seu pai que dizia que “moradia ... é onde se mora” ... e “vivenda é onde se vive, como fazenda é onde se faz.”

Esta ideia de vivenda como sítio onde se vive, realmente, nas múltiplas dimensões do viver, desde o sentido de identidade e de autonomia, ligado aos nossos espaços e objectos pessoais, aos ambientes e espaços "de companhia" e de relação com as paisagens, que podem ser muito próximas e particulares/pormenorizadas ou mais afastadas, é um daqueles supostos “lugares comuns” bem falsos, pois é evidente, infelizmente, a enorme quantidade de habitações e de sítios de habitar onde até o simples morar funcionalista é difícil, pelas mais diversas razões mensuráveis e quantificáveis, quanto mais viver numa aproximação a uma vida de plenitude que pode e deve ser o desejo de cada um de nós e que se liga, inteiramente, a essas capacidades de viver o mundo doméstico, como pequeno em dimensão física, mas enorme numa perspectiva de identidade, afectividade e apropriação individual e de grupo.


Fig. 02: o habitar doméstico tem de fazer-se, ganhando-se para essa vivência a enorme riqueza da relação exterior-interior-exterior.

Realmente habitar uma habitação, viver uma vivenda (casa ou "apartamento"), pode e deve ser incomensuravelmente mais do que uma colecção de aspectos funcionais associados ao "acto" de habitar, e esta possibilidade, que não se esgota no espaço especificamente doméstico, mas que tem de transcender para o espaço citadino, é aquela qualidade responsável pelo papel do habitar numa vida diária verdadeiramente satisfatória e positiva em termos das histórias e dos percursos de vida de cada habitante. E é neste fazer bem o habitar que se vê também a qualidade do respectivo projecto, e a diferença entre o simples "produto habitacional" e o verdadeiro habitar, o verdadeiro espaço de vivência humana, as verdadeiras vivendas, espaços de vida diária que nos servem no dia-a-dia, enquanto nos apoiam nas nossas linhas de vida e são espaços privilegiados de registo das nossas histórias de vida.

Viver uma habitação, uma vivenda, com esse fundamental objectivo de uma vivência o mais possível plena e variada, que marca interiores, exteriores e limiares, é, naturalmente, matéria-base da arquitectura, mas num constante diálogo com as outras humanidades, numa viagem temática referenciada pelas ricas e essenciais matérias “nas margens”, entre a arquitectura e outras disciplinas. Uma viagem onde têm lugar cativo aqueles autores e projectistas que sempre se preocuparam com os objectivos da humanização do habitar, e assim, muito naturalmente ou de forma premeditada sempre destilaram e embeberam essas humanidades na grande matéria da arquitectura do habitar, seja em textos, seja em casas.

E sublinha-se que no universo das humanidades aplicadas ao habitar, se considera pertinente incluir, a par das clássicas humanidades, as matérias relativas ao bem estar habitacional e urbano – da segurança urbana ao conforto ambiental e à saúde – pois se considera que elas concorrem para o objectivo de um habitar positivamente qualificado e humanizado, mas sempre, sublinha-se, a partir de uma base duplamente residencial e arquitectónica.

Tal associação entre aspectos que vão beber directamente à filosofia, por exemplo, e que influenciam na concepção de um espaço urbano habitável, com aspectos que se podem considerar mais técnicos do urbanismo, como acontece, por exemplo, com as referidas matérias da segurança pública em meio urbano, com as matérias da perspectiva pediátrica associada à importância do meio urbano no crescimento equilibrado da criança e ainda com as matérias associadas ao relevo que tem o conforto ambiental e ergonómico no espaço público – só para referir alguns aspectos mais técnicos e de primeira linha nesta problemática – , tal como se disse, esta associação justifica-se, porque todos estes aspectos influenciam conjuntamente, e sublinha-se o conjuntamente, na concepção de um mundo urbano habitado que se deseja possa ser globalmente positivo e dinamizador da vida diária e da cultura.


Fig. 03: o sentido simbólico e filosófico dos espaços e mundos do habitar marca, desde sempre as acções e as ideias humanas - uma caixa/casa.

E tudo isto, todas estas matérias vivenciais e, nestes casos, também urbanas, têm uma sede básica, um ponto de concentração estratégico, que é, naturalmente, a habitação de cada um e as habitações que vamos vivendo, que vamos vivenciando, ao longos das nossas vidas, pois elas funcionam, na prática, como "pontos centrais" onde todas as principais relações pessoais, familiares, de vizinhança e urbanas se complexificam e são vividas com mais intensidade; é a partir de nossas casas que vamos experimentando a cidade, e é daí que para a cidade partimos, diariamente, e é para elas para essas nossas "vivendas", que todos os dias voltamos e é nelas que nos reconstituímos para novos dias, e é nelas, e nas boas relações que elas podem estabelecer com a cidade, que podemos encontrar boa parte da alegria de viver e de interesse de continuar a viver, vivendo-as e às suas vizinhanças e cidades, dia-a-dia, com interesse e curiosidade, que devem ser, sempre, renovados e se possível intensificados.



E atenção que as palavras que aqui se estão a usar não são palavras quaisquer, mais ou menos bonitas, pois decorrem de casos conhecidos e vividos, habitações e vizinhanças citadinas, que parecem ser, naturalmente, capazes de "empurrar" positivamente, em cada dia, a vivência dos seus habitantes, e evidentemente lembramo-nos de exemplos em bairros históricos ou bem consolidados e de exemplos de habitações que nos falam à alma.

Em muitas partes do trabalho que foi atrás referido - Habitação Humanizada(2) - são indicados alguns dos autores e das obras que se julga poderem orientar, hoje em dia, o pensamento sobre estas matérias da humanização do habitar, que se julga ser o assunto "central" nas preocupações que têm sido apontadas neste artigo pois afinal o habitar é o lugar comum do espaço existencial e do espaço arquitectónico, e assim pode-se considerar que, deignadamente, nos livros de Christian Norberg-Schulz se encontram muitas das chaves para a humanização do habitar, bem como uma utilíssima leitura “de arquitecto”, comentada e desenvolvida, que ele faz de conceitos essenciais para estas matérias, designadamente os de Heidegger.


Podemos assim dispor, no caso dos estudos Norberg-Schulz, de uma ponte utilíssima que nos facilita a entrada num amplo e fundamental campo disciplinar em que o habitar é considerado tanto pelo ângulo da arquitectura, pois o referido autor era arquitecto, pelo ângulo da filosofia, um ângulo com que muito temos a ganhar e que parece que tem sido um pouco esquecido.

Já o tenho referido várias vezes que tive a sorte de encontrar um dos principais livros de Norberg-Schulz no início do curso de Arquitectura, em 1974 - o "Existência, Espaço e Arquitectura" (3) -, “perdido” na então pequena prateleira sobre Arquitectura da Livraria Bertrand da Baixa de Lisboa. Desde então a ele sempre voltei e aqui junto, desde já, uma pequena síntese de alguns dos aspectos, dele retirados, que convém ter em mente quando se procura aprofundar o que é a humanização no habitar, aspectos estes que tudo têm a ver com a essencial transformação do espçao de habitar em espaço de vivência positiva e estimulante:

- Heidegger foi o primeiro a defender: uma “existência é espacial”, que “não se pode dissociar o homem do espaço”, que “não podemos colocar o homem e o espaço um ao lado do outro”, que “o espaço não é nem um objecto externo nem uma experiência interna” (p. 39).

- “Bachelard (na sua «Poética do Espaço») descreve a casa com «uma das grandes forças integradoras da vida do homem», na casa o homem encontra a sua identidade, e liberdade pressupõe segurança e esta só é possível mediante a identidade humana, na qual o espaço existencial é um aspecto. Esta é a essência da «habitação ou residência»” (p. 45).

- “O nível urbano distingue-se pela sua concentração e densidade. Os homens reúnem-se na cidade e a sua identidade depende dessa coexistência. A casa, no entanto, exprime um certo isolamento, um mundo privado que pode ser fechado se quiser” (p.114).

- “As grandes unidades tão correntes hoje em dia não só destroem a escala humana como impedem a rua de preservar a variada continuidade que constitui a sua essência” (p.101).




Fig. 04: naturalmente, também se habita, ou se deve habitar, intensa e afectivamente uma cidade humanizada - aqui uma vista do Porto.
E continuando, agora num outro livro do mesmo Norberg-Schulz: (4)

- “Durante a maior parte da história a cidade foi a civitas , o mundo conhecido e seguro no meio de uma envolvente desconhecida. As suas qualidades primárias são a singularidade e identificabilidade... e dentro da cidade a casa realmente representa a necessidade básica de «estar num dado sítio.» Esta é a função essencial do habitar, e a casa continua a ser o espaço central da existência humana, o sítio onde a criança se desenvolve e começa a conhecer o seu próprio ser e a sua posição no mundo e o lugar do qual o homem parte e ao qual ele retorna “ (p.224).

- “Pode dizer-se (referindo Lynch) que a organização elementar tem a ver com o estabelecimento de centros ou lugares (proximidade), direcções ou caminhos (continuidade) e áreas ou domínios (encerramento). Para se orientar o homem precisa acima de tudo de ter estas relações, enquanto as estruturas geométricas se desenvolvem em segunda linha para servir objectivos mais aprofundados... De acordo com Lynch o homem precisa de um ambiente urbano que facilite a sua própria geração de imagens: precisa de bairros com um carácter especial, percursos que levem a algum lado e pólos/nós que sejam «lugares distintos e inesquecíveis» (pp. 223 e 224).

- “Através do conceito de carácter, os conceitos de níveis ambientais de paisagem, implantação e casa foram tornados mais concretos. Estes caracteres constituem o verdadeiro assunto material da arquitectura, e a tarefa do arquitecto é criar sítios com um carácter particular e significante, porque sem a dimensão do carácter todos esses níveis seriam apenas meras abstracções, tal como um país ou uma cidade que apenas conhecemos de um mapa” (p. 225).

- “Uma obra de arquitectura está sempre relacionada com uma situação específica, mas também tem de transcender essa situação e surgir como parte de um todo mais legível e significante. Mesmo nos estágios mais antigos da edificação, a escolha de uma situação e de um enquadramento natural implicava avaliação de alternativas, isto é reconhecimento de semelhanças, diferenças e relações. Escolha feita para satisfazer necessidades humanas e assim relacionada com acções e intenções humanas. Na arquitectura vernácula, de facto, os sítios eram cuidadosamente escolhidos para diferentes funções e tais funções satisfeitas por tipos de edifícios específicos” (p.225).


Fig. 05: da cidade à "casa" e desta à cidade, num manancial de imagens de vivências que nos preenchem os dias.

E assim se introduziu, de forma explícita, na linha editorial do Infohabitar uma proposta de discussão e de aprofundamento de uma matéria daquelas que foram as mais importantes na ideia que fez germinar o Grupo Habitar e a sua revista: pensar o habitar como verdadeiro espaço vivencial, força integradora da vida do homem, capaz de influenciar positivamente os seus habitantes, pois "não se pode dissociar o homem do espaço" e este tem de ser vivenciado entre a casa que "continua a ser o espaço central da existência humana" e o espaço da cidade, que é onde os homens se reúnem, mas onde é essencial salvaguardar a escala humana, porque "o homem precisa de um ambiente urbano que facilite a sua própria geração de imagens" e deve viver em sítios com carácter particular, embora integrados num todo legível e significante.

E o habitar num sentido de vivência que atravesse e marque, positivamente, a casa, a vizinhança e a cidade, pode e deve ser motivo de criação e recriação de uma tal caracterização e humanização, pois a cidade tem de ser um enorme, mas sensível e diversificado espaço de vivências e de vivendas.

Notas:(1) Miguel Esteves Cardoso, “Vivenda Boa Esperança”, Jornal Público, 16 de Setembro, 2009.
(2) António Baptista Coelho, Habitação Humanizada – TPI 46, LNEC, Lisboa, Julho de 2006, 577 p., 121 fig; e Habitação Humanizada: Uma apresentação geral – Memória 836, LNEC, Lisboa, 2007, 40 p., 19 fig.
(3) Christian Norberg-Schulz, Existencia, Espacio y Arquitectura, Barcelona, Editorial Blume, trad. Adrian Margarit, 1975.
(4) Christian Norberg-Schulz, Meaning in western architecture, Londres, Studio Vista, 1984 (1974).

Nota editorial: embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.Infohabitar, Ano V, n.º 264Lisboa, Encarnação –

Olivais Norte, 20 de Setembro de 2009
Edição de José Baptista Coelho
Label: habitação, vivenda, habitação humanizada

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