segunda-feira, dezembro 15, 2008

226 - Habitar as relações entre o bairro e a habitação - Infohabitar 226

Infohabitar 226

artigo de António Baptista Coelho

Nota: trata-se de um artigo, essencialmente, de texto, sendo as imagens apenas de acompanhamento e relativas ao Bairro da Barceloneta, em Barcelona.

Série habitar e viver (melhor), III: muito se passa nos espaços de relação, entre o bairro e a HABITAÇÃO


Disse Siza Vieira, numa entrevista a Bernardo Pinto de Almeida, quando questionado sobre uma definição sintética e possível de Arquitectura, que “a Arquitectura é um tema de espaço e de relacionamento, de infindável relacionamento.” (1)

Provavelmente é nesta matéria da relação e da transição que se encontrará boa parte dos aspectos associados a soluções de habitar estimulantes, porque agradavelmente curiosas e aproximadas às dimensões humanas.

Se imaginarmos ou visitarmos soluções residenciais em que a preocupação nestas matérias não existe, temos a ideia de que o fazer o habitar se resume a uma adição simplista de níveis físicos encerrados ou abertos. Um compartimento doméstico incluído num andar residencial que pouco mais será do que um paralelepípedo onde vivem várias pessoas, que, por sua vez, estará incluído num paralelepípedo maior e verticalizado onde viverão vários grupos de habitantes; e depois, depois, tudo acaba num espaço exterior em que, geometricamente, se dispuseram as projecções horizontais desses últimos maiores paralelepípedos, precavendo-se afastamentos regulamentares entre os mesmos e uma determinada capacidade funcional em termos de estacionamento automóvel e de outros tipos de funcionalidades sociais e recreativas. Precauções estas que, se frequentemente, são defesas nossas relativamente a situações negativas, são, noutros casos, obstáculos a excelentes soluções de Arquitectura – mas este tema merece desenvolvimentos específicos.


Fig. 01

Teremos, assim, um pequeno mundo quase sem relações mútuas entre os seus elementos, um mundo que só existe, de facto, nas plantas, nos desenhos de implantação e nas mentes de quem não consegue, realmente, imaginar um espaço urbano vivido e diversificado. Não se trata aqui de dizer que uns são fantásticos e bafejados pela vocação, enquanto outros não; mas, de facto, muitas pessoas e mesmo muitos técnicos têm críticas dificuldades na concepção de espaços tridimensionais e não tenhamos dúvidas que se no interior doméstico é um espaço desse tipo, o interior/exterior urbano também o é e de uma forma muito mais diversificada, rica e insinuante.

Mas não podemos ficar por aqui, pois o interior/exterior urbano, além de não ser um sistema de formas e de volumes simples e autonomizados, constitui um verdadeiro sistema de relações múltiplas, físicas, visuais, potenciais, contíguas e ambientais, reais e imaginadas. E é esta realidade, tal como refere Siza Vieira, a matéria-base da Arquitectura, é aqui e a partir desta teia de relações que se conforma a verdadeira Arquitectura, o que impõe, naturalmente, um elevado grau de exigência na concepção, pois, como se tentou apontar, apenas parte da matéria com que se trabalha se pode objectivar em termos claramente dimensionais, boa parte do assunto fica delimitado numa dimensão relacional e não tenhamos dúvida que todos os melhores projectos de habitar e de urbanidade são aqueles que sabem e conseguem trabalhar positivamente esta matéria da relação, da transição, do acompanhamento, da integração, da demarcação, do limiar e da passagem e da conjugação ao serviço da delimitação de sequências de percursos e da marcação de identidades espaciais e ambientais.

E tudo isto é matéria-base da satisfação e da identidade que se sente relativamente a um dado sítio de habitar.

Monique Éleb, um dos poucos estudiosos com obra publicada nestas matérias associadas às bases de uma estruturação cuidadosa das vizinhanças citadinas pormenorizadas, fez mesmo um livro (2) em que aborda as formas dos espaços de relação entre cidade e agrupamentos de edifícios, associando estas matérias a uma reflexão sobre tipologias de habitação e de forma urbana, atribuindo aos espaços de relação um claro protagonismo no fazer de uma cidade habitada e viva, marcada localmente pela identidade e, sempre, pela escala humana, uma cidade como quadro de integração de uma continuidade de espaços de relação e de vizinhança, nunca a cidade como quadro de implantação de objectos mais ou menos isolados e desligados da vida humana.

As tipologias encontram no referido relacionamento urbano a base de geração de velhas e novas soluções de agregação entre habitações, equipamentos, espaços de circulação e outros espaços do habitar, com destaque para aqueles com potencial de relacionamento e convívio; e às tipologias voltaremos noutros artigos.

Mas é aqui, no mundo das transições, entre espaços exteriores, entre estes e espaços interiores e entre limiares semi-interiores e semi-exteriores, que se joga a máxima importância do exterior residencial. Um exterior residencial e urbano que acaba por poder e dever ser assumido como um “verdadeiro” interior urbano, e que, por isso, deve ser positivamente configurado, acompanhando e apoiando o habitante desde a entrada no bairro até à proximidade da porta do seu edifício, dando-se fundamental coesão a todo um vocabulário arquitectónico e urbanístico que vai desde a rua habitacional e comercial à travessa e ao pátio de vizinhança, passando pelas praças e pracetas residenciais, pelas alamedas onde é "suave" habitar, pelos estacionamentos adequadamente integrados, pelas zonas verdes de enquadramento e de lazer, pelos jardins de convívio e de descontracção ou meditação, e pelos espaços mistos de circulação e de animação urbana com características que podem até recuperar elementos tradicionais.

Na relação urbana, vicinal e pormenorizada encontram-se muitas das potencialidades responsáveis pela adequação a cada sítio concreto e pela estimulante diversidade que deve marcar o meio urbano.
De certa forma aqui se joga uma fundamental coesão citadina numa pequena escala de vizinhanças residenciais e conviviais que podem e devem, desta forma, levar o habitar residencial até aos centros urbanos e, por outro lado, levar a animação citadina, ainda que muito mitigada, até às mais distantes vizinhanças residenciais. A relação é a coesão, tal como numa parede a argamassa dá coesão à obra completa.

Nestas matérias da coesão citadina ao peão deve ser atribuído um papel fundamental, considerando-se que deve ser privilegiada a formação gradual de um percurso pedonal bem vitalizado em cada comunidade, ligando nós de actividade e um pólo “central”, o mais possível concentrado, que pode ser uma pequena rua, uma praceta, um largo, ou um pequeno troco de rua comercial (3). Naturalmente, uma tal caracterização pedonal não implica a exclusão dos veículos, mas, essencialmente, uma previsão de fortes aptidões funcionais, ambientais e psicológicas, tanto para os percursos a pé com destinos práticos, como para o puro flanar (ex., passeios largos e abrigados, acompanhados e ritmados por lojas animadas).

Fig. 02

Avançando-se na continuidade urbana, numa sequencial aproximação aos espaços habitacionais privados, e em cada comunidade de vizinhança deve ser desenvolvida, pelo menos, uma zona constituída por uma série de recintos encadeados/ligados por umbrais/limiares, num crescendo de privacidades e conteúdos relativamente misteriosos (4). De certa forma é fácil de imaginar passarmos por espaços ainda estratégica e amenizadamente conviviais e fortemente públicos, para, depois, penetrarmos em ambientes onde há já reflexos directos e expressivos da proximidade das nossas casas e da sua identidade específica.

Provavelmente, o que é fundamental quando se procura contribuir para um espaço citadino em que a habitação se integre com grande harmonia visual e funcional é a defesa de aspectos fundamentais de coesão urbana e residencial: por palavras mais simples estender, expressivamente, o sentido do habitar para além da porta de entrada de cada habitação, levando-nos a estar ali na rua, a dois passos de casa, como se estivéssemos numa espécie de outra nossa sala de estar, mais ampla, partilhada, mas expressivamente amigável e para que tal se consiga é essencial garantir condições várias, mas com destaque para um sentido de segurança ou de protecção natural, ligado a excelentes condições de orientação (sentirmo-nos sempre , o mais possível, orientados em termos dos principais locais de acesso …), e para um afirmado, mas sóbrio, sentido de identidade, sentido este que terá de se fundir com aspectos de verdadeira qualidade arquitectónica – pois de outra forma teremos aqui os conhecidos riscos de “decorativismo” ou de tradicionalismo simplificado.

Desde já se afirma que esta temática do relacionamento entre bairro e vizinhança e, depois, entre vizinhança e espaço doméstico privado constitui uma das principais matérias que a concepção arquitectónica pode usar como motivo de fundamentação de determinadas soluções formais e lá estamos, novamente, nas matérias da relação e na importância fulcral do relacionamento espacial na (boa) Arquitectura.

Importa ainda sublinhar que estas matérias da relação têm tudo a ver com as da segurança, da orientação e da identidade.

Nestas matérias da segurança, da orientação e da identidade devemos ter presente a fundamental importância do desenvolvimento de uma estratégia de visibilidade de segurança intimamente ligada à rede de acessibilidade predominantemente pedonal e aplicada ao longo de todos os territórios de um dado bairro; considerando-se, tanto o normal cenário geral diurno, como o nocturno.

Esta estratégia de visibilidade, segundo Noble (5), deve ser baseada numa estrutura de orientação maximizada, sendo fundamental, por razões de segurança e de funcionalidade, que as pessoas "estranhas" a uma determinada zona consigam encontrar o seu caminho com facilidade (ex., uma ambulância efectuando uma acção de emergência, ou um visitante que não conhece a zona).

E é interessante associar estas ideias de clareza de orientação às ideias de variação e riqueza das imagens urbanas, anteriormente apontadas, considerando-se ser possível assegurar a respectiva harmonização, seja através de uma clara estruturação urbana, seja por meios gráficos auxiliares; mas atenção, quer para a frequente ausência de uma tal estruturação, quer para a inadequação que, quase sempre, caracteriza o design de comunicação urbano, tantas vezes feito por verdadeiros curiosos na matéria, que do assunto quase nada sabem.

Fig. 03

Conclui-se esta reflexão sobre as matérias do relacionamento entre espaços e ambientes residenciais e habitados com a ideia forte que é fundamental que se goste de usar, intensamente, os percursos que ligam a cidade ao bairro onde moramos e, depois, neste, as sequências que devem articular o seu centro à vizinhança que habitamos; tudo isto matéria de relacionamentos urbanos, e, afinal, todos sentimos, tal como tão bem o descreveu Daniel Filipe, que “de vez em quando apetece a gente tomar por uma dessas ruazinhas que não se sabe onde irão acabar, deixando correr o tempo ao sabor dos passos erradios…”. (6)

E, no mesmo livro, Daniel Filipe fala de “uma cidade onde acontecem coisas”(p.51), e dá vontade de afirmar que as coisas acontecem muito mais frequente e intensamente nesses espaços de relação, por exemplo, nas passagens, nas arcadas, junto às entradas e vistas das janelas, nos espaços onde se concentram e até se sobrepõem, parcialmente, actividades, nos espaços em que tantas vezes interior e exterior se amalgamam numa mistura estimulante que nos faz, ao mesmo tempo, espectadores e actores da cena urbana e residencial; por exemplo nos pequenos cafés de bairro, estrategicamente situados, entre o “final da vizinhança” e o “início da verdadeira cidade” e onde, tal como tão bem descreve ainda o mesmo Daniel Filipe, são pequenos “«cafés» sonolentos, onde todos se conhecem e os empregados tratam os clientes pelo nome de baptismo. «Um carioca para o sr. José». Rápido. O sr. José pode ser qualquer de nós – gente que vem e vai, lê o jornal. Diiscute futebol e guarda, no íntimo, um sonho ou uma angústia.” (p.71)

Não tenhamos qualquer dúvida: fazer pedaços de cidade desejavelmente habitada é tudo fazer para inventar estimulantes agregados de espaços como estes, é tudo fazer para simular a vida da cidade velha em espaços feitos de súbito e com formas e meios actuais, é, basicamente, actuar no edificado, mas, acima dele, actuar nas relações, mais objectivas ou menos objectivas, que esse edificado tem de estabelecer com o seu sítio urbano.

E não tenhamos dúvidas que assim actuar é fazer Arquitectura com “A grande”, afinal, a única maneira de a fazer, mas assumidamente num grau de exigência que obrigará a muito e bom trabalho por parte dos projectistas, mas há caminhos que facilitam este percurso, e entre os quais se salientam a depuração formal, a verdade construtiva, a naturalidade funcional e a sobriedade global da solução, bem assumida como um novo complemento para aquele sítio da cidade.

Fig. 04

Façamos agora, para terminar esta matéria e para ligar ao seu futuro desenvolvimento tipológico, um pequeníssimo apontamento sobre o chamado “habitat intermediário”, através de algumas palavras de Monique Eleb e Anne Marie Chatelet (1997): “há três grandes categorias habitacionais: o habitat colectivo, o habitat individual e o habitat intermediário, que tal como o nome indica se liga aos dois precedentes (imóvel colectivo mas com acessos individualizados e superfícies exteriores significativas tais como terraços)” (7). E as autoras, numa referência a F. Lamarre, especificam que “os terraços sobrepostos, entradas e caixas de escada desmultiplicadas conferem ao habitat uma escala intermediária, a meio caminho entre o individual e o colectivo.”
Notas:

(1) Carlos Nuno Lacerda Lopes, “Projecto e modos de habitar”, Dissertação de doutoramento, FAUP, 2007, p. 51.
(2)Monique Eleb; Anne Marie Chatelet – Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui. Paris : Éditions de l’Épure, 1997. 350 p. (Col. Recherche d’Architecture).
(3)Christopher Alexander, Sara Ishikawa, Murray Silverstein, et al, "A Pattern Language/Un Lenguaje de Patrones", pp. 170 a 172.
(4)Christopher Alexander, Sara Ishikawa, Murray Silverstein, et al, "A Pattern Language/Un Lenguaje de Patrones", p. 309.
(5)John Noble; Barbara Adams, "Home in its Setting", pp. 539 e 540.
(6)Daniel Filipe, “Discurso sobre a cidade”, Lisboa, Editorial Presença, Colecção Forma n.º 8, 1977 (1956), p.70.
(7) Monique Eleb, Anne Marie Chatelet, "Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui", 1997, p.18



Na próxima semana, véspera de Natal, será editado um artigo específico sobre a recente atribuição à NHC, Nova Habitação Cooperativa, do Prémio IHRU – Construção 2008, um artigo onde se fará a apresentação da obra que mereceu este destaque, um conjunto em São João da Talha, Loures, projectado, desenvolvido e gerido tendo em vista, especificamente, a etnia cigana. No mesmo artigo também se fará uma pequeníssima “viagem” comentada entre este recente Prémio da NHC e um anterior Prémio INH, que foi também ganho, por esta cooperativa, há poucos anos, no Zambujal, Amadora.


Edição Infohabitar
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 15 de Dezembro de 2008
Edição de José Baptista Coelho

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